Por: Jonas | 29 Junho 2013
Após narrar fatos vivenciados no contexto da ditadura uruguaia, com marcas profundas em seu ser, o escritor Jorge Majfud reconhece que aquilo que resta dessas terríveis experiências de torturas e de traumas é “a possibilidade de exercitar nossa liberdade de consciência e de fazer algo com todo esse estrume, como um agricultor que aduba um terreno em busca de algo mais belo e produtivo”. O artigo é publicado no jornal Página/12, 27-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Aos três anos, subi à torre de controle do quartel de Rivera, Uruguai, e disparei os alarmes. Sob o grito de “estão fugindo os tupas” (tupamaros), agitaram-se os militares, até que me descobriram e gritaram: “Desça daí, filho de uma grande puta!”. Recordo-me bem disto. Não me lembro, da forma como dizia minha avó e outros repetiam, que desci irritado e que o milico me arrastou pelo braço.
Esse foi o ano de 1973. Antes, havia conhecido a prisão de Salto e, por último, a de Libertad, em razão das visitas que minha família fazia para meu avô, Ursino Albernaz, “o Leão pelado”, o velho rebelde, a ovelha negra de uma família de camponeses conservadores. Segundo diversos testemunhos, o velho foi detido por ter dado comida, em sua fazenda, para alguns tupamaros fugitivos. Desde então, precisou aguentar todos os tipos de torturas, encapuzado e golpeado por alguns de seus vizinhos de baixa categoria. Com as mãos presas para trás, teve que evitar os golpes do agora célebre capitão Nino Gavazzo, a quem até os serviços de inteligência dos Estados Unidos (com um histórico vergonhoso nas ditaduras da época) impediram de entrar no país, qualificando-o como “bêbado charlatão”, quando se soube da ameaça contra a vida do congressista estadunidense Edward Koch.
Desses momentos no inferno, meu avô saiu com um joelho arrebentado e com alguns golpes que não foram tão demolidores, como aqueles sofridos pelo seu filho mais novo, Caíto, morto antes de ver o final do que ele chamava “tempos obscuros”.
Na prisão de Libertad (a mais famosa prisão de políticos se chamava assim porque ficava num povoado como o mesmo nome, não pela incurável ironia rio-platense), o tio Caíto confessou para sua mãe que havia sido ali, na prisão, que tinha se convertido naquele pelo qual estava preso. Sempre conversavam através de um vidro. Em seguida, nós, as crianças, íamos por outra porta e chegávamos a um pátio ternamente equipado com jogos infantis. Ali estava o tio, com seu bigode grosso e seu eterno sorriso. Com sua incipiente calvície e suas perguntas infantis. Sempre me escolhiam para memorizar as longas mensagens que ainda me lembro, já que, desde então, perdi a generosa capacidade de esquecer. Entre as crianças, nos escorregadores, eu me aproximava do meu tio e dizia-lhe, com a voz muito baixa, para que o guarda que caminhava por ali não me escutasse, a mensagem que tinha.
O tio havia sido torturado com diferentes técnicas. Em Tacuarembó, haviam-lhe afogado repetidas vezes em um córrego, arrastando-lhe por um campo cheio de espinhos. Fecharam-lhe num calabouço e, mostrando-lhe uma bolsa ensanguentada, informaram-lhe que iriam lhe castrar no dia seguinte, razão pela qual passou aquela noite tentando esconder seus testículos no ventre até arrebentar. No dia seguinte, não o castraram, mas disseram para sua esposa que já haviam feito isto, razão pela qual seu flamejante esposo já não lhe serviria como esposo, nem como pai para seus filhos.
A tia Marta voltou para a fazenda de seus sogros e deu um tiro no peito. Nesse dia de 1973, meu irmão e eu estávamos naquela casa de campo, em Tacuarembó, jogando no pátio ao lado de uma carroça. Quando ouvimos o disparo, fomos ver o que aconteceu. A tia Marta estava estendida numa cama e uma mancha cobria seu peito. Em seguida, entraram pessoas, que não posso identificar depois de tanto tempo, e nos obrigaram a sair dali. Meu irmão mais velho tinha seis anos e começou a se perguntar: “Para que nascemos, se temos que morrer?”. A avó Joaquina, que era uma inquebrantável cristã, que nunca vi em Igreja alguma, disse que a morte não é algo definitivo, mas apenas uma passagem para o céu. Exceto para aqueles que tiram a sua própria vida.
- "Então, a tia Marta não irá para o céu?"
- "Talvez, não – respondia minha avó -, apesar de que ninguém sabe".
O tio Caíto morreu pouco depois de sair da prisão Libertad, em 1983, quase dez anos mais tarde, quando tinha 39 anos. Estava doente do coração. Morreu por esta razão ou por um inexplicável acidente em sua moto, uma noite, num solitário caminho de terra, no meio do campo.
Não houve nenhum desaparecido. Nenhum morreu numa sessão de tortura. Assim como muitos, simplesmente foram destruídos por um sistema e por uma cultura da barbárie.
O restante, aquelas crianças que fomos, de alguma forma, continuaremos ligados com essa barbárie até as nossas mortes. No entanto, fica-nos a possibilidade de exercitar nossa liberdade de consciência e de fazer algo com todo esse estrume, como um agricultor que aduba um terreno em busca de algo mais belo e produtivo.
No dia 27 de junho de 1973, ocorreu o golpe de Estado civil-militar que durou até 1985 e que precedeu o golpe no Chile, do dia 11 de setembro, e o da Argentina, três anos depois.
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Tristes memórias da ditadura uruguaia. A geração do silêncio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU