Por: André | 17 Setembro 2015
À medida que passam os dias é cada vez mais evidente o alcance revolucionário dos motu proprio publicados no dia 8 de setembro pelo Papa Francisco – o segundo [Mitis et misericors Iesus] é para as Igrejas católicas de rito oriental – sobre a reforma dos processos de nulidade matrimonial.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 15-09-2015. A tradução é de André Langer.
O próprio Papa, no começo do documento [Mitis Iudex Dominus Iesus], indica o motivo da reforma: “O grande número de fiéis que, desejando responder à sua própria consciência, são muitas vezes dissuadidos pelas estruturas jurídicas da Igreja”.
Na apresentação oficial dos motu proprio, o presidente da comissão que elaborou a reforma, dom Pio Vito Pinto, decano da Rota Romana, transformou o motivo em meta: “Passar do restrito número de poucos milhares de nulidades à enorme quantidade de pessoas infelizes que poderiam ter a declaração de nulidade, mas que não a obtém por causa do sistema em vigor”.
Já há algum tempo Francisco está mais do que convencido de que ao menos a metade dos matrimônios celebrados na Igreja em todo o mundo é nula. Disse isso na coletiva de imprensa de 28 de junho de 2013 que aconteceu durante o voo de volta do Rio de Janeiro. E voltou a dizê-lo ao cardeal Walter Kasper, como este deu a conhecer em uma entrevista que concedeu a Commonweal, no dia 7 de maio de 2014.
Portanto, também estes fiéis insatisfeitos que esperam ver reconhecida a nulidade de seu matrimônio fazem parte, segundo a visão de Francisco manifestada por Pinto, desses “pobres” que estão no centro do seu pontificado. Milhões e milhões de “infelizes” à espera de um auxílio que lhes é devido.
O objetivo da reforma processual desejada por Jorge Mario Bergoglio é precisamente este: permitir às enormes multidões o acesso fácil, rápido e gratuito ao reconhecimento de nulidade de seus matrimônios. O Sínodo do ano passado referiu-se de maneira genérica (veja-se o parágrafo 48 da Relatio Final) ao melhoramento dos processos. Mas um número grande de padres sinodais se havia pronunciado contrário a uma das reformas propostas pelas diferentes partes. Ora, são precisamente estas que se encontram agora nos motu proprio.
O processo ordinário
Os tipos de processo matrimonial que emergem da reforma são principalmente dois: um é o ordinário e o outro – inteiramente novo – é o chamado “mais breve”.
No processo ordinário, a principal novidade é a abolição da obrigatoriedade do duplo julgamento de nulidade. Bastará um só, como já se permitiu de maneira experimental entre 1971 e 1983 aos tribunais eclesiásticos dos Estados Unidos, se bem que depois foi preciso revogar esta concessão por causa do grande número de nulidades concedidas pelos tribunais e pela má fama de “divórcio católico” que disso derivava.
Um único julgamento, sem apelação, implica em reduzir a duração de um processo ordinário para apenas um ano.
Além disso, deverão ser criados tribunais eclesiásticos em cada uma das dioceses do mundo, mesmo nas menores e mais remotas, objetivo ainda muito distante para a Igreja católica hodierna por causa, principalmente, da falta de eclesiásticos e leigos especialistas em direito canônico.
Há também uma ulterior inovação ainda mais importante, expressa no novo cânon 1678 § 1 que substituirá o correspondente cânon 1536 § 2 do Código de Direito Canônico em vigor.
Enquanto que no cânon prestes a desaparecer “não se pode atribuir força de prova plena” às declarações das partes a não ser que “outros elementos as corroborem totalmente”, no novo cânon “as declarações das partes podem ter valor de prova plena” e serão avaliadas como tais pelo juiz “se não houver outros elementos que as desmentem”.
Pode-se entrever nisto uma exaltação da subjetividade da pessoa que apresentou o pedido de nulidade. Ela está em sintonia a quanto foi dito na apresentação oficial dos dois motu proprio tanto por dom Pinto, como pelo secretário da comissão por ele presidida, dom Alejandro W. Bunge, sobre o “motivo principal” que, na sua opinião, leva tantos católicos – no futuro uma “massa” – a dirigir-se aos tribunais eclesiásticos que tratam dos assuntos matrimoniais:
“A nulidade é solicitada por motivos de consciência. Por exemplo, com a finalidade de viver os sacramentos da Igreja ou para completar um novo vínculo que, ao contrário do primeiro, é estável e feliz”.
É, portanto, fácil prever que a velha controvérsia sobre a comunhão aos divorciados recasados fica, de fato, sem sentido, para ser substituída pelo recurso ilimitado e praticamente infalível da declaração de nulidade do primeiro matrimônio.
O processo “mais breve”
A maior novidade da reforma desejada por Francisco é o chamado processo “mais breve”.
Poderíamos, inclusive, chamá-lo de brevíssimo. Segundo os novos cânones pode começar e terminar no arco de apenas 45 dias, com o bispo ordinário como juiz último. E único.
O recurso a este procedimento abreviado é permitido “nos casos em que a manifestada nulidade do matrimônio esteja assentada sobre argumentos claramente evidentes”.
Mas há ainda outra coisa. Vista a lista superabundante de exemplos de circunstâncias que podem motivar este processo, inclusive no artigo 14 § 1 das “Regras processuais” anexadas ao motu proprio, podemos deduzir que este tipo de processo não é apenas autorizado, mas encorajado.
Este artigo diz literalmente: “Entre as circunstâncias que permitem a discussão da causa da nulidade do matrimônio por meio do processo mais breve [...] enumeram-se, por exemplo:
– essa falta de fé que pode gerar a simulação do consentimento ou o erro que determina a vontade;
– a brevidade da convivência conjugal;
– o aborto buscado para impedir a procriação;
– a permanência obstinada em uma relação extraconjugal no momento do casamento ou no período imediatamente posterior;
– a ocultação fraudulenta da esterilidade, de uma doença contagiosa grave, de filhos nascidos de uma relação precedente ou de ter estado na prisão;
– o motivo do matrimônio seja totalmente alheio à vida conjugal, ou seja, causado pela gravidez imprevista da mulher;
– a violência física infligida com vistas a arrancar o consentimento;
– a falta de uso da razão, comprovada com laudos médicos, etc.”
A lista assombra por sua heterogeneidade. Ela comporta inclusive circunstâncias como exercer violência física para arrancar o consentimento, efetiva causa de nulidade de um casamento. Mas inclui outras, como a brevidade da convivência conjugal, que não podem de maneira alguma fundamentar um pronunciamento de nulidade. E inclui outra, como a falta de fé, que embora difícil de verificar, é evocada cada vez com maior frequência como um novo e universal coringa para a nulidade. No entanto, estas circunstâncias estão enumeradas como equivalentes, acrescentando, além disso, um “etc.” final que induz a acrescentar outros exemplos à vontade.
Mas, além de heterogênea, a lista é equívoca. Em si mesma, enumera circunstâncias que simplesmente permitirão ter acesso ao processo “mais simples”; mas é facílimo que seja lida como uma lista de casos que permitem obter o reconhecimento de nulidade. Muitos casais viveram alguma das circunstâncias indicadas – por exemplo, uma gravidez antes do casamento – e é, portanto, natural que nelas surja a convicção de que, caso o solicitarem, o seu casamento pode ser dissolvido, dada também a pressão que a Igreja exerce sugerindo – precisamente na presença dessas circunstâncias – recorrer ao processo de nulidade, inclusive mais rápido.
Em resumo, se a isto se acrescenta que em cada diocese deverá funcionar um serviço preliminar de assessoramento que se ocupará de levar até este caminho a quem for considerado idôneo, o resultado previsível de um processo “mais breve” como este, uma vez iniciado, seria o de uma sentença de nulidade. Ou seja, segundo a opinião geral, um divórcio, como o próprio Papa Francisco parece pressagiar e temer ali onde escreve, no proêmio do motu proprio:
“Não me escapou o fato de que um julgamento abreviado pode colocar em risco o princípio da indissolubilidade do matrimônio”.
E prossegue: “Precisamente por isso, quis que neste processo o próprio bispo se constitua como juiz, posto que, conforme o seu ofício pastoral, ele é, com Pedro, o maior fiador da unidade católica na fé e na disciplina”.
Dom Pinto, na apresentação oficial da reforma, admitiu, no entanto, que “será difícil para um bispo com milhões de fiéis presidir pessoalmente a decisão das nulidades de todos os fiéis que a solicitarem”.
Como também não se deve esquecer que são poucos, pouquíssimos, os bispos que têm a competência necessária para fazer as vezes de juiz nesses processos.
Como no Oriente
Improvisada em menos de um ano e deliberadamente publicada antes do Sínodo sobre a Família de outubro próximo, a revolução dos processos matrimoniais decidida pelo Papa Francisco é, por conseguinte, um gigante com pés de barro. Podemos prever que sua colocação em prática será longa e dificultosa, mas que já teve efeitos imediatos na opinião pública, dentro e fora da Igreja.
O principal efeito é a difundida convicção de que na Igreja católica o divórcio e a bênção das segundas núpcias encontraram direito de cidadania.
Na apresentação oficial da reforma, Dimitrios Salachas, exarca apostólico de Atenas para os católicos gregos de rito bizantino, fez notar esta outra novidade nos dois motu proprio:
“Por quanto sei, é a primeira vez que, em um documento pontifício de índole jurídica, se recorre ao princípio patrístico da misericórdia pastoral, chamado ‘oikonomia’ pelos orientais, para enfrentar um problema como o da declaração da nulidade do matrimônio”.
Evidentemente, o Papa Bergoglio tinha em mente também este enfoque quando, há dois anos, durante a viagem de volta do Rio de Janeiro, disse:
“Os ortodoxos seguem a teologia da economia, como eles a chamam, e oferecem uma segunda possibilidade de matrimônio, permitem-no. Creio que este problema deve ser estudado”.
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Proibido chamá-lo de divórcio. Mas, como se parece com ele! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU