17 Fevereiro 2014
Não há dúvida de que a Congregação para a Doutrina da Fé era suprema sob os Papas João Paulo II e Bento XVI. Ninguém questionaria a sua supremacia quando o cardeal Joseph Ratzinger era o prefeito. Mas a Congregação suprema não parece mais tão suprema.
A análise é do padre jesuíta Thomas Reese, jornalista, publicada no National Catholic Reporter, 14-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Congregação para a Doutrina da Fé já foi conhecida como a Suprema e Sacra Congregação da Inquisição Romana e Universal. Mais tarde, tornou-se a Suprema Sacra Congregação do Santo Ofício. Mesmo depois do Concílio Vaticano II, quando ela ganhou o seu nome atual e perdeu o adjetivo "suprema", ainda era a chefe da Cúria Romana.
Essa é a Congregação que foi atrás dos chamados modernistas no final do século XIX e início do século XX. Impôs o fundamentalismo bíblico na Igreja até que a Divino Afflante Spiritu (1943) do Papa Pio XII liberou os estudiosos da Escritura a utilizar as modernas ferramentas literárias e científicas para estudar a Bíblia. Ela também silenciou o teólogo jesuíta americano John Courtney Murray, quando escreveu sobre assuntos de Igreja e Estado, e enfretou famosos teólogos franceses de antes do Vaticano II.
Depois do Vaticano II, a Congregação para a Doutrina da Fé foi atrás dos eticistas católicos que questionaram a proibição da Igreja sobre o controle artificial de natalidade. Nem os teólogos da teologia da libertação na América Latina, nem os teólogos asiáticos que trabalhavam em questões inter-religiosas estavam isentos de investigação. Mesmo os bispos estavam sujeitos à repreensão. Mais recentemente, ela estava perseguindo a Leadership Conference of Women Religious (LCWR).
A palavra da Congregação também era suprema na Cúria Romana. De acordo com a Pastor Bonus (1988), a constituição apostólica que rege a Cúria, os "documentos que estão sendo publicados por outros dicastérios [escritórios] da Cúria Romana, na medida em que eles tocam na doutrina de fé ou moral, devem ser submetidos à sua apreciação prévia" (artigo 54).
Uma vez que quase todos os documentos que saem da Cúria tratam de fé ou moral (exceto documentos sobre as finanças e as relações internacionais do Vaticano), a Congregação para a Doutrina da Fé revisava praticamente tudo que fosse publicado por outras Congregações e conselhos. Aqueles que se queixavam da falta de coordenação na Cúria muitas vezes não se dão conta desse ponto. Na verdade, a Cúria Romana era notável em sua capacidade de falar a uma só voz, e muito disso se deveu à Congregação para a Doutrina da Fé pelo controle mantido sobre outras Congregações e conselhos.
Por exemplo, sempre que o Conselho para o Diálogo Inter-Religioso quisesse emitir um comunicado, ele tinha que lidar com a Congregação para a Evangelização dos Povos e a Congregação para a Doutrina da Fé. Toda a vez que houvesse divergências, o Conselho para o Diálogo Inter-Religioso sempre perdia. Mesmo as traduções para o inglês da missa foram revistas pela Congregação suprema.
Não há dúvida de que a Congregação para a Doutrina da Fé era suprema sob os Papas João Paulo II e Bento XVI. Ninguém questionaria a sua supremacia quando o cardeal Joseph Ratzinger era o prefeito.
Mas a Congregação suprema não parece mais tão suprema. Ela foi criticada publicamente por um cardeal da cúria do Brasil, pelo presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, e por dois cardeais que são membros do Conselho de Cardeais, nomeados pelo papa a aconselhá-lo sobre a reforma do Vaticano. Até o Papa Francisco disse aos religiosos latino-americanos para não se preocupar com a Congregação.
• A decisão da Congregação para a Doutrina da Fé em 2012 de colocar a LCWR sob o controle de três bispos norte-americanos foi feita sem consulta ou conhecimento do escritório vaticano que normalmente lida com as questões da vida religiosa, reclamou o líder do escritório. Isso causou-lhe "muita dor", disse o cardeal João Braz de Aviz.
• O Papa Francisco encontrou-se com autoridades da Conferência Latino-Americana de Religiosos e relatou-se que ele teria dito: "Vocês vão se equivocar, vão fazer bobagem, isso acontece! Talvez até vão receber uma carta da Congregação para a Doutrina [da Fé] dizendo que vocês disseram tal e tal coisa... Mas não se preocupem. Expliquem o que tenham que explicar, mas sigam em frente...."
• O cardeal Reinhard Marx, de Munique, membro do Conselho dos Cardeais, emitiu publicamente uma crítica ao arcebispo Gerhard Müller, prefeito atual da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre o assunto de católicos divorciados em segunda união: "O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não pode parar as discussões."
• O arcebispo Robert Zollitsch, presidente da Conferência Episcopal Alemã, defendeu um plano para oferecer a comunhão aos católicos divorciados, apesar da oposição de Müller.
• O cardeal de Honduras Oscar Rodríguez Maradiaga, coordenador do Conselho dos Cardeais, disse ao jornal Kölner Stadt-Anzeiger que Müller "ainda está aprendendo". Sendo um professor alemão de teologia, disse Rodriguez Maradiaga, Müller está convencido de que algo pode "ser apenas certo ou errado - e é isso. Mas eu digo: o mundo, meu irmão, não é assim. Você deveria ser um pouco mais flexível quando você ouve outras opiniões, para que você não diga apenas: 'Não, isso é assim e ponto final'".
Mesmo um desses eventos teria sido notícia em tempos anteriores, mas cinco contratempos em menos de um ano era inimaginável há pouco tempo. Nada como isso acontecia desde o Concílio Vaticano II, quando o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Alfredo Ottaviani, foi atacado pelo cardeal Josef Frings, em um discurso escrito pelo então padre Ratzinger.
Em janeiro, o Papa Francisco deu sua palestra mais explícita sobre o papel da Congregação para a Doutrina da Fé, quando falou aos membros da Congregação. Embora confirmando seu papel em "promover e proteger a doutrina da fé", ele seguiu em frente, deixando a Congregação ciente da tentação de domesticar a fé ou de reduzi-la a teorias abstratas.
Desde os primeiros tempos da Igreja, a tentação existe em compreender a doutrina em um sentido ideológico ou reduzi-la a um conjunto de teorias abstratas e cristalizadas (Evangelii gaudium, 39-42). Na realidade, a doutrina tem o único propósito de servir a vida do Povo de Deus e procura assegurar à nossa fé um alicerce seguro. Grande, de fato, é a tentação de nos apropriarmos dos dons da salvação que vêm de Deus, para domesticá-los - talvez até com uma boa intenção - aos pontos de vista e ao espírito do mundo. E essa é uma tentação que é constantemente repetida.
A Congregação para a Doutrina da Fé tem uma "tarefa delicada" que deve ser sempre feita em colaboração com os bispos locais e as conferências episcopais. O Papa Francisco quer uma Congregação para a Doutrina da Fé amável e gentil, que procure sempre ter "um diálogo construtivo, respeitoso e paciente com os autores", disse ele. "Se a verdade exige fidelidade, esta última cresce sempre na caridade e na ajuda fraterna para com aqueles que são chamados a amadurecer e a esclarecer suas convicções". Em outras palavras, a Congregação deve se "destacar nas práticas de colegialidade e diálogo".
Thomas C. Fox, do NCR, e outros observadores interpretaram isso como se o papa estivesse dizendo: "Moderem o tom". Os teólogos certamente estão esperando os dias em que as investigações de seus colegas estejam acabadas. "Eu não ouvi falar nada, mas acho que é muito cedo para dizer que foi dada uma trégua", disse o padre canonista James Coriden. Tal trégua encorajaria teólogos e bispos a trabalharem juntos novamente, como fizeram no Concílio Vaticano II.
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Congregação doutrinal do Vaticano não é mais tão suprema assim. Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU