28 Setembro 2012
A renovada familiaridade com a palavra de Deus contida nas Escrituras e proposta pelo Concílio se torna critério de discernimento nos fatos humanos, no cotidiano "fazer-se" da história e nas modalidades da presença da "Igreja no mundo contemporâneo".
A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 24-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em menos de um mês, ocorrerá o 50º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II: no dia 11 de outubro de 1962, o Papa João XXIII pronunciou a famosa alocução Gaudet Mater Ecclesia, que deu início aos trabalhos conciliares, manifestando a intenção e as expectativas do papa, que havia convocado essa cúpula de todos os bispos do mundo apenas 100 dias depois da sua eleição à cátedra de Pedro.
É naquela manhã de outubro que se abre Ritrovare il Concilio (Ed. Einaudi), o apaixonado e fluente livro de Giuseppe Ruggieri: o autor era à época um jovem estudante de um colégio eclesiástico romano e havia sido "assumido" entre os taquígrafos latinos encarregados de anotar as intervenções dos padres conciliares e redigir as atas das congregações, as sessões cotidianas do Vaticano II.
Ruggieri, no dia 11 de outubro, estava, portanto, em São Pedro, testemunha atônita e privilegiada de um evento do qual ele logo entenderia a relevância epocal. Mas no seu breve ensaio as recordações autobiográficas se limitam à breve Premissa. Logo depois, o vivaz taquígrafo siciliano deu lugar ao teólogo que tem muita familiaridade também com a história da Igreja e que tenta "reencontrar o Concílio", justamente, examinar quatro grandes eixos do debate e dos consequentes documentos conciliares: a palavra de Deus, a história, a Igreja, os outros.
Essa sábia releitura, antes de se adentrar nos pontos decisivos do Vaticano II, no entanto, aborda a questão decisiva do Concílio como "evento", expressão que às vezes se prestou a interpretações divergentes. Ruggieri defende que "todo Concílio é um evento particular", e que "o Concílio não é redutível às suas decisões", e isso – parece-me que se pode dizer – é verdade não porque o que importa seria o entusiasmo ou as sensações dos participantes a despeito dos textos laboriosamente aprovados, mas sim porque uma assembleia de bispos sucessores dos apóstolos, presidida pelo sucessor de Pedro sobre o qual Jesus fundou a sua Igreja, uma assembleia que coloca em seu próprio centro o livro do Evangelho, que invoca o Espírito Santo e os seus dons, que quer ser e sabe que é "convocada" pelo próprio Senhor, é na fé um evento espiritual capaz de agir na história e de orientá-la.
O Papa Bento XVI bem resumiu essa dimensão performativa do Vaticano II no discurso de quinta-feira passada aos bispos recém-nomeados, citando justamente dois discursos do Papa João XXIII – o da abertura do Concílio e o do encerramento do primeiro período – e ligando-os significativamente à "nova evangelização" sobre a qual os bispos reunidos em sínodo em Roma refletirão no próximo mês:
"O Beato João XXIII, abrindo a grande reunião de cúpula do Vaticano II, previa: 'Um passo rumo a uma penetração doutrinal e a uma formação das consciências' e por isso – acrescentava – 'é necessário que essa doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de modo que responda às exigências do nosso tempo'. Poderíamos dizer que a nova evangelização começou justamente com o Concílio, que o Beato João XXIII via como um novo Pentecostes que faria florescer a Igreja na sua riqueza interior e no seu estender-se maternalmente a todos os campos da atividade humana. Os efeitos desse novo Pentecostes, apesar das dificuldades dos tempos, se prolongaram, alcançando a vida da Igreja em todas as suas expressões: da institucional à espiritual, da participação dos fiéis leigos na Igreja ao florescimento carismático e de santidade".
Ruggieri examina, dizíamos, os quatro âmbitos em que, a seu ver, o "salto" desejado pelo Papa João XXIII e evocado por Bento XVI soube apresentar de modo respondente às exigências do tempo a "doutrina certa e imutável" da Igreja, precioso tesouro a ser preservado e repassado. A reencontrada centralidade da Escritura na liturgia, na celebração dos sacramentos, na catequese e na vida de oração dos fiéis individuais abriu novos caminhos na corrida da Palavra na história, rumo àquela "plenitude da verdade divina" que, como diz o Concílio, "a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente" (Constituição Dei Verbum 8).
Essa renovada familiaridade com a palavra de Deus contida nas Escrituras também se torna critério de discernimento nos fatos humanos, no cotidiano "fazer-se" da história e nas modalidades da presença da "Igreja no mundo contemporâneo". Graças à riqueza dos documentos conciliares e do fecundo debate que os originou, as relações da Igreja com "os outros" também são novamente iluminadas pela luz purificadora do Evangelho, sejam esses outros o povo judeu – não mais considerado "deicida", mas sim depositário de promessa irrevogáveis por serem provenientes de Deus – ou os cristãos de outras confissões, que "justificados no Batismo pela fé, são incorporados a Cristo, e, por isso, com direito se honram com o nome de cristãos e justamente são reconhecidos pelos filhos da Igreja católica como irmãos no Senhor" (Decreto Unitatis Redintegratio 3), ou ainda os crentes de outras religiões, que "não raramente refletem um raio da verdade que ilumina todos os homens" (Declaração Nostra Aetate 2).
São essas as considerações que, apoiadas em uma pertinente documentação, fazem com que Ruggieri diga que "o Vaticano II introduziu um novo paradigma da existência eclesial": novos estilos – diríamos nós – para anunciar o Evangelho eterno.
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O salto de João XXIII no anúncio do Evangelho eterno. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU