Por: MpvM | 31 Janeiro 2020
"Diante destas leituras podemos perceber que somos provocadas a nos mantermos inquietas, pois devemos sentir em nosso tempo onde nos encontramos exilados e ainda não libertos. Precisamos pensar qual o fogo a nos purificar – tendo em vista uma situação de pós-exílio em nossa vida – para que possamos construir essas enormes “portas” e “frontões” de um novo templo em que o Senhor possa passar e ficar na história humana. Contudo, vivemos um tempo de inércia profunda, onde nenhum de nós tem se permitido perceber e assim agir diante dos tantos irmãos e irmãs mantidos ainda ao exílio de nossos tempos modernos."
A reflexão é de Perla Cabral Duarte Doneda. Ela possui graduação em Ciências Religiosas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Teologia pelo Centro Universitário Claretiano Batatais-EAD (2016) e é mestra em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2019). Tem experiência na área de Teologia e é membro fundadora do grupo TeoMulher: coletivo de Teólogas, Teólogas feministas e Cientistas da Religião.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Ml 3,1-4
Salmo - Sl 23(24),7.8.9.10 (R. 10b)
2ª Leitura - Hb 2,14-18
Evangelho - Lc 2,22-40
É com muita alegria e esperança que partilho com vocês a reflexão sobre a Liturgia da Palavra deste domingo.
O texto do profeta Malaquias (Ml 3,1-4) trata-se do período pós-exílio. Esse é um dado importante para compreendermos o desenvolvimento e a intenção do autor do texto. O exílio na Babilônia foi um período de muito sofrimento para o povo, logo, promessas de que um novo tempo deveria surgir e constantes invocações tornam-se algo inevitável no meio do povo. Por isso, a promessa: “Eis que envio meu mensageiro para que prepare um caminho diante de mim” (v. 1) expressa a súplica, a esperança em forma de anúncio e desejo ardente de que dias melhores virão a um povo marcado pelo sofrimento, mas que não perdeu a esperança em novos tempos.
Por isso, o salmista canta essa esperança de que as portas deverão abrir-se para esse grande Rei que deverá passar e entrar no novo Templo, para o estabelecimento da sua glória. A chegada desse Rei Onipotente é anunciada como uma grande mudança, o que nos sugere representar um novo modo na construção social do povo: “Levantai, ó portas, os vossos frontões, elevai-nos, antigos portais, para que entre o rei da glória” (v. 9), canta o salmista.
Na segunda leitura (Hb 2,14-18) desta liturgia, temos o texto dos Hebreus que vem nos dizer que esse a quem o povo clamava e aguardava, chegou. O homem Jesus, o Cristo de Deus. Mesmo estando entre nós, o mal não deixaria de espreitar as portas dessa nova construção social e nem de ameaçar os enormes frontões. Diante dessa existência do mal, os hebreus lembram que o sacerdócio de Cristo irá nos libertar da servidão, o que nos faz, hoje, pensar que há uma questão ainda não efetiva, nesta teologia. Diz o texto que haverá libertação àqueles que “passaram toda a sua vida em estado de servidão, pelo temor da morte” (v. 15), ou seja, a teologia aqui preocupa-se tão somente com o pós-vida. Hoje, a teologia elaborada por mulheres denuncia essa teologia focada na morte e nos diz que devemos promover teologia da e para a vida.
Coroando nossa reflexão de hoje, o evangelho de Lucas (Lc 2,22-40) afirma a veracidade de Jesus como Senhor do nosso tempo. A família de Jesus cumpre os preceitos do seu tempo, consagrando Jesus ao Senhor. Simeão nos garante que nessa consagração há algo bastante diferente, pois havia chegado a consolação que tanto o povo de Israel esperava, “porque meus olhos viram tua salvação” (v.30). Porém, assim como em Malaquias bem e mal ainda existiriam: “Eis que este menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição” (v. 33).
Diante destas leituras podemos perceber que somos provocadas a nos mantermos inquietas, pois devemos sentir em nosso tempo, onde nos encontramos exilados e ainda não libertos. Precisamos pensar qual o fogo a nos purificar – tendo em vista uma situação de pós-exílio em nossa vida – para que possamos construir essas enormes “portas” e “frontões” de um novo templo que o Senhor possa passar e ficar na história humana. Contudo, vivemos um tempo de inércia profunda, onde nenhum de nós tem se permitido perceber e assim agir diante dos tantos irmãos e irmãs mantidos ainda ao exílio de nossos tempos modernos.
Os “portões” e os “frontões” que fomos convidados a preparar para a passagem do Senhor não tem sido suficiente. Fome, miséria, guerras, sexismo, misoginia, homofobia e desrespeito às religiões, ainda estão presentes como o mal de nosso tempo. Esse mal se funde à profecia de Malaquias e dos hebreus e explicita parte da contradição anunciada por Simeão, com isso, nega-se a possibilidade real do novo Templo em que Cristo deveria não só passar, mas ficar conosco. Logo, nosso Templo ainda é antigo, está caiado por fora, mas podre por dentro. Desta forma, devemos cantar mais forte ou cantar de um jeito diferente do salmista, a fim de que possamos nos conscientizar de que a Glória de Deus está na glória da humanidade, o que não significa as vaidades, as ganâncias e as luxurias, mas sim o fim da servidão dos pobres e miseráveis desta terra. Precisamos libertar nossa teologia da morte e promovermos a teologia da vida, como nos alerta Ivone Gebara em seu livro: filosofia feminista. Ser um bom hebreu não é ser um errante, mas sim colocar-se a caminho para resolvermos os erros causados aos nossos irmãos e irmãs. Nisto o Papa Francisco tem apontado grandes “portas” e grandes “frontões”, alargando a dimensão do diálogo e da misericórdia. É uma proposta para enxergarmos um novo tempo da Igreja, como fez Simeão e, juntos, movidos pelo Espírito, adentrarmos nesse novo templo e novo tempo. Onde é urgente nossa escuta à mudança, pois temos o aumento do feminicídio, o aumento das mortes de muitos inocentes, sobretudo dos mais pobres do nosso país. O massacre aos nossos índios, a devastação da nossa natureza e os inúmeros preconceitos a que somos acometidos ainda hoje.
Os pais de Jesus levaram-no ao templo para que se cumprisse a lei, por vezes, penso que estamos parados nessa cena, cumprindo leis de um Templo passado. Ainda não somos capazes de erguer grandes “portões” e “frontões” para o Senhor passar e então fazer prevalecer nas nossas atitudes, tudo “que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações” (v. 35), “que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações” (v. 31.32). Logo, pensemos o que tem saído de nossos corações, especialmente, dos políticos do nosso país, dos líderes das nações. Há muito discurso de ódio, de mentira, que nos joga uns contra os outros. Há uma adoração excessiva pela força armada e não pela força amada. Há um desprezo enorme pelos pobres, negros, mulheres e crianças. Cuidemos para reerguer o Templo do Senhor, para sua glória e a nossa salvação, aqui e agora.
Sugestão bibliográfica
GEBARA, Ivone. Filosofia feminista: uma brevíssima introdução. Terceira Via. São Paulo, 2017.
________, Ivone. Mulheres, religião e poder. Ensaios feministas. Terceira Via. São Paulo, 2017
RUETHER, Rosemary R. Sexismo e Religião. Sinodal. São Leopoldo, RS, 1993.