Por: André | 05 Outubro 2013
Um bispo que foi testemunha direta do embate conta o seu desenrolar. Se, depois, Francisco foi eleito papa se deve também ao que aconteceu em 2007 em Aparecida.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 01-10-2013. A tradução é de André Langer.
Entre os poucos dirigentes da cúria, até agora, confirmados pelo Papa Francisco na direção dos dicastérios vaticanos está o arcebispo alemão Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Müller é discípulo e amigo do peruano Gustavo Gutiérrez, fundador da Teologia da Libertação, em parceria com quem escreveu inclusive um pequeno livro em 2004, recentemente reeditado na Itália.
Isto levou muitos – entre os quais o L’Osservtore Romano – a concluir, precipitadamente, que o magistério da Igreja havia se reconciliado com a Teologia da Libertação, associando o Papa Francisco a esta nova paz.
Mas as coisas não são absolutamente assim. Na realidade, o atual Papa foi um dos críticos mais severos desta corrente teológica.
Também em anos recentes – por exemplo, no interrogatório a que foi submetido pela magistratura argentina em 8 de novembro de 2010, publicado na íntegra no livro La lista di Bergoglio, publicado por estes dias – o então arcebispo de Buenos Aires criticou na Teologia da Libertação “o uso de uma hermenêutica marxista”.
Mas sua crítica não se limitava a isto, senão que a aprofundava: referia-se ao primado da fé no julgamento da realidade e na inspiração da prática consequente.
Em 2007, no Brasil, no santuário mariano de Aparecida, os bispos latino-americanos debateram e confrontaram-se precisamente sobre isto. E o arcebispo Jorge Mario Bergoglio foi decisivo para fazer prevalecer o primado da fé em relação à primazia do pobre em nome de uma leitura “ideologizada” da realidade.
Já convertido em Papa, Bergoglio não se esqueceu deste embate. Pelo contrário, durante a sua recente viagem ao Rio de Janeiro, quando se dirigiu, no dia 28 de julho aos representantes das conferências episcopais latino-americanas, advertiu-os que o “reducionismo socializante”, derrotado em Aparecida, continua tentando a Igreja ainda hoje.
Em Aparecida, em 2007, Bergoglio foi o presidente da comissão que escreveu as conclusões da conferência.
O papel que ele desempenhou nessa ocasião foi tão eminente e determinante que influiu, seis anos depois, na sua eleição como Papa de “uma Igreja pobre e para os pobres”.
Trabalhando ao seu lado na redação do documento final, nesse ano, estava o bispo da diocese brasileira de Petrópolis, Filippo Santoro, de nacionalidade italiana, mas que chegou ao Brasil em 1984 como missionário “fidei donum” e responsável pelo movimento Comunhão e Libertação, e depois convertido em professor de teologia e bispo auxiliar do Rio de Janeiro.
Em 21 de novembro de 2011, Bento XVI chamou Santoro de volta para a Itália e o nomeou arcebispo de Taranto.
A nota reproduzida na sequência é sua. Nela reconstitui os termos reais da controvérsia sobre a Teologia da Libertação, exatamente à luz de quanto aconteceu em Aparecida, em 2007, e cujo protagonista foi o futuro Papa Francisco. Este ainda considera de capital importância esse documento de Aparecida, não apenas para a América Latina, mas para a Igreja universal. Tanto que entregou uma cópia do mesmo a todos os padres da diocese de Roma, no encontro que teve com eles no dia 16 de setembro passado.
O arcebispo Santoro publicou esta nota no sábado, dia 28 de setembro, no jornal da Conferência Episcopal da Itália, Avvenire.
Eis o artigo.
A libertação que vem do Evangelho
O magistério e a ação pastoral do Papa Francisco são o fruto maduro da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano que se realizou no Brasil, no santuário mariano de Aparecida, em maio de 2007, da qual o cardeal Jorge Mario Bergoglio foi protagonista de destaque. A Conferência de Aparecida indicou no “discipulado missionário” o sujeito da presença da Igreja na sociedade, para que os povos latino-americanos tenham uma vida plena. O sujeito é aquele que está consciente de si, da sua originalidade e da sua missão. O sujeito novo que está na origem da libertação cristã nasce de algo que se diferencia do puro dinamismo social, não é fruto do esforço do homem e tampouco da programação pastoral.
A originalidade vem da irrupção do Espírito na história. Daqui procede a força profética da Igreja latino-americana, que faz sua a missão proclamada por Jesus na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar aos pobres a Boa Nova” (Lc 4,18).
Daí a vigorosa afirmação da evangélica opção preferencial pelos pobres. Trata-se, simplesmente, da pobreza evangélica e do testemunho da vida no meio das pessoas que vemos no ser e no agir do Papa Francisco.
A disputa aberta na teologia latino-americana não consistia tanto sobre o uso da análise marxista (por outro lado, amplamente admitida em determinados pontos da galáxia da Teologia da Libertação), e menos ainda sobre a necessidade de uma mediação das ciências sociais, mas sobre a origem da novidade cristã e sobre sua incidência específica na sociedade dominada pela injustiça, na exploração do capitalismo neoliberal e pela escandalosa pobreza do continente latino-americano.
A prolongada atividade que provocaram as duas instruções da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1984 (Libertatis Nuntius) e em 1986 (Libertatis Conscientia), e o que delas derivou, levou ao maravilhoso acontecimento de graça que foi a Conferência de Aparecida, da qual pude participar.
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Seu ponto de partida não foi a análise social, mas a fé de um povo feito em sua grande maioria de pobres, fazendo uso do método ver, julgar e agir, “a partir dos olhos e do coração de discípulos missionários”.
No n. 19 do documento final está escrito: “Em continuidade com as Conferências Gerais anteriores do Episcopado Latino-americano, este documento faz uso do método ‘ver, julgar e agir’. Este método implica em contemplar a deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julgamentos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu”.
O documento inicia com uma solene “ação de graças a Deus” e tem como perspectiva “a alegria de ser discípulos e missionários de Jesus Cristo”. A introdução e o primeiro capítulo indicam a perspectiva da fé na qual se move o texto em seu olhar analítico da realidade, no desenvolvimento dos critérios de julgamento e nas perspectivas de ação.
É sabido que o presidente da comissão para a redação do documento final de Aparecida era o arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Bergoglio. Com um estilo sapiencial, afirma na introdução do documento de Aparecida:
“O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo” (n. 14).
Esta referência inicial à Santíssima Trindade havia sido positivamente desejada pelo cardeal Bergoglio em uma intervenção decisiva, retomada em um dado momento, e com um certo pesar, em uma nota escrita pelo Marcelo Barros e publicada pela agência Adista, onde se pode ler:
“Um dos delegados brasileiros na Conferência, o bispo de Jales, dom Demétrio Valentini, comentou que a Conferência ‘concretizou um dos seus maiores objetivos, o de retomar o caminho da Igreja na América Latina, fortalecendo a identidade e superando perplexidades que impediam a sua ação’. Pena que, uma vez estabelecido, o método não foi depois aplicado com rigor, pois a análise da realidade – o "ver" – foi precedida por um capítulo introdutório sobre “os discípulos missionários”. Como conta o teólogo argentino da Ameríndia, Eduardo de la Serna, o pedido para colocar este capítulo no início da segunda parte foi rejeitado na votação, apesar de ter sido apresentado por 16 presidentes de Conferências Episcopais. Quem se manifestou contrariamente, antes da votação, foi o cardeal Jorge Mario Bergoglio, presidente da Conferência Episcopal da Argentina e da Comissão de Redação, argumentando que com relação à dureza da realidade era melhor começar com uma espécie de doxologia (hino de louvor a Deus ).
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Assim, o esquema do documento valoriza a tradição da teologia e da pastoral latino-americana, mas, ao mesmo tempo, coloca em evidência a perspectiva da fé.
Certamente ela não estava ausente, mas em certos desenvolvimentos tinha sido dada como descontado, devendo preocupar-se, sobretudo, com a gravidade de uma situação social cheia de conflitos e, especialmente, com o clamor dos pobres. Neste sentido, a posição de Clodovis Boff ajuda a entender toda a problemática a partir de um artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira sobre a questão do pobre como princípio epistemológico da Teologia da Libertação. “Quando se questiona o pobre como princípio e se pergunta se não é antes o Deus de Jesus Cristo, a Teologia da Libertação costuma recuar e não nega. E nem poderia, pois Deus está em primeiro lugar, por definição. […] O que faz problema na Teologia da Libertação é sua indefinição sobre uma questão que é capital na esfera do método”. O dado da fé “representa apenas um dado pressuposto, que ficou para trás, e não um princípio operante, que continua sempre ativo. […] Pois o primado da fé, como não pode ser dado por descontado do ponto de vista existencial, também não pode sê-lo do ponto de vista epistemológico” (Teologia da Libertação e volta ao fundamento, in REB, fasc. 268, out/2007, passim pp. 1002-1004). Esta ambiguidade é superada pela Conferência de Aparecida, tanto na estrutura geral do documento quanto na presença viva da fé em cada momento de seu desenvolvimento; desde o olhar para a dura realidade até o seu julgamento e a consequente prática.
Trata-se, porém, de uma ambiguidade sempre presente. Por isso, o Papa Francisco, em sua recente viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, no encontro com a presidência do Celam, voltava sobre o assunto no ponto 4, quando, ao apresentar algumas tentações contra o discipulado missionário, falou da “ideologização da mensagem evangélica” e afirmava:
“É uma tentação que se verificou na Igreja desde o início: procurar uma hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da Igreja. Um exemplo: em um dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a forma de “assepsia”. Foi usado, e está bem, o método de “ver, julgar, agir” (cf. n. 19). A tentação se encontraria em optar por um "ver" totalmente asséptico, um “ver” neutro, o que é inviável. O ver é sempre influenciado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica. Então a pergunta era: com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32. Existem outras maneiras de ideologização da mensagem, e, atualmente, aparecem na América Latina e no Caribe propostas desta índole. Menciono apenas algumas: a) O reducionismo socializante. É a ideologização mais fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até as categorizações marxistas...”.
Se o papa fala disso, significa que ainda podem subsistir as tentações e as ambiguidades.
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Certamente, Aparecida deu uma contribuição significativa e marcou uma mudança de posição, que é válida não só para a América Latina, mas para toda a Igreja. Isso se tornou possível graças ao magistério e ao testemunho do Papa Francisco, que quer "uma Igreja pobre para os pobres". Antes da sua eleição, Aparecida foi praticamente ignorada na Itália e na Europa e em outras partes do mundo, apesar das várias intervenções dos bispos latino-americanos nos últimos dois sínodos.
Aparecida, numa fase não mais eurocêntrica, coloca-se hoje como um magistério não só regional, mas oferecido a toda a Igreja em suas escolhas específicas, que constituem o desenvolvimento do Concílio Vaticano II. A começar pela opção pelos pobres à inculturação da fé, ao protagonismo dos leigos na luta pela justiça contra as estruturas sociais e econômicas injustas, passando pelas comunidades eclesiais de base até chegar às pequenas comunidades. Tudo é valorizado: a vida, a família, o renascimento vigoroso da religiosidade popular, a liturgia, a arte, a cultura, as vocações, os jovens, os movimentos e as novas comunidades, etc. O tema dominante, no entanto, continua sendo a missão, especialmente na terceira parte do documento com o sugestivo título ‘A vida de Jesus Cristo para nossos povos’. Da experiência latino-americana e de Aparecida deriva esse contato direto com as pessoas, esse assumir os problemas das pessoas levando a esperança de Cristo. Tudo é abraçado a partir da fé.
Esta clara posição evangélica é um dom do Espírito e do seu poder, que age no povo fiel e que culmina na Conferência de Aparecida. Agora o Papa Francisco a estende para toda a Igreja. Não se trata de uma teologia particular – como também se pode notar na entrevista concedida pelo papa à revista La Civiltà Cattolica –, mas do coração evangélico da libertação cristã.
Deste modo se projeta não apenas uma "Missão continental", como está acontecendo na América Latina, mas uma verdadeira "conversão pastoral" e uma "missão permanente", em diálogo com as várias religiões e com as expectativas mais verdadeiras do mundo contemporâneo.
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Quando Bergoglio derrotou os teólogos da libertação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU