Por: MpvM | 03 Abril 2020
Neste Domingo de Ramos, o abre-alas da Semana Santa, vivenciamos o início de uma Semana Santa bastante peculiar, por estarmos num tempo tão incerto no nosso país e no mundo todo devido ao coronavírus. Quantas vezes podemos dizer que vivemos um momento histórico que será lembrado pelos próximos anos? Esse impacto histórico e trágico desta pandemia é também oportunidade para refletirmos sobre o impacto histórico e trágico da morte de Cristo, porém que sabemos que não termina na tragicidade, mas na garantia da vida eterna e da felicidade plena. Quem somos nós diante das tragédias que assolam a humanidade? Nos estancamos no desespero ou agimos confiantes na esperança da nossa fé? Como nos posicionamos e agimos em situações críticas e desafiadoras?
A reflexão é de Suzana Regina Moreira mestranda em Teologia Sistemático-Pastoral pela PUC-Rio. Bolsista CAPES/PROSUC. Possui graduação em Teologia pela PUC-Rio e é tradutora de português, inglês e espanhol. É membro da Associação de Pós-graduandos da PUC-Rio, do Movimento Católico Global pelo Clima, e do Teomulher: coletivo de Teólogas, Teólogas feministas e Cientistas da Religião.
Leituras do Dia
1ª Leitura - Is 50,4-7
Salmo - Sl 21,8-9.17-18a.19-20.23-24 (R.2a)
2ª Leitura - Fl 2,6-11
Evangelho - Mt 26,14-27,66
Evangelho - Procissão - Mt 21,1-11
Peçamos que o Espírito Santo nos ilumine neste momento de reflexão, para que possamos ser reflexo e ação de Cristo neste contexto tão delicado, e assim testemunhar o amor do Pai mesmo em meio às angústias. Vinde Espírito Santo!
Na primeira leitura (Is 50,4-7) encontramos a passagem do servo do Senhor que recebe a missão de ouvir a Deus como um discípulo e anunciar o conforto para os aflitos, sem fugir das consequências da proclamação da mensagem de Deus. No Salmo 21, ouvimos o clamor angustiado daquele que é injustiçado por seguir a vontade de Deus, porém que não perde a confiança e a esperança na divina providência. Na segunda leitura (Fl 2,6-11) temos a famosa passagem da kenosis de Cristo, isto é, do esvaziamento ou despojamento obediente de Jesus e sua exaltação por parte do Pai. O Evangelho (Mt 26,14-27.66) nos leva passo a passo pelo trajeto que traçaremos mais profundamente durante a semana, desde a traição de Judas, os preparativos e a celebração da ceia pascal, a passagem pelo Getsêmani e pelo Sinédrio, até a discussão de Pilatos com Jesus, sua Paixão, Morte e sepultamento. Já o Evangelho da procissão de ramos, Mt 21,1-11, passagem que dá o nome para este Domingo de Ramos, recorda a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém logo antes de sua Paixão e Ressurreição.
Nossa reflexão sobre essas leituras de hoje será feita a partir de três pontos: o povo, o servo do Senhor, e o cumprimento da vontade de Deus.
Vamos refletir primeiramente sobre o povo. Em cada uma das leituras de hoje, de alguma forma se apresenta a figura do povo, seja enquanto personagem de ação, seja enquanto sujeito ao qual a mensagem ou promessa de Deus é destinada. Na entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, podemos imaginar vividamente a cena de várias pessoas se juntando e indo ao encontro de Jesus, montado sobre um jumento, acolhendo-o com ramos e estendendo suas vestes pelo caminho. Uma cena singela, de um povo simples que usa do pouco que tem a sua disposição para oferecer como sinal de exaltação daquele que criam ser o Messias. Os ramos e as vestes, objetos humildes do quotidiano da época, tornaram-se estandartes e tapete vermelho para o Filho de Davi.
Quais são os nossos ramos e vestes hoje para recebermos gloriosamente ao nosso Salvador?
Na primeira e segunda leitura, no Salmo, e no Evangelho, a figura do povo é apresentada com outras nuances. O povo é sujeito da mensagem que o servo na primeira leitura e o salmista anunciam. Contudo, o povo falha em reconhecer a mensagem profética, o que ocasiona a angústia do servo do Senhor e do salmista, assim como a angústia de Cristo, que iremos discutir no próximo ponto. A falta de disposição do povo para escutar, ouvir e acolher a mensagem de Deus é também o que impulsiona o povo a gritar pela crucificação de Cristo. Do mesmo modo como o espírito celebrativo da acolhida de Jesus entrando em Jerusalém contagiou mais pessoas para juntarem-se no caminho, assim também o espírito acusativo daqueles que se achavam religiosos piedosos, defensores da Lei, contagiou mais pessoas a condenarem Jesus no Sinédrio. Ainda assim, é este mesmo povo que é chamado a dobrar os joelhos diante de Jesus Cristo exaltado pelo Pai, conforme a segunda leitura de Filipenses.
O segundo ponto para refletirmos sobre as leituras de hoje é o servo do Senhor. Tanto a primeira leitura quanto o salmo hoje nos demonstram a angústia de quem acolhe e se compromete a anunciar a mensagem de Deus. Na passagem de Isaías, o autor sagrado descreve a fidelidade da missão recebida de proclamar conforto para os cansados mesmo sendo escarnecido por isso. Esta obediência à missão demonstra sua densa convicção de amor concreto e confiança em Deus. O servo do Senhor compreende o dom dado por Deus de ter os ouvidos abertos para ouvir sua Palavra. Deste reconhecimento do dom da escuta surge também a resposta obediente de proclamar a mensagem divina e de confiar no socorro divino, apesar da humilhação. O servo não foge da violência, não tenta se poupar do sofrimento. Por isso, a figura do servo de Senhor sempre nos remete a Jesus Cristo, que mesmo sentindo-se fraco e angustiado pelo caminho traçado de sua morte, mantém-se fiel a Deus. O Salmo demonstra isso de uma maneira ainda mais profunda, deixando evidente a angústia desesperadora daquele que é maltratado e injustiçado por sua fidelidade a Deus. Porém, assim como na primeira leitura, o salmista não fica estancado apenas no sofrimento e na angústia, mas confia fielmente no socorro divino.
Jesus Cristo entoa as mesmas palavras do salmista na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Sua angústia no Getsêmani deixa claro o abismo existencial de ser obediente a Deus até as últimas consequências. Jesus, o servo do Senhor por excelência, reafirma aquilo que é demonstrado na primeira leitura e no salmo: o desespero coexiste com a esperança. Jesus, o salmista e o servo do Senhor não deixam a última palavra para o desespero, mas ressaltam a confiança na providência de Deus, na Sua força que alimenta e revigora a esperança. Aquele que serve a Deus, não nega sua angústia, não foge da ansiedade, reconhece sua aflição, porém sabe que a força de Deus é maior, pois por amor nunca nos desampara. Sua vitória é sempre certa. Esta atitude de obediência até o fim, de despojamento de si para fidelidade à vontade de Deus, é razão pela qual Jesus Cristo é exaltado pelo Pai na segunda leitura. O movimento de descendência de Jesus, de esvaziamento de si e comunhão profunda com a desgraça humana tem como consequência o movimento de ascendência, de reconhecimento pelo Pai da perfeita entrega de amor do Filho.
Nosso último ponto de reflexão é o cumprimento da vontade de Deus. Não basta refletirmos sobre a figura do povo e do servo de Deus, se não refletirmos também concretamente sobre o sentido e o como cumprir a Sua vontade. A primeira leitura nos recorda a importância de reconhecer o dom dado por Deus da escuta obediente. É preciso lembrar que o chamado ao servo é de trazer conforto, testemunhar pela sua própria obediência a esperança na Sua força. O cumprimento da Sua vontade e acolhimento da missão dependem de Sua própria iniciativa. Nossa capacidade de responder ao chamado de Deus é sinal de Sua própria bondade. Deus nos fez capazes de atender ao Seu chamado do amor para o amor. O servo do Senhor, o salmista e a vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo evidenciam as consequências da obediência a esse chamado. Só é possível cumprir a vontade de Deus até as últimas consequências, mesmo em meio às calúnias e injúrias, se reconhecermos a primazia e eterna vitória de Seu amor. Em seguida, ao reconhecer e acolher o dom dado por Ele, a missão é entregar nossa própria vida aos outros. Dar testemunho da confiança e esperança em Seu amor, Sua vitória sobre a morte, Sua garantia da vida plena. Cumprir a vontade de Deus é viver no amor concreto para com os outros.
Um exemplo emblemático dessa obediência, confiança e disposição de serviço são as mulheres apresentadas no versículo 55 do capítulo 27 de Mateus. Dentre tantos detalhes narrados na narrativa de Mateus sobre a Paixão de Cristo, a menção das mulheres olhando de longe pode parecer à primeira vista deslocada na história ou até mesmo irrelevante. No entanto, se olharmos novamente para este versículo com esta chave de leitura da confiança e obediência a Deus, podemos reconhecer nestas mulheres a convicção profunda do seguimento a Cristo: não abandoná-lo mesmo diante do horror da violência e da morte.
Espero que estas questões levantadas em nossa reflexão sirvam para guiar nossos pensamentos e orações durante esta semana.
Que possamos acolher esta Semana Santa assim como Jesus Cristo foi acolhido com ramos em sua entrada messiânica em Jerusalém, de maneira simples e singela, mas com total entrega e alegria. Mergulhar na celebração pascal de sua Paixão e Morte neste momento já tão sofrido em nosso mundo será um exercício desafiador, mas caminho único para uma verdadeira e profunda celebração e comemoração de sua Ressurreição, vitória sobre a calamidade. Que esta semana seja uma oportunidade de crescimento na intimidade da escuta da Palavra de Deus, o Jesus Cristo vivo, aquele que é o Messias ontem, hoje e sempre, mesmo em tempos de pandemia!
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Domingo de Ramos - Ano A - Fidelidade à vontade de Deus pelo amor aos outros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU