02 Abril 2013
"A primeira Semana Santa do papa Francisco foi repleta de sinais, gestos, símbolos e palavras que apontam e descrevem o “horizonte de expectativas” deste pontificado: a Igreja deve sair de sua autorreferencialidade (narcisismo teológico) e caminhar rumo às “periferias geográficas e existenciais” de nossa sociedade", escreve Sérgio Ricardo Coutinho, presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).
Eis o artigo.
Procurando dar continuidade a um artigo anterior, quando procurei avaliar o pontificado de “transição” de Bento XVI, parece que já temos dados para refletirmos sobre o “horizonte de expectativa” deste novo pontificado. Justamente durante a Semana Santa, tempo litúrgico em que a Igreja faz memória da paixão e morte de Jesus, e lança sinais de esperança por sua ressurreição, o papa Francisco apresentou seu “projeto futuro”.
Este projeto ficou melhor delimitado após a divulgação do conteúdo de sua intervenção oral em uma das Congregações Gerais ocorridas em preparação ao Conclave em que ele mesmo foi eleito. Trazido a público pelo cardeal de Havana, Cuba, Jaime Ortega Alamino, sua fala aborda 4 pontos explicitamente eclesiológicos e que expõe qual deveria ser a missão da Igreja para enfrentar a crise atual:
a) evangelizar supõe zelo apostólico, ou seja, sair de si mesma e ir às “periferias, não só geográficas, mas também as periferias existenciais”;
b) a autorreferencialidade da Igreja tem a tornado “enferma”: a doença do narcisismo teológico, “encurvada” sobre si mesma;
c) daí, duas imagens de Igreja: a que evangeliza saindo de si mesma e a “mundana” que vive em si, de si e para si;
d) o próximo papa deveria ser um homem que ajudasse a Igreja a sair de si e que fosse até às periferias existenciais.
Estas ideais, segundo o então cardeal Bergoglio, devem “dar luz às possíveis mudanças e reformas que devem ser feitas”.
Este pequeno texto, referente a um discurso de quase 3 minutos, é como um “diário” antecipado de seus gestos e falas desta Semana Santa.
Assim, podemos compreender melhor o sentido do convite de “discipulado missionário” (tema central da Vª Conferência de Aparecida) que o papa Francisco fez aos jovens durante a missa do Domingo de Ramos (24/03): “é bom seguir Jesus; é bom andar com Jesus; é boa a mensagem de Jesus; é bom sair de nós mesmos para levar Jesus às periferias do mundo e da existência”. (grifos nossos)
Na quarta-feira, 27/03, Francisco faz seu primeiro ato de governo enquanto pontífice: a nomeação do novo arcebispo de Buenos Aires e primaz da Igreja na Argentina, Dom Mario Aurelio Poli, 65 anos, bispo de Santa Rosa. Apesar de portenho, Poli vem da “periferia” da Igreja argentina, de Los Pampas. Além disso, comunga da postura e das ideias de seu antecessor colocando-o dentro do círculo de bispos de linha moderada que estão à frente da Conferencia Episcopal Argentina (CEA). Com esta nomeação, o papa Francisco esvazia as pretensões dos ultraconservadores, encabeçados por Héctor Aguer, arcebispo de La Plata, de ditar a linha pastoral da Igreja em seu país.
Neste mesmo dia, Francisco fez sua primeira “catequese”, na Audiência Geral ocorrida na Praça de São Pedro, e insistiu no que disse no Domingo anterior, mas com uma definição eclesiológica que relembra vivamente a Constituição Dogmática Lumem Gentium, quando disse:” Jesus viveu a realidade cotidiana das pessoas mais comuns: se colocou diante da multidão que parecia um rebanho sem pastor; chorou diante do sofrimento de Marta e Maria pela morte de seu irmão Lázaro; chamou um publicano como seu discípulo; foi traído por um amigo. Em Cristo, Deus nos deu a garantia de que ele está conosco, em nosso meio. ‘As raposas – disse Jesus – as raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça’ (Mt 8:20). Jesus não tinha uma casa, porque a casa dele é o povo, nós, a sua missão é a de abrir todas as portas de Deus, sendo a presença amorosa de Deus”. (grifos nossos)
Por isso, mais uma vez, convida os cristãos a entrarem no “caminho de Jesus”, pois “viver a Semana Santa seguindo Jesus, significa aprender a sair de nós mesmos (...) para chegar aos outros, para ir para a periferia de existência; movendo-se nós, em primeiro lugar, a nossos irmãos e irmãs, especialmente aqueles que estão longe, aqueles que são esquecidos, aqueles que estão mais necessitados de conforto, compreensão e ajuda” (grifo nosso).
Este projeto eclesiológico-missionário foi melhor desenvolvido durante a homilia da Santa Missa Crismal (28/03), quando se dirige explicitamente ao clero. O tema da ida “para as periferias” ganha maior profundidade. Para isso faz uma exegese sobre a “unção” tirada do Salmo 133: “É como óleo perfumado derramado sobre a cabeça, a escorrer pela barba, a barba de Aarão, a escorrer até à orla das suas vestes”, ou seja, os “ungidos” devem ir até onde o povo está, lá nas “periferias”, “onde não falta sofrimento, há sangue derramado, há cegueira que quer ver, há prisioneiros de tantos patrões maus”. Os “ungidos” devem ser servidores e “a sua unção ‘é para’ os pobres, os presos, os oprimidos…”.
Continua o papa: “Isto significa que o sacerdote celebra levando sobre os ombros o povo que lhe está confiado e tendo os seus nomes gravados no coração. Quando envergamos a nossa casula humilde pode fazer-nos bem sentir sobre os ombros e no coração o peso e o rosto do nosso povo fiel, dos nossos santos e dos nossos mártires, que são tantos neste tempo” (grifo nosso). Conclui sua homilia conclamando os padres há “serem pastores com o ‘cheiro das ovelhas’ – isto vo-lo peço: sede pastores com o ‘cheiro das ovelhas’”.
A nosso ver, ao escrever esta homilia, o papa Francisco tinha diante de seus olhos e pensamentos os padres Orlando Yorio, Franz Jalics, Carlos de Dios Murias (mártir da ditadura militar e cuja causa de beatificação foi encaminhada pelo cardeal Bergoglio) e os seus padres das “villas miserias” de Buenos Aires, como Rafael Tello: todos “cheirando a ovelhas”. De fato, um encontro com o seu próprio passado.
Mais tarde, no mesmo dia, durante a Missa da Ceia do Senhor, realizada Cárcere para Menores “Casal del Marmo”, quando lavou os pés de 12 jovens infratores (entre eles duas moças sendo uma muçulmana), o papa Francisco pôs em prática aquilo que pregou pela manhã: foi até a “periferia da existência”, lá “onde não falta sofrimento, sangue derramado, cegueira que quer ver, prisioneiros de tantos patrões maus”. E justifica seu gesto de “ungido servidor” para os jovens: “Lavar os pés significa: ‘eu estou ao teu serviço’. Como sacerdote e como Bispo, devo estar ao vosso serviço. Mas é um dever que me vem do coração: amo-o. Amo-o e amo fazê-lo porque o Senhor assim me ensinou”. (grifo nosso) No entanto, nada disse sobre o problema da delinquência juvenil. (1)
Na Sexta-Feira da Paixão (29/03) e Sábado de Aleluia (30/03), as duas homilias deixaram mais claros o projeto de seu pontificado: a reforma.
Pe. Raniero Cantalamessa, capuchinho e pregador da Casa Pontifícia, deu o tom da reforma que está por vir. Para ir para as “periferias existenciais” é necessário mudanças estruturais na Igreja (semelhante ao que solicita o Documento de Aparecida). Para isso, faz uma comparação como acontece “em certas construções antigas”: “Ao longo dos séculos, para adaptar-se às exigências do momento, houve profusão de divisórias, escadarias, salas e câmaras. Chega um momento em que se percebe que todas essas adaptações já não respondem às necessidades atuais; servem, antes, de obstáculo, e temos então de ter a coragem de derrubá-las e trazer o prédio de volta à simplicidade e à linearidade das suas origens. Foi a missão que recebeu, um dia, um homem que orava diante do crucifixo de São Damião: ‘Vai, Francisco, e reforma a minha Igreja’. Que o Espírito Santo, neste momento em que se abre para a Igreja um novo tempo, cheio de esperança, redesperte nos homens que estão à janela a esperança da mensagem e, nos mensageiros, a vontade de levá-la até eles, mesmo que ao custo da própria vida” (grifos nossos).
No dia seguinte, papa Francisco qualifica esta reforma por meio dos termos “novidade” e “memória”.
Sua intervenção parece direcionada à aqueles que, neste momento, temem a reforma e que ainda não entenderam, como as mulheres do Evangelho, os últimos acontecimentos: desde a surpreendente renúncia de Bento XVI até sua eleição. Diz o papa: “O caso [do túmulo vazio] deixa-as perplexas, hesitantes, cheias de interrogações: ‘Que aconteceu?’, ‘Que sentido tem tudo isto?’ (cf. Lc 24, 4). Porventura não se dá o mesmo também conosco, quando acontece qualquer coisa de verdadeiramente novo na cadência diária das coisas? Paramos, não entendemos, não sabemos como enfrentá-la. Frequentemente mete-nos medo a novidade, incluindo a novidade que Deus nos traz, a novidade que Deus nos pede. Fazemos como os apóstolos, no Evangelho: muitas vezes preferimos manter as nossas seguranças, parar junto de um túmulo com o pensamento num defunto que, no fim de contas, vive só na memória da história, como as grandes figuras do passado. Tememos as surpresas de Deus” (grifos nossos).
Em seguida, introduz a necessidade de fazer memória, como uma espécie de antídoto contra o medo de aceitar as rupturas e as novidades necessárias que alimentam a História: “E os dois homens em trajes resplandecentes introduzem um verbo fundamental: lembrai. ‘Lembrai-vos de como vos falou, quando ainda estava na Galiléia (...). Recordaram-se então das suas palavras’ (Lc 24, 6.8). Este é o convite a fazer memória do encontro com Jesus, das suas palavras, dos seus gestos, da sua vida; e é precisamente este recordar amorosamente a experiência com o Mestre que faz as mulheres superarem todo o medo e levarem o anúncio da Ressurreição aos Apóstolos e a todos os restantes (cf. Lc 24, 9). Fazer memória daquilo que Deus fez e continua a fazer por mim, por nós, fazer memória do caminho percorrido; e isto abre de par em par o coração à esperança para o futuro. Aprendamos a fazer memória daquilo que Deus fez na nossa vida” (grifos nossos).
“Fazer memória” não para ficarmos petrificados diante de um “defunto”, fixados em um determinado momento da história, com sentimento de nostalgia, mas “fazer memória” para refontizar, retornar às fontes e beber nela em busca da energia necessária para construir o “novo”, “para trazer o prédio de volta à simplicidade e à linearidade das origens” (Cantalamessa).
Finalmente, no Domingo de Páscoa, 31/03, Francisco faz seu Urbi et Orbi e pede pela paz mundial. Não condena o mundo enquanto tal, mas condena o “pecado social” que gera a “escravidão” e a injustiça no mundo: “Paz para o mundo inteiro, ainda tão dividido pela ganância de quem procura lucros fáceis, ferido pelo egoísmo que ameaça a vida humana e a família – um egoísmo que faz continuar o tráfico de pessoas, a escravatura mais extensa neste século vinte e um. O tráfico de pessoas é realmente a escravatura mais extensa neste século vinte e um! Paz para todo o mundo dilacerado pela violência ligada ao narcotráfico e por uma iníqua exploração dos recursos naturais. Paz para esta nossa Terra!” (grifos nossos).
A primeira Semana Santa do papa Francisco foi repleta de sinais, gestos, símbolos e palavras que apontam e descrevem o “horizonte de expectativas” deste pontificado: a Igreja deve sair de sua autorreferencialidade (narcisismo teológico) e caminhar rumo às “periferias geográficas e existenciais” de nossa sociedade. (2)
Notas:
1.- O cardeal Philippe Barbarin de Lyon, França, e o cardeal Odilo Scherer de São Paulo celebraram a Sexta Feira da Paixão nas “periferias”: o primeiro numa comunidade de ciganos expulsos, pelas autoridades, de seu acampamento e o segundo junto à Pastoral do Povo da Rua. “Sinais dos tempos”?
2.- Sois pequenos eventos, mas carregados de sentido: a) foi feita uma pequena mudança no Brasão do papa Francisco: a estrela de cinco pontas que representa Maria (“estrela da evangelização”) foi substituída por uma de oito pontas e que, além de continuar simbolizando Maria, faz referência às oito “Bem-aventuranças”; b) durante a Missa da Páscoa o papa usava o anel do pescador, mas no balcão para o discurso Urbi et Orbi, estava com seu velho anel de prata de bispo)
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A Semana Santa do papa Francisco. "Não nos fechemos à novidade" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU