10 Dezembro 2013
Os problemas do Congresso paraguaio não costumam ser tema no salão de beleza Rommy, frequentado pelas moças e senhoras da alta sociedade de Assunção, mas a presença da senadora Mirta Gusinky - que semanas antes votara contra a cassação da imunidade de um colega acusado de nepotismo - ouriçou a clientela, na segunda-feira. Entre berros e xingamentos, Mirta foi enxotada do local (segundo algumas versões, com o cabelo ainda coberto de creme).
A reportagem é de Roberto Simon, publicada no jornal O Estado de S.Paulo, 08-12-3.
O Paraguai vive um momento inédito, em que a política está invadindo espaços onde não costumava frequentar, na forma de uma revolta difusa contra a corrupção. A onda teve início no dia 15 com um protesto bem-humorado: lojas, restaurantes e taxistas resolveram boicotar Mirta e os outros 22 senadores que protegeram Victor Bogado, acusado de ter colocado a babá de suas filhas como funcionária da Câmara e de Itaipu, com supersalários.
A revolta popular teve efeito e, pouco depois, os senadores voltaram atrás e puniram o colega. No entanto, isso não debelou a ira dos paraguaios e, esta semana, um terceiro congressista deve perder a imunidade para ser processado por corrupção. Outros sete aguardam na fila.
O "caso da babá de ouro" foi descoberto depois que a Justiça obrigou órgãos públicos a divulgarem as listas de seus funcionários com os respectivos salários (ao Estado, o advogado do senador negou que ela cuidasse das crianças, apesar das fotos difundidas na imprensa em que a mulher aparece carregando as meninas).
Mas, além de Bogado, os paraguaios ficaram sabendo de centenas de escândalos envolvendo contratações indevidas e nepotismo - alguns tragicômicos, como o do juiz que teria conseguido nomear 33 parentes para cargos comissionados. Integrantes de praticamente todos os partidos, além de membros do judiciário, sindicalistas e jornalistas estão sendo obrigados a se explicar após as denúncias.
O estopim da crise foi o caso de Bogado e "os 23" que votaram contra a suspensão de sua imunidade parlamentar. No dia seguinte, milhares de paraguaios protestaram diante do Congresso e tiveram início os chamados "escraches" - xingamentos e gritaria diante dos políticos. Ao final, mais de 150 estabelecimentos comerciais, de pet shops e a filiais da Pizza Hut, proibiram a entrada dos senadores que tentaram proteger o colega. Execrados quando estavam fora de casa ou do Congresso, eles tiveram de ceder, mas, desde então, já houve três manifestações em Assunção e uma nova está marcada para quinta-feira até a sede do Judiciário.
Cuidados. Rommy Ahler, proprietária do salão de beleza de onde a senadora foi expulsa, não aderiu ao boicote. "Indignei-me quando eles protegeram Bogado, mas as portas aqui estão abertas a todos", explica. Rommy diz que a congressista lhe telefonou perguntando se poderia fazer o cabelo e chegou no local, em um dos bairros mais nobres da capital, no fim do expediente.
Mesmo assim, foi alvo da ira das clientes. "Sou totalmente contra a corrupção, mas xingando as pessoas não vamos mudar o Paraguai", diz a cabeleireira.
Como em outros lugares do mundo, os indignados paraguaios são produto das redes sociais, especialmente Facebook e Twitter. Nas últimas semanas, ganhou fama o aplicativo de celular "Quem eu escracho?", com fotos e detalhes dos políticos, para ajudar a identificá-los pelas ruas.
Outra semelhança com ondas recentes de protesto no Brasil ou na Turquia é que, desta vez, setores das classes média e alta estão envolvidos. Derlis Peralta, um empregado da indústria farmacêutica, de 29 anos, é um dos principais organizadores via Facebook das marchas. "Temos partidos a bordo, mas há muitas pessoas, talvez a maioria, que vêm sozinhas. Protestamos porque a situação é insustentável e agora temos os meios para combater a corrupção."
Há ainda grupos da sociedade civil, como associações de advogados, que tentam colocar o foco da revolta paraguaia não apenas no Legislativo, mas também no Judiciário. Uma das principais organizadoras da marcha da quinta-feira é Kattya González, presidente da Coordenação de Advogados do Paraguai, que pede a destituição imediata de todos os ministros da Corte Suprema. Segundo ela, a toga paraguaia impede a fiscalização efetiva das ações do Estado e juízes e políticos "se protegem mutuamente".
A revolta, porém, não atingiu a imagem do presidente Horacio Cartes, acusado de ser um dos maiores contrabandistas de cigarros do mundo. Os casos de nomeações indevidas dizem respeito, sobretudo, ao Legislativo e ao Judiciário. Cartes, um novato na política, mantém-se afastado e discreto.
Justiça concede acesso a dados oficiais
A história da onda de descontentamento no Paraguai remonta a 2007, quando o apresentador de uma rádio comunitária da Igreja insistiu na ideia de que todos os funcionários públicos deveriam ter seus nomes e salários publicados. Daniel Vargas Tellez, de San Lorenzo, uma cidade-satélite de Assunção, travou uma batalha de quase seis anos na Justiça. Ao final, foram os segredos revelados por sua demanda que despertaram os protestos dos indignados.
Hoje com 51 anos, Tellez tinha um programa sobre os assuntos do cotidiano da pequena San Lorenzo. "A rádio é da Igreja e eu era o único a tratar de coisas do diabo. O restante eram programas sobre fé e músicas religiosas", diz ele, entre risadas, ao Estado.
Dois assuntos começaram a atrair a atenção dos ouvintes, que telefonavam com perguntas: um era a proliferação de buracos nas ruas; o outro, a de funcionários da prefeitura, que misteriosamente passaram a lotar o prédio da municipalidade. "Estávamos em época de campanha e o prefeito seria candidato a deputado. Todos começaram a notar que o número de pessoas que trabalhavam para ele se multiplicou em questão de meses."
Em uma das transmissões sobre o assunto, uma ouvinte entrou no ar pedindo informações sobre quantos funcionários a prefeitura tinha e quanto dinheiro ganhavam. Tellez disse que investigaria o assunto e levou a pergunta ao Departamento de Recursos Humanos do poder municipal. Foi, então, acusado de "tentar violar a privacidade" dos empregados da prefeitura e escutou que aquilo "não era de seu interesse".
O radialista decidiu que entraria na Justiça com o pedido para ter acesso aos dados, mas não tinha dinheiro para pagar um advogado. Uma ONG local, Idea, dispôs-se a ajudá-lo. "Perdemos na primeira instância e o juiz parecia achar que nós estávamos malucos", lembra. Tellez decidiu seguir adiante e o caso passou a receber certa atenção da imprensa.
Enquanto o processo corria em segunda instância, Félix Pico, um cidadão de outra pequena cidade paraguaia, Lambaré, solidário ao radialista, também entrou na Justiça e conseguiu que uma Corte reconhecesse seu direito de acesso aos dados da prefeitura de sua cidade. Com a diferença de opinião entre os juízes, o caso foi parar na Corte Suprema, em junho de 2008.
Mais de cinco anos depois, no último dia 15 de outubro, a cúpula do Judiciário deu ganho de causa a Tellez e Pico. Por consequência, todos os setores do Estado viram-se obrigados a prestar contas. Em poucos dias, choveram escândalos - um jornal local chegou a criar um banco de dados em que leitores enviavam denúncias para repórteres, com base nas listas, apurarem.
Não se sabe ao certo por que os juízes da Suprema Corte decidiram, unanimemente, que essas informações deveriam ser divulgadas. Um deles, depois de as revelações começarem a causar estardalhaço, chegou a negar que nepotismo seja um problema. "Acho que eles (os juízes) não se deram conta do que estava acontecendo e muito menos de que aquilo poderia se voltar contra o Judiciário", afirma Kattya González, presidente da Coordenação de Advogados do Paraguai, grupo de ativistas que defende mudanças drásticas na Justiça local.
Além dos escândalos envolvendo centenas de pessoas, a divulgação das informações despertou outras questões insólitas. Determinou-se, por exemplo, que as duas usinas hidrelétricas binacionais do Paraguai - Itaipu, com o Brasil, e Yacyretá, com a Argentina - ficariam de fora da decisão, sob o argumento de que elas não pertencem somente ao Estado paraguaio. Mesmo assim, tabelas de funcionários das duas empresas foram passadas para jornalistas. Segundo o jornal Ultima Hora, os paraguaios têm 400 funcionários a mais do que os brasileiros em Itaipu.
Tellez diz que jamais imaginou a repercussão de sua decisão de exigir as informações. "Isso demorou seis anos e as pessoas não entendiam por que eu estava ainda brigando na Justiça.
Perguntavam-me se eu ia ganhar dinheiro com o processo", afirmou. O radialista, que tem agora um pequeno site de notícias da cidade, diz que há ainda muita informação não divulgada. "A porta se abriu. Agora, precisamos entrar." / R.S.
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Protestos alteram a política paraguaia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU