Por: Caroline | 04 Junho 2014
A palavra que está na moda em Cuba é “atualização”. Dessa maneira é que o governo e o Partido Comunista referem-se ao processo que, entre outros objetivos, busca chegar a uma economia na qual Estado não deva pesar mais que 60%. Um dos principais politólogos de Havana explica as nuances da nova etapa.
“A revolução é o que é hoje (talvez não como tenhamos desejado, mas assim o é) porque faz parte de uma revolução inconclusa, em processo ou em desenvolvimento, da América Latino e do Caribe. Como hoje o entorno é favorável a Cuba, toda a atualização irá se desenvolver dentro de um contexto favorável”, é o que diz Luis Suárez Salazar (foto) que vive, pesquisa e ensina em Havana, onde integra o Comitê de Relações Internacionais, que dita o Instituto Superior de Relações Internacionais Raúl Roa García, adjunto ao Ministério de Relações Exteriores de Cuba. E, ao mesmo tempo, desfruta não apenas dos intercâmbios na América Latina (pois foi membro do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais e é um participante ativo de seus encontros), mas também dos Estados Unidos.
Em Nova Iorque, Suárez Salazar participou de um seminário sobre a atualização de Cuba, organizado pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), e aceitou dialogar com Página/12 sobre o que Cuba tem chamado desde 2011 por “atualização”, visto que trata da mudança econômica, mas não se resume apenas a isso.
A entrevista é de Martín Granovsky, publicada por Página/12, 01-06-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/uZeF3Y |
Eis a entrevista.
Nos últimos anos, os cubanos com que pude falar – funcionários ou pesquisadores e, em algumas vezes, cidadãos comuns de Havana – parecem conjunturais e esperançosos para que as transformações sociais saiam bem. Dizem muito “acredito” e “assim seja”.
Realmente hoje, em diferentes setores da sociedade cubana, encontramos muitas margens de incerteza relacionadas ao impacto da atualização. Na vida cotidiana, na família... em tudo.
Por que justamente agora?
Porque é o momento no qual a atualização está enfrentando um de seus temas mais complexos, que é a eliminação da dupla dualidade monetária. Não é um ato simplesmente administrativo. Não é uma decisão abstrata sobre se a economia permanece com o peso cubano convertível ou com o não convertível. Tem haver com um fato real, e se a estrutura econômica do país não pode sustentar a decisão, ao final poderiam ser reproduzidos fenômenos que já ocorreram em outros países. O que poderia ocorrer é a mudança da moeda, mas a inflação a devora e vai retirando seus zeros. Por isso é melhor não simplificar a realidade.
Não é um jogo de letras entre o peso cubano, o CUP, em o peso cubano convertível,e o CUC.
Não. Ao fim do caminho da eliminação da dualidade não econômica e social, o principal problema é saber qual será o poder aquisitivo real da moeda, seja qual for. Quantos bens e serviços posso adquirir para satisfazer as necessidades básicas e essenciais. Isso gera incertezas a muitas pessoas. E há uma espécie de adaptação a dualidade monetária. As pessoas e as famílias vêm estabelecendo estratégias frente a essa realidade. Sem considerar o mercado negro, que é outro assunto, um cubano domina o panorama de quatro mercados, incluindo o dos trabalhadores independentes.
Seja má ou boa individualmente, essa é a realidade costumeira do cotidiano.
E, a partir daí, pode haver um elemento de contradição, porque todo o processo complexo gera contradições. O essencial, como sabemos, é que a economia tenha capacidade de sustentar-se. Que setores chaves, como o alimentício, não dependam tanto das importações, porque também importariam a inflação. E que, por sua vez, se realize com êxito o reordenamento empresarial para a chamada empresa estatal socialista. Se não há uma medida única para avaliar a eficácia, tudo se distorce. O setor estatal segue sendo um componente enorme da economia e funciona com mais de uma moeda.
Contudo o plano de atualização econômica pretende reduzir o peso do setor estatal da economia.
Sim, a aposta é que o setor estatal mantenha um peso de apenas 60 ou 70%. Cuba era uma das economias mais estatizadas dos processos socialistas. Estavam fora os pequenos agricultores e as cooperativas agrícolas. O Estado mantém o controle do comércio exterior.
Os cubanos, funcionários ou não, também aprecem em meio a uma dinâmica que terá muitas tentativas e erros.
Não há apenas incertezas. Também há desejos e as expectativas. Ainda que as diretrizes aprovadas pelo congresso do Partido Comunista tenham definido um grupo de grandes objetivos, ficou claro que, de fato, haveria espaço para uma certa dose de tentativas e erro. Também haveria espaço para que surgissem novas demandas ou exigências que – mesmo quando não tiverem sido expressadas – deveriam ser abordadas. Como não sou adivinho, mas acredito que a prospectiva é sim importante, para realizar a análise eu me movo em uma gama de cenários. Mas, em ultima instancia tudo se moverá com tempos políticos.
Qual é o pior cenário?
Que o impacto da atualização seja muito adverso, e isso independe da vontade coletiva. Se for muito adverso pode criar custos sociais e políticos que a sociedade não está disposta a absorver.
Há outro cenário menos crítico?
Bom, o processo da atualização se baseia em uma sequência política. Deverão criar-se, a cada momento, os consensos políticos necessários para avançar. Sem consenso não se pode construir os
40% da economia que não estejam nas mãos do Estado.
Isso supõe o funcionamento de novos atores. De novos sujeitos que hoje nem sequer existem.
Mais atores, sim, e principalmente mais atores transformados em sujeitos com capacidade de elaborar politicamente os consensos. E, por sua vez, sujeitos capazes de servir como elemento de diálogo para permitir que as pessoas sejam escutadas.
Não há um consenso único.
Não existem os consensos ad eternum. E digo mais, por si só a complexidade não basta. Algo que minha análise relaciona-se com um fato real e objetivo: em Cuba estamos em uma transição geracional. Nestes momentos ainda estão atuando cinco gerações políticas. Não falo de demografia. Falo de uma geração determinada como tal pelo momento em que cada uma entrou na vida política. Uma é a geração histórica.
Essa primeira geração seria, suponho, a que protagonizou a revolução.
A própria. Tem peso não apenas na liderança, mas também no conjunto da sociedade cubana. Como fruto da obra da revolução aumentou-se a expectativa de vida e há muitas pessoas acima dos 75 anos politicamente ativa, desde o nacional ao comunitário. Meu pai tem 90 anos e ainda faz política.
O que ele faz?
A emissora local de seu bairro o pede opiniões e ele fala. Também trabalha no Conselho de Defesa da Revolução dentro da comunidade.
Qual é a segunda geração?
É a chamada geração guevarista. É a minha, dos entraram na vida política nos primeiros anos log após o triunfo da revolução. A primeira tarefa política que minha geração teve foi a de alfabetizar. Falo de “geração guevarista” pela influência que a personalidade de Che teve em nós, seu pensamento, suas ideias sobre o papel específico da juventude, sua concepção sobre o novo homem... Sentimos que nos entregava um projeto de vida ético associado ao internacionalismo, aos valores morais, a um modo de pensar de maneira diferente o marxismo.
E a terceira geração?
É a da revolução institucionalizada. A que começa a fazer política com a primeira Constituição, em 1976, quando também há o direito de sufrágio aos 16 anos. Essa geração mandou sargentos e soldados para Angola. E começaram a ser deputados, e foram assumindo responsabilidades sociais as vezes pouco pensadas.
Vamos à quarta geração.
Em seguida vem a geração do período especial. A que entrou na política quando estava se derrubando tudo. Estavam caindo o bloco socialista, os sonhos, as ideias... Uma etapa enormemente complexa. Nesse período algo se desarticula: a ideia de que com o estudo contínuo e com o trabalho poderia conseguir-se o progresso material e social, ascensão social. Que se poderia aspirar por melhores salários e a outro nível de vida, mesmo em relação a seus pais. Notou-se essa desarticulação quando muitos graduados universitários tiveram que buscar outros empregos, diferentes dos que queriam exercer quando estavam estudando. Ou quando muitos não acabaram por não terminar suas carreiras. Abandonaram mais os homens que as mulheres, e isso é notado hoje no mundo do Estado cubano.
As mulheres qualificaram-se naquele momento e atualmente são funcionários do Estado.
Sim, em diferentes níveis. Da mesma forma, com todos os desabamentos que sofreram e presenciaram, essa quarta geração continuou participando de um milagre político. O milagre é que a Revolução Cubana tenha continuado sustentável. Eu falo do heroísmo cotidiano de um povo, como sujeito coletivo.
E a quinta geração, professor?
A geração da batalha de ideias, para usar uma expressão que Fidel utiliza há muitos anos. A geração que entrou na vida política no início do século XXI. A de Elián, que mobilizou a muitos jovens, a muitos estudantes.
Claro, essa história é exatamente do ano 2.000. Elián González tinha seis anos e sua mãe o tirou de Cuba em uma balsa, mas ela morreu no caminho e seu pai, que havia ficado em Cuba, exigiu o retorno do menino aos Estados Unidos.
Foi uma enorme batalha. Bem, voltando ao comentário inicial sobre as gerações e sua atuação na construção de consensos políticos: essas cinco gerações ainda estão participando. Pela ordem lógica e natural das coisas, a geração histórica estaria terminando seu ciclo político e a geração guevarista estaria em uma posição intermediária. Não nos olham com desdém. Para mim, o peso maior da atualização irá cair sobre as três outras gerações: a da institucionalização, a do período especial e a nova, que já tem no mínimo dez anos que fazem política. Aqueles que estudam sobre as juventudes cubanas propõe que há uma inversão de prioridades. Descobriram que hoje o que está em primeiro lugar é a formação profissional e a família e, logo após, vem o projeto social. Antes era o contrário: o projeto social vinha em primeiro. Mas não encerremos tudo por ali. A pesquisadora María Isabel Domínguez propõe que quando se questiona sobre as identidades, predomina o sentido de pertencimento. Têm uma identidade nacional: “Sou cubano”, dizem. Esperaríamos que se identificassem como latino-americanos nascidos em Cuba, mas essa é minha opinião, não? O certo é que antes de definir-se como mulheres, agricultores, ou seja lá o que sejam, assinalam um território: Cuba. Às vezes há desconfiança, mas não se leva em consideração que essa geração participou de uma discussão sobre as diretrizes, das quais faziam parte sete milhões de cubanos. Volto ao tema dos consensos. Quando falamos de um socialismo próspero e sustentável, que entenderão estas gerações por prosperidade?
O que irão entender?
Iremos ver. Insisto: não falo com desconfiança, mas com a ideia de que o futuro não está fechado, entre outras coisas pelo peso que tem a participação. A participação é um dos grandes consensos atuais da sociedade cubana. Na primeira eleição popular – as eleições gerais de 2012/13 – cerca de 85% dos cidadão exercitou seu direito ao voto. E o voto é voluntário, o que implica que há uma grande massa de pessoas comprometidas com o processo de atualização. Assim como há uma população economicamente ativa, há uma população politicamente ativa. São cubanos que participaram de diferentes maneiras e muitas vezes desde muito jovens, nas organizações estudantis. Eu tenho confiança que o cenário mais provável seja que a revolução siga contando com o consenso e com o tempo necessário para redefinir o futuro. Nessa lógica, elevar o nível da participação e sua qualidade é algo importante. Em Cuba há muito canais de participação cidadã. Votam aqueles que têm acima de 16 anos, mas não se participa apenas votando. É necessário criar mecanismos institucionais para incrementar a participação na tomada de decisões.
E em uma dinâmica de erros e acertos, quem terá legitimidade para assinalar o que é um erro e o que não o é?
Qualificar se algo é um erro deve ser coletivo. Isto vem anexo a um processo maior de descentralização. Acredito que o planejamento e o plano devem ser mantidos. Mas esse planejamento deve ter um nível maior de descentralização e um nível maior de democratização para o debate. Discutamos a participação dos trabalhadores nas empresas estatais. Não retiremos a responsabilidade dos administradores, mas reativemos o movimento sindical. Que os estudantes tenham maior participação. Em uma sociedade complexa não pretendamos que tudo se realize por grandes discussões nacionais. Não basta. A também não devemos pensar que nada do que acontece deixa de interagir com os tempos políticos.
E há o mundo, que continua andando.
A revolução é o que é hoje (talvez não como tenhamos desejado, mas assim o é) porque faz parte de uma revolução inconclusa, em processo ou em desenvolvimento, da América Latino e do Caribe. Como hoje o entorno é favorável a Cuba, toda a atualização irá se desenvolver dentro de um contexto favorável.
O que é exatamente o “favorável”?
Ações como as do novo governo mexicano, de reestruturar a dívida. A transformação do Brasil como primeiro investidor privado. O entorno global importa muito. Evidentemente um dos problemas permanentes ao longo da nação cubana – agora trato da história da nação e não da história da revolução – é de como fazer a interação entre uma pequena ilha que primeiro quis ser independente e depois quis ser socialista, frente a uma potência que tem um projeto radicalmente oposto: a dependência e, inclusive, em algum momento, a anexação. Nessa questão é importante o novo papel da China, a posição da Rússia no mundo, a eventual ampliação do grupo Brics, do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Irão somar-se a Argentina e a outros países? Se esse grupo se ampliar e aprofundar seu trabalho, melhor para Cuba. O país avançou muito na relação com a América Latina e o Caribe. Hoje mantém dentro da região as melhores relações históricas (não apenas na revolução, mas em toda a sua história): Celac, Caricom, Alba, visita de Estado do presidente mexicano no início de seu mandato. Cuba uma ilha, mas não está isolada. Não vive em uma caixa fechada. Para mim é importante que quando falemos do futuro possível, o olhemos associado ao futuro na América Lática, no Caribe, nas relações dos Estados Unidos, no mundo multipolar que está se construindo, na aposta por uma América Latina unida e a um mundo multipolar. Esperemos que consigamos evitar que não ocorram perigosas concentrações econômicas que, em algum momento determinado, possam provocar transtornos políticos e sociais.
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“Cuba é uma ilha, mas não está isolada”, diz Luis Suárez Salazar, um dos principais cientistas políticos de Havana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU