05 Novembro 2014
"Nos primeiros meses de 2014, o índice de homicídio em El Salvador ficou entre 14 e 14 mortes por dia, o quarto índice mais alto no mundo e que não está muito atrás da média diária total durante a guerra civil. Omar Serrano, vice-presidente do departamento de ação social da UCA, disse à delegação através de um intérprete que as pessoas até compreendem os altos índices de morte durante o período de guerra, mas o índice atual de violência é “irracional e absurdo”. As pessoas consideram a violência como estando pior hoje do que durante os anos de guerra, falou", o comentário é de Luke Hansen, SJ, em artigo publicado pela Revista America, 10-11-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
FLOR-DA-ESPERANÇA. Obdulio Ramos, marido de Elba, plantou rosas no gramado onde os jesuítas foram assassinados, junto com Elba e sua filha, na Universidade Centro-Americana – UCA, em San Salvador. |
Eis o artigo.
Em Arcatao, El Salvador, uma cidadezinha em meio a vistas montanhosas deslumbrantes próximo à fronteira hondurenha, o Comitê da Memória Histórica é o responsável por preservar a memória da guerra civil que deixou mais de 75 mil mortos – e milhares de “desaparecidos” – entre 1980 e 1992. O seu mais recente projeto é: construir uma capela memorial para manter alguns dos corpos exumados de um dos vários massacres ocorridos nas proximidades.
A capela oferece um espaço para rememorar e lamentar, mas isto não é tudo. Rosa Rivera, que está ajudando na condução do projeto, explicou que um jardim e um caminho forrado com flores são também componentes essenciais do memorial. “As flores são sinais de vida e alegria”, disse Rosa por meio de um intérprete. “Não podemos permanecer somente no passado. Devemos educar os nossos filhos” para o bem do nosso futuro, “de forma que isto jamais, jamais aconteça novamente”.
Entre as muitas pessoas assassinadas durante a guerra civil estiveram seis padres jesuítas – Ignacio Ellacuría, Ignacio Martín-Baró, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Joaquín López y López, e Amando López – juntamente com Elba Ramos e sua filha Celina, que eram hóspedes na residência jesuíta da Universidade Centro-Americana, em San Salvador, na noite dos assassinatos.
No fim de julho deste ano, a El Salvador como parte de uma delegação para marcar o 25º aniversário destes crimes e vi algumas das muitas formas que o país continua a sofrer por causa dos frutos amargos da guerra. Mesmo fazendo duas décadas que os acordos de paz puseram, oficialmente, um fim ao conflito, o país ainda se vê atormentado por uma violência epidêmica e pela impunidade advindas de processos jurídicos, da desintegração e polarização social, de uma economia estagnada e de uma migração extensiva que despedaça comunidades e famílias.
Nos primeiros meses de 2014, o índice de homicídio em El Salvador ficou entre 14 e 14 mortes por dia, o quarto índice mais alto no mundo e que não está muito atrás da média diária total durante a guerra civil. Omar Serrano, vice-presidente do departamento de ação social da UCA, disse à delegação através de um intérprete que as pessoas até compreendem os altos índices de morte durante o período de guerra, mas o índice atual de violência é “irracional e absurdo”. As pessoas consideram a violência como estando pior hoje do que durante os anos de guerra, falou.
No entanto, nossa delegação também viu muitos sinais concretos de vida, esperança e cura. Um movimento popular, por exemplo, ajudou a estabelecer um monumento nacional aos civis mortos ou desaparecidos durante a guerra. Grupos de direitos humanos continuam na luta por justiça e responsabilização dos responsáveis pelos crimes. Comunidades de fé, tentando se recuperar das feridas da guerra, estão imbuídas com um senso de mistério pascal. Elas lembram e lamentam as vítimas da guerra, mas nunca sem uma expressão de fé e esperança na ressureição e vida nova. Murais e flores estão entre os muitos sinais em que os atos de barbárie não têm e não terão a palavra final. A fidelidade, hospitalidade, festividade e alegria das pessoas são sinais ainda mais presentes.
O Pe. Luis Salazar, pároco da próspera Paróquia de Maria Madre de los Pobres, próxima de San Salvador, contou à nossa delegação: “Somos uma comunidade de fé que acredita no Deus da vida”. Quando a nossa delegação visitou a centro principal da paróquia, alguns membros da comunidade estavam fazendo bordados. Ao chegarmos, no entanto, eles pararam o trabalho, colocaram uma música, começaram a dançar e nos convidaram se juntar a eles. Numa fala de acolhida, um dos líderes explicou que aquele trabalho ali tem motivação em Dom Oscar Romero, a quem chamam de “o nosso pastor”, e em Rutilio Grande, SJ – ambos viveram, trabalharam e morreram entre o povo de El Salvador – e agora também tem inspiração no Papa Francisco, “que celebra o Evangelho com muita alegria”.
Em busca da verdade
Os assassinatos na UCA nas primeiras horas da manhã do dia 16 de novembro de 1989 atraíram, uma vez mais, a atenção do mundo para a guerra civil em El Salvador. Desde 1980 os Estados Unidos vêm distribuindo cerca de 1 milhão de dólares em auxílio por dia ao governo salvadorenho. Depois dos assassinatos dos jesuítas, no entanto, o Congresso votou uma redução pela metade deste auxílio. Ao mesmo tempo, as Nações Unidas e países como a Espanha e o México rapidamente se envolveram nas negociações entre o governo salvadorenho e a Frente de Libertação Farabundo Martí, coalizão de grupos rebeldes conhecida como FMLN [sigla para “Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional].
Levou 20 meses e uma série de acordos durante este tempo até que o governo e a FMLN finalmente assinaram, no dia 16 de janeiro de 1992, os Acordos de Paz Chapultepec.
A realização mais significativa destes acordos de paz foi um cessar-fogo imediato e o fim da guerra. Eles também prepararam o terreno para as reformas e reconstrução da sociedade civil salvadorenha. Dissolveram os grupos militares e policiais responsáveis por grande parte da violência durante a guerra, estabeleceram uma nova Constituição, formaram uma nova força civil policial, criaram novos procedimentos para elegerem os juízes do Supremo Tribunal, incorporaram combatentes guerrilheiros à vida civil, permitiram à FMLN formar um partido político e fizeram um pedido à ONU para que esta investigasse as violações dos direitos humanos.
A Comissão da Verdade da ONU para El Salvador levou oito meses para investigar o que aconteceu durante a guerra e recomendou medidas para promover uma reconciliação e cura nacional. O relatório final – intitulado “Da loucura à esperança: A Guerra dos 12 anos em El Salvador” – foi publicado em março de 1993. A comissão recebeu 22 mil queixas envolvendo assassinatos, torturas e desaparecimentos; uma parcela equivalente a 85% foi atribuída a agentes do Estado; e 5% foi atribuída a forças da FMLN. Com relação ao período inicial da guerra de 1980 a 1983, o relatório concluiu: “O terrorismo organizado, na forma dos assim-chamados ‘esquadrões da morte’, se tornaram a manifestação mais aberrante da escalada da violência. Grupos civis e militares se envolveram em campanhas de assassinatos sistemáticos com total impunidade, enquanto que instituições estatais faziam vista grossa”.
O relatório analisou as mortes e os massacres mais notórios da guerra. A comissão, por exemplo, descobriu “provas concretas” de que o major Roberto D’Aubuisson, fundador da Aliança Republicana Nacionalista, ou Arena, ordenou o assassinato de Dom Oscar Romero em março de 1980. Descobriram também “provas substanciais” de que militares salvadorenhos e um grupo paramilitar matou, deliberadamente, pelo menos 300 pessoas inocentes, incluindo mulheres e crianças, no Rio Sumpul próximo da localidade de Arcatao, em 14 de maio de 1980. O relatório chamou o massacre de uma “grave violação” do direito internacional humanitário e dos direitos humanos, e disse que as autoridades militares tentaram encobrir o incidente.
Além de recomendar uma reforma substancial dos poderes judiciário, militar e da polícia, o relatório da ONU também abordou a necessidade de justiça e reconciliação. O texto descreveu os “requisitos de dupla face para a justiça” como sendo a punição dos culpados e a compensação às vítimas. A comissão não expressou confiança alguma no sistema judicial salvadorenho em, realmente, processar os perpetradores, mas afirmou claramente que as vítimas e seus familiares teriam o direito à “indenização moral e material”. Além das reparações monetárias, a comissão recomendou que o governo construísse um memorial com o nome de todas as vítimas do conflito.
Partido no poder à época, a Arena criticou duramente o relatório e ignorou a maior parte das recomendações. Apenas cindo dias depois que as Nações Unidas divulgaram o relatório, uma assembleia nacional aprovou uma anistia geral e incondicional para todos os envolvidos na guerra civil. Esta aprovação evitou que altas autoridades políticas e militares (incluindo líderes da FMLN) fossem processadas. Os apoiadores da anistia geral afirmaram que a legislação ajudou a proteger um acordo de paz frágil e fez com que uma sociedade polarizada se centrasse na construção de um futuro unido. Os críticos, no entanto, sustentaram que a verdadeira paz não era possível sem justiça. Perguntaram-se como poderia não haver consequência alguma aos culpados, até mesmo para os crimes mais horrendos?
Andreu Oliva, SJ, atual reitor da UCA, contou à delegação que os acordos de paz tiveram um impacto duradouro na área dos direitos políticos e da liberdade de expressão e associação, mas que ainda tem muito trabalho a ser feito. “Os acordos de paz puseram um fim à guerra, mas não alcançaram a reconciliação, a justiça ou uma melhoria das condições de vida”, falou. “Estes acordos poderiam ter sido um caminho para a reconciliação”, porém não foram realizados de maneira plena.
“Estas são visões diferentes de reconciliação no país”, explicou o Pe. Oliva. “Algumas pessoas clamam pela verdade e por reparações, enquanto outras dizem que deveríamos ‘perdoar e esquecer’, mas elas sequer estão dispostas a pedir perdão”. O departamento de direitos humanos da UCA, disse ele, pediu a um tribunal internacional por justiça restaurativa, mas o governo não apoiou a proposta.
Aberturas legais
Sob pressão internacional, El Salvador processou várias autoridades militares em 1991 pelos assassinatos ocorridos na UCA, mas só dois foram condenados – e logo foram soltos com base na lei de anistia. À época, vários grupos de direitos humanos manifestaram preocupação com os procedimentos realizados. Em 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH recomendou que El Salvador revogasse a lei de anistia e realizasse uma investigação inteiramente nova em relação ao assassinato dos jesuítas e das mulheres.
Até agora El Salvador não reabriu o caso, mas uma ação jurídica está acontecendo do outro lado do Atlântico. Em 2008, o Centro para a Justiça e Responsabilização, com sede em San Francisco, na Califórnia, entrou com um processo criminal no Supremo Tribunal espanhol contra o ex-presidente salvadorenho Alfredo Cristiani Burkard e 14 ex-oficiais militares e soldados pelo papel que desempenharam nas execuções dos jesuítas. (Cinco dos seis jesuítas eram cidadãos espanhóis de nascimento.) Um ano depois o tribunal responsabilizou todos os 14 ex-oficiais militares e soldados – e se reservou o direito de responsabilizar o Sr. Cristiani – por terrorismo estatal e crimes contra a humanidade.
O coronel Inocente Orlando Montano, um dos réus no caso, está atualmente cumprindo sentença de prisão de 21 meses nos Estados Unidos. Em 2012, declarou-se culpado de seis acusações envolvendo fraudes imigratórias e perjúrio. No momento, autoridades estadunidenses estão ponderando sobre como responder ao pedido de extradição da Espanha do coronel Montano, que era uma das altas autoridades militares em El Salvador quando os jesuítas e as mulheres foram mortos.
Um monumento à verdade
O Parque Cuscatlan, um espaço verde e sereno no coração de San Salvador, é o lar do Monumento à Memória e à Verdade. Após a recomendação da comissão das Nações Unidas e após os 20 anos de pedidos feitos por grupos de cidadãos, o governo municipal de San Salvador finalmente ergueu um muro memorial em dezembro de 2003. O monumento tem 90 metros de extensão e 3 de altura. As fileiras intermináveis de nomes gravados na superfície escura lembram, de imediato, a qualquer visitante americano o Memorial aos Veteranos do Vietnam, em Washington, DC, porém o memorial de San Salvador lista somente os civis que foram mortos ou que desapareceram durante a guerra.
Foto: http://americamagazine.org/
Num mar de 32 mil nomes, dá algum trabalho encontrar “Oscar Arnulfo Romero”, embora este nome esteja marcado por minúsculas folhas verdes pintadas e levemente alteradas por virem sendo tocadas pelas muitas mãos ao longo dos anos. Há outros nomes familiares no muro: Rutilio Grande, Ignacio Ellacuría, Maura Clarke, Jean Donovan. Mas, acima de tudo, o memorial serve como um lembrete austero de que mortes injustas e precoces foram o destino de dezenas de milhares no país, e não só de alguns padres e irmãs. As mortes de Margarita Veronica Garcia, Nelsey Mirella Herrera, Isabel Luna, Maximino Rodríguez, Gerardo Cruz Sosa podem não aparecer nos jornais, nem fazerem parte do interesse internacional ou tampouco são lembrados em celebrações ou peregrinações; porém o memorial – e o Evangelho – nos convida a imaginarmos onde eles viviam, quem eles amavam e quem os amava, pessoas cujo mundo virou de cabeça para baixo por causa dos desaparecimentos e mortes. Nesse sentido, o muro em si é um ato de resistência à morte e ao anonimato porque ele identifica as pessoas pelo nome e, portanto, reconhece a dignidade delas.
As primeiras seções do muro consistem de um mural feito pelo artista salvadorenho Julio Reyes. O mural conta a história do colonialismo, dos massacres e das manifestações populares. No painel final, flores-da-esperança e algumas pétalas transformam-se em pombas da paz. Poucos metros adiante, um casal de idosos se senta num dos bancos do parque – com lágrimas correndo. A guerra civil terminou há 22 anos, mas a memória da guerra e a dor das perdas continuam próximas.
Um trabalho em curso
Rosa Rivera, que trabalha no Comitê da Memória Histórica em Arcatao, contou à nossa delegação que as pessoas na cidade eram expulsas de suas moradias já em 1976. Forças governamentais queimavam as casas, disse ela, de forma que as pessoas pegavam as roupas e alimentos e fugiam para campos de refugiados hondurenhos ou para montanhas nos arredores, onde viviam a partir de sementes, folhas e raízes de árvores de banana. Tempos depois a localidade foi novamente repovoada.
O pároco Miguel Angel Vásquez, SJ, contou-nos que quando chegou a Arcatao em junho de 1986, percebeu que a guerra tinha destruído tudo. Durante aqueles anos, falou, somente em sua diocese houve 59 massacres. O Museu da Memória Histórica exibe muitos artefatos, como conchas quebradas e enferrujadas de bombas e balas bem como fotos de homens feridos, crianças em escolas improvisadas e crâneos do massacre no Rio Sumpul.
Mural localizado próximo ao Museu de Memória Histórica de Arcatao. Foto: http://americamagazine.org/
Atualmente, nove corpos de diferentes massacres estão enterrados próximo à capela memorial – um trabalho em curso – e a comunidade espera por mais corpos por parte do médico legista local. No entanto, não será possível exumar todos os corpos do período de guerra, devido ao tempo já transcorrido e pelo fato de que o Rio Sumpul levou junto muitos dos corpos.
Alunos de uma escola jesuíta local passaram horas ajudando a reconstruir a capela memorial, e a comunidade arrecadou fundos através da venda de alimentos, de pedidos aos comerciantes locais e do apoio de grupos de fora do país, como a cidade de Madison, no estado do Wisconsin, cidade irmã de Arcatao. Até o momento, a comunidade investiu cerca de 20 mil dólares na capela e no local do memorial. “Temos muitas ideias, porém poucos recursos”, explicou Rosa Rivera. “Confiamos que Deus vá providenciar o que precisamos”.
Uma vez terminada, a capela vai incluir uma estátua de Maria, quem “como tantos aqui”, disse nossa companheira, “viu a tortura e a morte de seu próprio filho. Maria continuou em frente e continuou caminhando, assim nós também continuaremos na luta”.
“Tenho visto como estas comunidades podem se levantar, se reerguer”, contou ao nosso grupo o Pe. Vásquez. “Tenho visto a ressureição da comunidade e das pessoas, uma nova forma de partilhar e viver juntos. A paz é possível quando nós todos nos unimos”.
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El Salvador: Verdade e Justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU