Por: Jonas | 27 Março 2013
Rememorando a tensão dos anos de ditadura na Argentina, o jesuíta José Luis Caravias (foto) escreve sobre o drama vivenciado naquele momento, acentuando os impasses dos religiosos. Lembrou que Bergoglio o incentivou a fugir daquele país: “Acredito que se sentiu aliviado quando parti. Certamente não estava totalmente a favor da minha ação organizativa entre o povo. Talvez, tantos relatórios policiais fizeram-lhe duvidar, mas comigo foi nobre e me ajudou a escapar de uma morte certa. E, por isso, sempre lhe estarei agradecido”. O artigo é publicado no sítio Religión Digital, 26-03-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Estou impressionado pela teimosia em que se insiste em friccionar supostas deficiências, já distantes, do recém-nomeado papa Francisco. Jorge Bergoglio, como todo ser humano, tem uma história pessoal, cheia de acertos, problemas, erros e hesitações. Tem seu caráter, seu temperamento e a carga de seu passado. Entretanto, como todos os mortais, tem o direito de poder corrigir rumos e curar as feridas de suas batalhas.
Encontrei-me com ele, repetidas vezes, durante 1975. Foi meu superior provincial. Escutou-me e atendeu sempre com carinho. Porém, eu era um problema para ele.
Em maio de 1972, em Assunção, Paraguai, eu fui sequestrado por um comando policial e jogado sem documentos na fronteira argentina. A ditadura de Stroessner não economizou calúnias para sujar meu compromisso com as Ligas Agrárias Cristãs, das quais era seu assessor nacional.
Eu fiquei dois anos ao fundo do Chaco argentino, onde consegui formar um sindicato de cortadores de árvores, cruelmente explorados pelos capatazes da região, que extraíam madeira de quebracho para a indústria do tanino. O sindicato foi aprovado e funcionou, mas os capatazes não me perdoaram... As armadilhas mortais que nos acercaram foram tão graves, que eu tive que ir para Buenos Aires. Lá comecei a penetrar nas Vilas Miséria, atendendo os paraguaios.
Em meio a tremendas tensões, em poucos meses Bergoglio me comunicou que havia ficado sabendo que a Triple A (Aliança Anticomunista Argentina) tinha decretado minha morte, junto com outros, e que o melhor seria que eu ficasse uma temporada na Espanha. Por esses dias, numa visita de despedida a Resistência, capital de Chaco, fui preso e passei uma noite terrível num calabouço imundo. É terrível o golpe do cadeado do calabouço e a incerteza de não saber se irá amanhecer... À meia noite, fizeram-me uma simulação de fuzilamento.
Nos meses anteriores, dois amigos sacerdotes tinham sido assassinados. Mujica nas vilas, e Maurício Silva, sacerdote de rua, com quem havia compartilhado belas conversas e eucaristias. Cada vez mais, sentia a navalha das ditaduras em minha garganta. Pensei que já bastava de me fazer o corajoso, e decidi aceitar o convite de Bergoglio de sair daquela tão agitada Argentina. Mais tarde, contaram-me como a polícia efetivou “operações rastelo”, apagando minhas pegadas em Chaco. Contudo, o que mais me doeu foi que intimidaram a amigos com muitas cruéis torturas, procurando informação sobre mim.
O que Bergoglio pensava de tudo isto? Incentivou-me a fugir. Acredito que se sentiu aliviado quando parti. Certamente não estava totalmente a favor da minha ação organizativa entre o povo. Talvez, tantos relatórios policiais fizeram-lhe duvidar, mas comigo foi nobre e me ajudou a escapar de uma morte certa. E, por isso, sempre lhe estarei agradecido.
Alguns o acusam de que não ter sido suficientemente corajoso em denunciar aquelas situações. Isto me incomoda. Seria necessário ter vivido aquelas terríveis tensões para hoje poder recriminar... Torturavam e matavam diante da menor denúncia contra. Possivelmente, Jorge Bergoglio, ser humano, cometeu erros. Às vezes foi desacertado. Deixou-se levar pelos medos e preconceitos. Porém, nós todos fizemos isso. Os gases venenosos das ditaduras enlouqueceram a nós todos. Não ensoberbece termos respirado esses gases. Aí vivíamos, e respirávamos como podíamos...
O importante é como curamos nossos pulmões daquelas feridas. Certamente para Jorge Bergoglio, como para muitos de nós, supôs muito esforço de cura. Não é fácil esquecer e perdoar aqueles horrores. Contudo, para ele, para mim, e para tantos outros, como Francisco Jalics, por exemplo, a fé em Jesus foi definitiva. Nós que sofremos aquilo, e hoje em dia respiramos tranquilos, reconhecemos que a força do Ressuscitado nos fez renascer com novos brios.
Com o tempo, todos nós mudamos. Amadurecemos. Jorge também. Suas atitudes não são as mesmas de há quase 40 anos. Seus últimos anos, em Buenos Aires, demonstram isto. Está mais perto do povo, tem ideias mais claras e denúncias mais contundentes. E, agora, sobre seus ombros caiu uma carga muito mais pesada. Por que se empenhar em friccioná-lo nos seus possíveis erros do passado? Não seria muito mais sensato apoiá-lo em sua austeridade e em seu serviço aos pobres?
A extrema direita já começa a denunciá-lo como traidor, antipapa... E, talvez, o alto capitalismo mundial esteja orquestrando as calúnias para desprestigiá-lo, pois um Papa austero, comprometido com os pobres, para eles é perigoso...
Alguns lamentam que o Papa não seja um grande revolucionário. Isso não é possível. Porém, caso consiga, como afirmou, que a Igreja seja pobre ao serviço dos pobres, ele terá dado passos históricos significativos.
Uma mostra de mudança. Há uns dez meses, na Faculdade de Teologia de Buenos Aires, ele promoveu a memória do sacerdote Rafael Tello, um dos iniciadores da Teologia da Libertação, que foi condenado e afastado pela Hierarquia de seu tempo. Disse Bergoglio: “A história tem suas ironias... Venho apresentar um livro sobre o pensamento de um homem que foi separado desta Faculdade. Coisas da história. Essas reparações que Deus faz: que a hierarquia, que em seu momento acreditou conveniente separá-lo, hoje diga que seu pensamento é válido. Mais ainda, foi fundamento do trabalho evangelizador na Argentina. Quero dar graças a Deus por isso”. Vale a pena escutar o seu discurso completo, de quase uma hora.
Vamos apoiá-lo. Incentivá-lo. Ele pediu a benção do povo. Vamos ajudá-lo a ser consequente com a sua fé em Cristo, impulsionado por Santo Inácio e iluminado por São Francisco.
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Bergoglio “ajudou-me a escapar de uma morte certa”, afirma o jesuíta José Luis Caravias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU