Por: André | 21 Março 2012
“Usar de dois pesos e duas medidas é sinal de alerta de uma sociedade livre”, escreve Timothy Garton Ash em artigo publicado no jornal espanhol El País, 20-03-2012. A tradução é do Cepat.
Ash é professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford, pesquisador titular na Hoover Institution da Universidade de Stanford.
Eis o artigo.
As coisas simples podem ser muito difíceis. A igualdade, por exemplo. O Reino Unido tem, de alguns anos para cá, uma coisa chamada Lei de Igualdade para promover esse conceito tão bom. Pois bem, quando se começa a olhar para o que isso significa na prática, a coisa se complica.
Estive pensando nisso por causa da reação que houve na mídia em relação a uma conversa que tive há pouco tempo com Mark Thompson, diretor geral da BBC, por conta do projeto que estamos realizando na Oxford sobre a liberdade de expressão. Depois de falar da ida ao ar na BBC do musical Jerry Springer: The Opera, que levantou vivos protestos dos cristãos evangélicos por se tratar de uma obra satírica que mostra Jesus como um bebê gigante e resmungão usando fraldas, lhe sugeri que BBC jamais colocaria no ar uma sátira equiparável sobre o profeta Maomé. Ele me respondeu: “Creio que, em uma palavra, a resposta é que é verdade”.
Suas palavras foram recolhidas por vários jornais, em primeiro lugar pelo The Daily Mail , e depois pelo Daily Telegraph, The Spectator e por pelo menos uma página na internet cristã, com manchetes, tais como: “O diretor geral da BBC reconhece que se trata pior o cristianismo” (Telegraph) e “Deveriam os cristãos matar o Mark Thompson?” (Spectator). No Mail Online, um leitor ou leitora que se identificou como D. Acres de Balls Cross, West Sussex, postou este comentário: “Este homem é repugnante. Deveriam crucificá-lo. Isso lhe ensinaria a não faltar com o respeito ao seu país e à sua fé cristã”. Que cristão e que patriota, este indignado ou indignada de Balls Cross!
Sugeri a Thompson que esta assimetria entre a forma que os meios de comunicação audiovisuais têm (não apenas a BBC, e não apenas no Reino Unido) de tratar o islã em comparação com outras religiões é consequência da ameaça violenta dos extremistas muçulmanos. Respondeu: “Bom, é evidente que é um fator importante... Protesto da forma mais enérgica possível é diferente de Protestos da forma mais enérgica possível e estou carregando o meu AK47 enquanto escrevo”. Trata-se de um franco reconhecimento de uma das maiores ameaças contra a liberdade de expressão que existem atualmente no mundo. A literatura clássica norte-americana sobre a liberdade de expressão fala do “veto do sabotador”. Atualmente, enfrentamos o “veto do assassino”. E é preciso resistir sempre contra essa intimidação violenta. Ceder diante dela só serve para animar outros para o uso da violência. Caso acreditassem que os ateus, cristãos, siks ou judeus fossemos capazes de carregar os nossos AK47, talvez misteriosamente nos respeitassem mais.
Jamais devemos abandonar a busca de liberdade para todos em igualdade sob a lei
Contudo, em sua resposta, muito meditada, Thompson mencionou outros dois motivos para que haja um tratamento assimétrico. Em primeiro lugar, enquanto que o cristianismo é a religião estabelecida e “de costas largas” da maioria dos britânicos, o islã é uma religião de minorias étnicas vulneráveis “que talvez já se sentem isoladas em outros aspectos, vítimas de prejuízos, e que podem considerar que um ataque contra sua religião seja outra forma de racismo”.
Segundo, como cristão praticante, Thompson disse é preciso compreender o poder emocional do “que representa a blasfêmia para alguém que é realista em suas crenças religiosas”. As crenças religiosas não podem ser comparadas simplesmente com proposições racionais como 2 + 2 = 4. “Para um muçulmano, e talvez também para um cristão, há, como se disséssemos, coisas blasfemas ou quase blasfemas que eles podem sentir quase como uma ameaça violenta”.
Quero deixar claro que não me parece que estes argumentos justifiquem a assimetria. Creio que a BBC deveria ter a liberdade de colocar no ar um programa tão satírico como Jerry Springer: The Opera sobre o islã, que, certamente, não seria verdadeiramente uma sátira sobre a religião, porque Jerry Springer: The Opera é uma sátira sobre o programa de Jerry Springer e a cultura popular norte-americana, não sobre Jesus Cristo e o cristianismo. E estou convencido de que o principal motivo pelo qual a BBC e a maioria dos demais meios ficam mais nervosos quando se trata do islã é a ameaça da violência.
Mas vale a pena deter-se com seriedade a estudar esses dois argumentos, e ambos, em definitiva, estão relacionados com a igualdade. Não é intrinsecamente ruim nem antidemocrático sugerir que se trate os membros de minorias desfavorecidas com uma sensibilidade especial. A igualdade não significa, por exemplo, que os encarregados das admissões em Oxford, diante de dois candidatos, o filho de imigrantes pobres que lutou a duras penas para obter o bacharelado em uma escola pública, e o filho de um milionário educado em Eton, tenham que dizer: Sunder tem notas piores e se saiu pior na entrevista, assim que está claro que devemos admitir o Davi. O que é preciso se perguntar aqui é: é verdade que os muçulmanos seguem sendo uma minoria vulnerável e desfavorecida no Reino Unido? (Para complicar ainda mais as coisas, isso pode ser certo no conjunto do país, mas não em determinadas cidades.) E, nesse caso, esta é a maneira de mostrar especial sensibilidade?
Usar de dois pesos e duas medidas é sinal de alerta de uma sociedade livre
Seu argumento sobre a peculiar natureza das crenças religiosas também nos remete à igualdade. Do ponto de vista empírico, é inegável que muita gente sinta com especial intensidade sua fé religiosa. Mas isso não basta para que a fé tenha prioridade sobre a razão. Suponhamos que eu sinta a mesma paixão sobre a realidade científica da evolução que os cristãos ou os muçulmanos sobre a criação. Por que uma política pública ou um meio público de comunicação vai ter que proteger seus sentimentos mais que os meus? A Lei de Igualdade britânica indica que não devem fazê-lo, com uma definição deliciosamente arrevesada: “A fé se refere a qualquer crença religiosa ou filosófica, e uma referência à fé inclui uma referência à falta de fé”.
Embora seja muito difícil, jamais devemos abandonar a busca de liberdade para todos em igualdade sob a lei. Todo o mundo tem o direito àquilo que o filósofo Ronald Dworkin chama de “igual respeito e preocupação”. Isso não significa tratar todos da mesma forma em qualquer circunstância. Mas, cada vez que ouvirem alguém (inclusive vocês e eu) defender um tratamento diferente de alguma coisa, busquem uma lanterna e examinem-no com mais atenção. O mesmo cristão evangélico que se queixa de tratamento injusto na BBC se oporá ruidosamente ao casamento homossexual. O mesmo liberal europeu que defende com paixão que os jornais devem ter liberdade para publicar caricaturas de Maomé defenderá leis que penalizam a negação do genocídio. Usar de dois pesos e duas medidas é sinal de alerta de uma sociedade livre.
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Uma norma para Jesus e outra para Maomé? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU