Por: André | 31 Março 2014
Os 50 anos do golpe militar contra João Goulart, completados neste 31 de março, são um claro sinal de tudo o que falta no caminho dos direitos humanos e da verdade no Brasil. Este caminho foi sinuoso na América Latina. O Julgamento das Juntas Militares na Argentina nos anos 1980, a aplicação da jurisdição universal pelos crimes de direitos humanos impulsionada pelo juiz Baltasar Garzón e a prisão de Augusto Pinochet nos anos 1990, a derrogação das leis de impunidade pelo kirchnerismo e os julgamentos no Chile foram marcos ofuscados pelos vaivens do uruguaio ou pelo ferrolho da Lei de Anistia no Brasil. O julgamento oral do Plano Condor que se iniciou no ano passado na Argentina pode ajudar a destravar este árduo caminho da Justiça pela via da extradição de pessoas amparadas pela legislação de um país, mas puníveis em outro. O Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) da Argentina, um dos líderes da investigação regional na matéria, estudou os diferentes caminhos que Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai seguiram. O Página/12 conversou com a coordenadora da área de investigação do CELS, Lorena Balardini.
A entrevista é de Marcelo Justo e publicada no jornal argentino Página/12, 29-03-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Historicamente, como vocês avaliam a caminhada das causas dos direitos humanos nestes países?
Está claro que cada país tem sua especificidade, mas também que o que acontece em um país, de negativo ou positivo, tem efeitos nos outros. O efeito da jurisdição universal e a prisão de Pinochet, conhecido como o efeito Pinochet pelas pessoas que estudam como tudo isto evoluiu na América Latina, teve um claro impacto sobre os diferentes países. Na Argentina, poucos dias depois da prisão de Pinochet, deu-se a prisão de Videla e Massera pelo roubo de bebês, um dos crimes que podia ser perseguido penalmente por ficar fora das características das leis de ponto final e obediência devida, e no Chile começa a apresentação de demandas massivas. Outro fenômeno regional indiscutível é a importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que dá argumentos às Cortes Supremas dos diferentes países para que não se anistie crimes de lesa humanidade. A sentença no caso Barrios Altos foi fundamental para a possibilidade de um julgamento de Alberto Fujimori no Peru e para a inconstitucionalidade das leis de anistia na Argentina.
No relatório de 2013, o CELS reconhecia problemas comuns a todos estes países na consecução da Justiça. Mas alguns fazem parte das deficiências dos sistemas de justiça em geral e outros são mais específicos com relação aos direitos humanos.
Nós encontramos demoras na administração da justiça por falta de recursos, problemas em torno da tomada de testemunhos e o trato das testemunhas, como, por exemplo, no Chile, onde apenas recentemente se considerou os sobreviventes como vítimas, ou no Peru, onde existe uma enorme distância cultural entre as vítimas e os operadores judiciais, e não se toma o testemunho das vítimas e familiares como válido em um julgamento por sua suposta parcialidade. Outro problema é a escassa porcentagem de sentenciados em relação aos imputados, algo muito claro no Peru e na Argentina. Há também a recusa na aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos em Tribunais locais. Isto é particularmente preocupante no Brasil, Chile e Uruguai, como se viu numa recente sentença da Suprema Corte de Justiça do Uruguai, onde se declara inconstitucional a Lei 18.831, que anulou a Lei de Caducidade em 2012. Por último, há as discussões sobre a anulação das anistias que são matéria corrente no Brasil e no Chile, e agora novamente no Uruguai.
No Brasil, precisamente o primeiro empecilho foi a Lei de Anistia dos próprios militares, ratificada há quatro anos pelo Supremo Tribunal Federal. O governo de Dilma Rousseff instaurou a Comissão Nacional da Verdade em 2012. O testemunho do coronel retirado Paulo Malhães esta semana, no qual reconheceu torturas e assassinatos, marca os limites deste tipo de ziguezague. Como vocês avaliam a situação no Brasil?
Dos países que analisamos no Cone Sul, o Brasil é aquele em que menos se avançou, isto tem a ver com a Lei de Anistia, que é muito diferente da do resto dos países do Cone Sul. A vigência desta anistia e a recusa de levar em conta as recomendações do Sistema Interamericano são responsáveis pelo fato de que não se tenha conseguido avançar em causas penais. No ano passado, o novo Procurador manifestou-se favorável ao desmantelamento da anistia e do julgamento destes crimes. Havia muitas expectativas com relação às mudanças na Suprema Corte para que esta iniciativa prosperasse, mas são avanços muito graduais. É preciso ver o impacto que terão tanto a Comissão da Verdade nacional e as estaduais que se formaram. Creio que a informação que está saindo está rompendo uma ideia muito forte instalada no Brasil de que aquilo foi uma “ditabranda”, em comparação com o resto do Cone Sul, por não ter colocado em prática uma política sistemática de desaparecidos. As informações que começam a aparecer contradizem esta ideia.
No ano passado começou na Argentina um julgamento pelo Plano Condor. Que efeito teria uma condenação na Argentina sobre os militares ou civis implicados de outros países?
É preciso ter em conta que, embora os autores que estão sendo julgados sejam argentinos e um uruguaio, as vítimas são de todo o Cone Sul. É claro que o julgamento está gerando impacto no resto dos países. Sem dúvida, é uma oportunidade para que fique plasmado em uma sentença que analise e distribua responsabilidade penal em relação à coordenação da repressão entre diferentes países. Fala-se de coordenação em geral, mas ainda não está comprovado como se realizou esta coordenação, o que ela implicou e que impactos teve. Este julgamento é uma oportunidade para a produção de informações, intercâmbio entre os países e a possibilidade de cooperar no envio de dados.
Poderia acabar provocando o julgamento de militares ou civis de outros países?
É preciso analisar as possibilidades de extradição que há em cada país. Neste julgamento há um imputado que é uruguaio, Manuel Cordero, que foi extraditado. Os demais uruguaios implicados na causa Condor foram julgados e condenados em seu próprio país. A consequência direta disto é que poderiam ser extraditados para a Argentina uma vez que terminaram de cumprir sua condenação em seu país. Há antecedentes, como o caso de Enrique Arancibia Clavel, o ex-agente da DINA chilena (Direção Nacional de Inteligência, organismo responsável pela repressão durante os anos de 1974 a 1977) condenado pelo assassinato do general chileno Carlos Prats e sua esposa em Buenos Aires e que foi extraditado à Argentina, onde cumpriu uma pena de 11 anos.
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Direitos humanos e verdade na América Latina. “Dos países que analisamos no Cone Sul, o Brasil é aquele em que menos se avançou”. Entrevista com Lorena Balardini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU