18 Junho 2013
Ao fim do primeiro dia de trabalho em um escritório do Greenpeace em Connecticut, nos Estados Unidos, o engenheiro químico Marcelo Furtado foi demitido com a justificativa que não tinha inglês suficiente para o estágio. Chegou em casa e surpreendeu-se com um telefonema dizendo que teria uma segunda chance. Começaram assim seus 23 anos na organização ambientalista, os últimos cinco como diretor-executivo do Greenpeace Brasil. "Parte de exercer a liderança é conseguir fazer a leitura das pessoas", diz. "O movimento da colega, apostando em mim, mudou o rumo da minha vida e da relação com o Greenpeace, que podia ter acabado ali."
A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 18-06-2013.
Agora, Furtado está de saída da direção da entidade. Aos 50 anos, quer continuar nessa agenda, mas busca outros ares. Deixa o escritório brasileiro com cem funcionários, R$ 24 milhões de receita anual e o status de prioritário. Em sua visão dos desafios que o Brasil tem adiante, além de diversificar a matriz energética, Furtado fala em mais cidadania e rever a dinâmica do consumo em um mundo com recursos naturais finitos.
"Uma parcela da sociedade brasileira tem que entender que precisará ter um pouco menos para permitir que quem está entrando na ponta possa ter algum acesso", diz. No embate com o agronegócio, Furtado chama as vozes mais progressistas do setor e diz que "não existe esse confronto entre meio ambiente e agronegócio. O que existe é um confronto entre retrocesso e futuro."
Eis a entrevista.
Como foi sua trajetória dentro do Greenpeace?
Fui estagiário, passei para a área de captação de recursos e depois assumi uma posição mais gerencial, em campanhas, o nome que damos aos projetos. Era uma campanha global para eliminação do comércio internacional de lixo tóxico. Os países ricos, em vez de lidarem com seus efluentes industriais, encontravam uma maneira barata de se livrar deles - mandar para um país pobre. Os valores chegavam a ser um percentual do PIB de algumas nações. Era uma onda que começou na África, e depois foi para a América Latina, Leste Europeu e Ásia. Baseado em Washington, coordenei esse projeto para a América Latina.
Teve algum resultado?
Vários. O mais curioso é o caso de um incinerador da Filadélfia, que mandou todas as cinzas tóxicas para uma praia no Haiti. Pressionamos o Exército americano a levar o lixo tóxico de lá, mas não conseguimos. Anos depois, um funcionário da Prefeitura de Nova York, que cuidava da licitação sobre a gestão do lixo da cidade, viu que uma das candidatas era a empresa do caso no Haiti. Ele soube que estávamos envolvidos na história e me ligou. A condição para deixar que eles se candidatassem era tirar o lixo do Haiti. A empresa obedeceu, era importante para ela cuidar do lixo de Nova York. Conseguimos, não pela nossa campanha, mas pelo cuidado de um funcionário público.
O que aconteceu depois?
Voltei para São Paulo e virei coordenador internacional da campanha, um dos primeiros do Terceiro Mundo. Naquela época, Brasil era Terceiro Mundo.
O que representa o escritório do Brasil para o Greenpeace?
Temos mais de cem funcionários e uma receita por volta de R$ 24 milhões ao ano, metade captada no exterior e metade no Brasil, sendo que a entidade não aceita doações de empresas e de partidos. Na minha gestão dobrei a receita. Hoje, o Brasil é escritório prioritário junto com Índia, China e África. Há dez anos, começamos a discutir que o grande desafio na discussão global ambiental se daria nesses países-chave, que estariam vivendo essa transformação. O Greenpeace começou a olhar diferente esse grupo de países.
Diferente, como?
Hoje, os escritórios do Brasil, Índia e China definem a estratégia global da organização e lideram campanhas internacionais. Se preciso de um navio do Greenpeace, ele virá antes para cá do que para a Alemanha, apesar do escritório alemão ser mais rico. Isso porque o embate está acontecendo mais aqui do que na Europa.
Por quê?
Com poder vem responsabilidade. O Brasil se tornou um país poderoso geopolítica e economicamente. Influencia a política internacional, ocupa um espaço na economia mundial diferente do que há 15 anos, mas ainda não assume a responsabilidade que a liderança lhe confere.
Por que não?
Quando interessa, a gente quer ser líder, quando interessa, puxamos o cartão de "somos nação em desenvolvimento". Usamos essa ambiguidade de maneira muito confortável. Temos que assumir responsabilidades e liderar. Temos um papel a desempenhar com comportamentos que não são mais admissíveis. A discussão sobre desmatamento no Brasil não é só um problema que temos que negociar com a sociedade brasileira, que é a mais impactada. O Brasil também tem que sinalizar para o mundo que vamos fazer algo sobre as nossas emissões.
Mas o desmatamento e as emissões caíram....
As emissões do desmatamento estão sendo sobrepostas pelas nossas emissões na área de energia. Nossa lição de casa é trabalhar na redução do desmatamento e na melhor ocupação do uso do solo, e também na questão da energia, que não é só geração de energia elétrica, mas também transporte. Não passaremos de 2020 sem ter um acordo global em que o Brasil terá um compromisso de redução de emissões, que não será voluntário. Se temos esse cenário pela frente, tínhamos que estar pensando qual é a indústria que precisamos, quais as fontes principais de energia, qual a sociedade que queremos ser. Se estivéssemos em uma enrascada, como China e Índia estão, com dependência de carvão, a realidade seria uma. Mas nós podemos diversificar nossa matriz rapidamente e de maneira economicamente viável.
Estamos fazendo isso?
Não. Olhamos o mundo pelo retrovisor.
Pelo retrovisor?
O mundo está nos desafiando, mas o que acontece no Brasil? "Bom, agora, crise econômica. O que preciso fazer? Bomba aí na liberação de IPI para vender mais automóvel." Transforma-se o programa de redução do IPI no Minha Casa, Minha Vida na Rua, porque se gastam horas dentro do carro no trânsito, enquanto temos que pensar nos desafios da mobilidade. Essa nova classe C traz uma dimensão de consumo nova: precisamos transformar o Brasil que consegue comer, o que foi uma vitória, em um Brasil que consegue pensar. Trocar esse novo espaço de consumo por maior cidadania.
Maior cidadania?
Há um acordo a ser feito no Brasil entre o sujeito que conseguiu pela primeira vez ter uma geladeira e uma televisão, e o outro que já tem três televisões e três geladeiras. Uma parcela da sociedade brasileira tem que entender que precisará ter um pouco menos para permitir que quem está entrando na ponta tenha algum acesso.
Ninguém conseguiu fazer isso no mundo ainda...
A sociedade em geral vai ter que confrontar a discussão de consumo e produção. Não há como não se fazer esse diálogo em um planeta que tem um paradigma de finitude dos recursos básicos, população crescente e o dilema do aumento de emissão.
Mas os americanos podem ter três carrões e o brasileiro não pode ter um básico?
Claro, os americanos terão que fazer sua lição de casa, que é notadamente maior do que a nossa, e o brasileiro pode ter seu básico. Mas isso não significa que não temos uma para fazer. Dentro do Brasil há uma parcela da população que vive de maneira tão perdulária energeticamente quanto a sociedade americana. Existem setores da sociedade brasileira com uma lição de casa maior para fazer, para dar acesso a outros. As metas de redução de corte começam a criar um orçamento de carbono para a gente pensar o Brasil.
Os ambientalistas vivem uma fase de derrotas no Congresso...
Sim, mas há um descompasso acontecendo. O Congresso Nacional não representa a vontade da população. Na discussão do Código Florestal isso ficou evidente. Havia uma pesquisa de opinião com 70% do Brasil dizendo que não se tinha que mexer no código e a votação no Congresso foi 90% pela mudança.
O que acha dos que dizem que as ONGs internacionais querem impedir que o Brasil cresça?
Uma grande bobagem sem fundamento. A fonte dessa informação é uma parte mais reacionária do Congresso, que não quer ver a transformação do Brasil em um país onde se fortalece a democracia e se descentraliza e diversifica o poder. O Brasil está sendo demandado interna e externamente. E o mundo pede a manutenção da incrível biodiversidade que o país tem, e que é mantenedora da máquina climática global. A crítica que existe à sociedade civil, de internacionalização da Amazônia, ou o que for, foi um radicalismo da bancada ruralista contra qualquer tentativa de restringir seu apetite voraz. E que faz agora o que estamos vendo: querendo abrir área para produção de cana na Amazônia, quando tecnicamente não é o lugar para isso, ambientalmente é crime e há setores do agronegócio dizendo que não é para fazer. Dá para ver que é uma minoria.
Qual é o dilema então?
O grande debate que temos que fazer é: já que não queremos a transformação da floresta nativa em pastagem ou agricultura, como melhorar a eficiência da produção? Como recuperar parte das áreas degradadas para a produção e parte para retornar ao patrimônio original como floresta nativa? A única questão que impede essa conversa é econômica, de como se paga a conta. E política: quem faz a gestão e de quem é a terra? Essa é a parte mais complexa, do que não foi feito na reforma agrária. Acordos que precisavam acontecer ao sul da Amazônia e que foram jogados para serem resolvidos dentro da Amazônia.
Como assim?
A reforma agrária no Brasil não aconteceu em terra cara, aconteceu em terra barata. Onde tem terra barata? Na Amazônia. Jogaram a reforma agrária para lá. Mas as pessoas não querem ir para lá e quando vão, chegam sem conhecimento técnico de como transformar aquilo em um plantio. Na hora em que formos lidar com áreas degradadas, vamos ter que fazer um modelo novo, com capacitação e recursos, e o agronegócio pode fazer parte disso. Pecuária com uma cabeça de gado por hectare é um absurdo fora e dentro do Brasil. Tem gente no agronegócio que gostaria de melhorar essa taxa.
O sr. diz que existem matizes diversos no setor?
Claro. Na polarização do debate do Código, as vozes mais progressistas do agronegócio se calaram, ou acabaram aderindo à massa de retrocesso, um setor que quer fazer tudo a qualquer custo, com violência, sem respeitar lei e direitos humanos. O que está se colocando agora no Congresso Nacional é que tem que acabar com terra de índio e áreas protegidas, e liberar geral para o crescimento do agronegócio. Mas há setores que concordam que o que precisa se fazer é um acordo de mapeamento, um zoneamento econômico ecológico, para que tudo fique claro. A agenda radical da bancada ruralista dá voto e dinheiro para campanhas, mas quem veio perdendo foi o Brasil, o ambiente e o próprio agronegócio. É preciso garantir que a visão mais progressista do setor, assim como na área de energia, apareça mais. Não existe esse confronto entre meio ambiente e agronegócio. O que existe é um confronto entre retrocesso e futuro.
E o papel do governo?
Tem sido tímido, de pouca inovação e fomentando muito pouco o desafio de criar novas ideias e soluções. Talvez isso possa ser um pouco explicado pela geração dos líderes que temos aí, todos mais ou menos com a mesma idade e formação, então, a leitura que fazem de como resolver uma crise econômica, ou como conduzir um projeto de país, tem o mesmo formato. Há uma crise de liderança no Brasil e no mundo.
Foi assim na gestão Lula e FHC e ambos avançaram muito...
Mas o Brasil teve condições muito melhores agora, com a economia bombando e uma situação internacional onde está ocupando espaços. A grande questão é: ocupar para quê? No debate de mudanças climáticas, aposto que a posição brasileira, em vez de ser progressista e, ao mesmo tempo, de cobrar EUA e Europa, construir uma nova equação de como Brasil, China e Índia vão sair dessa trilha de grandes emissores para uma trilha de economia de baixo carbono, o que o Brasil irá fazer é tentar garantir que se atrase o máximo possível qualquer regime mandatório ou compensar com ações para a situação que vai enfrentar.
Acha injusto que o Brasil tente compensar suas perdas?
Só acho que é preciso lembrar que a economia do Brasil não é a economia do Burundi. Então o Brasil não pode se colocar dessa forma nessa hora.
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País terá que repensar modelo de consumo, afirma ambientalista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU