17 Setembro 2015
O Equador é o palco, há semanas, de uma série nacional de protestos convocada por sindicatos e movimentos sociais, entre os quais vários grupos indígenas. Enquanto o presidente Rafael Correa diz que os atos são organizados por “certos grupos” e que considera legitimo responder “pela força”, muitas vozes denunciaram uma escalada na repressão. É o caso do consultor e analista político de origem hispano-brasileira Decio Machado. Morador de Quito, ele trabalha em vários meios de comunicação na Europa e na América Latina. Foi assessor de Rafael Correa durante os dois primeiros anos de mandato, antes de deixar o cargo em 2010 e virar um crítico do governo.
Em entrevista a Opera Mundi, ele considera que o governo “cruzou uma linha com o nível desproporcional de violência utilizada pelas forças de segurança do Estado contra os manifestantes”. Segundo Machado, a chamada “Revolução cidadã” de Rafael Correa abandonou qualquer projeto de mudança profunda do país. A capacidade de comunicação do presidente é o que, para ele, explica como Correa ainda se mantém no poder nove anos após sua primeira eleição.
A entrevista é de Lamia Oualalou, publicada por Opera Mundi, 15-09-2015.
Eis a entrevista.
Indígenas, sindicalistas e outros setores da sociedade se mobilizam contra projetos de lei do governo. Qual é sua percepção sobre a reação do presidente Rafael Correa?
Em 13 de agosto, o movimento indígena e vários sindicatos convocaram conjuntamente uma mobilização indefinida, com uma longa lista de exigências. O principal objetivo é a oposição a uma série de reformas constitucionais promovidas pelo governo que buscam limitar os direitos de participação e de consulta dos cidadãos, militarizar a segurança pública, eliminar o direito de criar sindicatos nos serviços públicos e permitir a reeleição indefinida do presidente.
As pesquisas de opinião indicam que uma maioria significativa da sociedade equatoriana é contra essas medidas e quer ser consultada sobre o assunto. O governo, ciente de que perderia se as reformas fossem submetidas a um referendo, pretende adotar essas reformas no Legislativo, onde ainda tem maioria.
Eu acho que o presidente Correa cruzou uma linha que, durante os últimos protestos, com o nível desproporcional de violência utilizada pelas forças de segurança do Estado contra os manifestantes, causou centenas de feridos e a detenção de 95 civis. Os prisioneiros são indígenas, camponeses e membros de organizações sociais. Para nós, que nos consideramos de esquerda, não existe nenhum tipo de justificativa para o exercício da repressão estatal contra setores sociais que têm sido, historicamente, e continuam a ser, marginalizados em nossa sociedade.
O senhor trabalhou como assessor do presidente Correa durante os dois primeiros anos de seu primeiro mandato. Por que deixou o cargo?
O governo do presidente Correa teve o apoio de muitas pessoas que vieram da militância política de esquerda. No entanto, apareceram rapidamente contradições entre o discurso revolucionário e uma prática antagônica. Naquele momento, fiz parte de um grupo que entendia que estávamos diante de um governo em disputa entre as tendências mais transformadoras e setores que respondiam a lógicas modernizadoras do grande capital. Eles acabaram ganhando. Por razões de coerência e de ética, muitos foram gradualmente abandonando a colaboração com o governo. No meu caso, eu deixei meu cargo de assessor no início de 2010.
Como foi o impacto da chamada “Revolução Cidadã” introduzida por Rafael Correa? Como mudou o país?
Eu acho que o processo político patrocinado pelo “correísmo”, que não tem nada de revolucionário, teve um papel necessário para a modernização tecnológica e econômica. Com lógicas neodesenvolvimentistas, Correa modernizou o Estado, melhorou a infraestrutura pública, adequando o país à realidade de um mundo globalizado.
Este desenvolvimento foi possível graças ao boom dos preços das commodities. O governo do presidente Correa é o que teve mais recursos na história do Equador. Pessoalmente, acho que esta fase de transição para a modernização do país acabou, como também acabou o ciclo de prosperidade econômica que temos visto na região. O governo continua negando a gravidade da crise. No entanto, já fez muitos cortes no orçamento, demitindo funcionários públicos e acabando com novos programas de investimentos. Enquanto isso, a dívida externa está crescendo de maneira assustadora. Isso provoca um forte desgaste do governo. Vamos ver se ele consegue emplacar de novo nas eleições presidenciais e legislativas em fevereiro de 2017, mas já fica claro que ele perdeu o apoio maciço das classes populares que tinha antes.
Em fevereiro de 2013, o presidente Rafael Correa conquistou um novo mandato com larga vantagem e ainda no primeiro turno. Em quase nove anos no poder, que tipo de relação ele estabeleceu com a população?
Eu diria que é um poder neopopulista. A sua legitimidade está baseada em um discurso centrado no povo, buscando uma forte reação emocional deste público. É um novo estilo de representação político-eleitoral que reproduz o velho: os caciques, o paternalismo, as estruturas sociais hierárquicas, o desmantelamento das organizações sociais autônomas, e a subordinação da sociedade ao poder político.
No entanto, o governo se define como progressista. Qual é sua avaliação?
O “correísmo” é simplesmente a expressão política do fenômeno da modernização empreendida pelo capital nacional após a crise financeira de 1999 e 2000. Se você analisar os resultados financeiros dos bancos privados e das grandes corporações capitalistas que monopolizam a maioria dos setores da economia equatoriana, vai ver que estão lucrando muito mais agora que na época do neoliberalismo.
Como funciona o aparato institucional no Equador?
Todos os poderes articulam várias formas para se legitimar. Isso gera uma gama muito ampla de ações que vão desde a manipulação psicológica à violência física. No caso do Equador, o governo introduziu um modelo onde a independência entre os poderes do Estado não existe, com um Legislativo e um Judiciário subordinados ao Executivo. Nesse contexto, a interpretação e a aplicação da lei são manipuladas pelo poder político, em nome da “ordem" social. Os movimentos sociais são vistos pelo governo como estratégias políticas para desestabilizá-lo, motivo pelo qual ele acaba criminalizando os protestos.
Como o senhor qualifica as capacidades de comunicação do presidente Rafael Correa?
Ele tem um grande potencial comunicador. Há quase nove anos que Rafael Correa consegue se manter contra toda a mídia privada do país e até mesmo contra alguns meios de comunicação internacionais. Isso não teria sido possível sem este talento de comunicador. No entanto, deve-se notar que a credibilidade do presidente agora está em declínio. Em junho, 53% dos equatorianos diziam não acreditar na palavra dele, segundo as pesquisas. E esta tendência deveria se aprofundar.
O senhor considera o poder de Correa como neopopulista. Qual é o impacto desta visão sobre a comunicação?
O neopopulismo entende a comunicação e mídia exclusivamente como um campo de batalha. Tente subordiná-los, para que virem uma ligação entre o líder e as massas.
Correa rasga os jornais durante suas aparições públicas e define a imprensa privada como corrupta. Agora, uma das 16 emendas constitucionais desejadas pelo governo tem como objetivo tornar a comunicação um serviço público. Isto é uma aberração, porque significa que a comunicação, tal como o abastecimento de água e eletricidade, a educação e a saúde, deveria ser controlada pelo Estado. Enxergar a comunicação como um serviço público atenta contra os princípios de independência e veracidade que temos que exigir dos meios, já que os torna dependentes de interesses do Estado.
Qual é sua visão da mídia pública equatoriana?
De acordo com o Cordicom (Conselho Regulador da Informação e da Comunicação), um órgão teoricamente autônomo, mas composto inteiramente por pessoas ligadas ao governo, existem hoje 61 meios de comunicação nacionais no Equador. Destes, 12 são de propriedade do Estado, ou seja, o maior holding midiático hoje no país esta a serviço do governo. As informações transmitidas são grotescamente tendenciosas a favor do governo. Também funcionam como ferramentas para manter a estratégia oficial do culto à personalidade do presidente Correa, uma verdadeira propaganda.
Como são hoje são os meios alternativos?
A mídia independente é muito minoritária e marginal no Equador. A atual Lei de Comunicações incorporou algumas demandas históricas dos movimentos sociais, como a distribuição equitativa do espectro radioelétrico equatoriano. Esta lei estabelece que 34% das frequências são destinadas a meios de comunicação comunitários, 33% para a mídia privada, e 33% para a mídia pública. Depois de mais de dois anos após a adoção desta lei, a atribuição de frequências para a mídia comunitária não ultrapassa 4%. Isto demonstra a falta de vontade do governo para promover a comunicação comunitária, alternativa e independente.
O senhor falou de estratégia de propaganda do governo. Pode explicar melhor?
A estratégia de marketing e propaganda do governo é bem inovadora, porque usa técnicas empresariais, adaptadas para a comunicação política. Assim foi desenvolvido, com a ajuda de consultores internacionais, um “branding” — uma técnica desenvolvida na área de marketing para a construção de marcas — associado ao nome e a figura de Rafael Correa. Tudo está perfeitamente desenhado e não há espaço para a espontaneidade. Para dar apenas um exemplo, o sistema define o processo político como “Revolução Cidadã”, uma expressão cujas iniciais correspondem com o nome do presidente. A mensagem é clara, a Revolução Cidadã não é um conjunto de ideias ou uma ideologia, é o próprio Rafael Correa.
Essa estratégia de comunicação procura transformar o presidente em um “lovemarks”, uma técnica inovadora usada na publicidade comercial que busca a lealdade dos consumidores em relação a uma marca. Assim, o rosto do presidente Correa aparece em todos os lugares, e sua voz fecha os comerciais das propagandas de todos os ministérios. Chegou a sancionar os meios que deixaram de noticiar alguma de suas viagens fora do país.
De maneira geral, qual é sua visão dos novos regulamentos de mídia adotados em vários países da América do Sul durante a última década?
A liberdade de imprensa na América Latina teve uma existência muito frágil, por razões históricas, o que impediu a construção de uma cultura jornalística independente. A limitação ideológica das oligarquias latino-americanas, assim como a concentração de riqueza em poucas mãos, são elementos que dificultam o pluralismo jornalístico e a informação objetiva.
Os novos regulamentos que foram adotados em muitos dos nossos países têm aspectos positivos. O problema com estas leis, além de perguntas específicas sobre alguns artigos, é como esses governos entendem sua aplicação. Criar uma instituição que fiscaliza a mídia na sua forma de emitir as informações é ótimo. No entanto, se este órgão não for independente do governo, ele acaba sancionando o pensamento crítico, enquanto, do outro lado, a mídia estatal distorce as informações em função dos interesses do poder político, numa impunidade total.
Os chamados governos progressistas latino-americanos não apoiam a construção de uma mídia alternativa, comunitária e independente. Neste sentido, não acredito que estas novas leis têm como finalidade democratizar o acesso para a comunicação e dar voz àqueles que historicamente nunca foram ouvidos em nossos respectivos países.
Qual é a responsabilidade dos meios de comunicação, que muitas vezes atuam como ator político de oposição?
A responsabilidade dos meios de comunicação privados que funcionam como ferramentas ao serviço da oposição política é exatamente a mesma que a dos meios de comunicação públicos ao serviço dos interesses políticos de seus respectivos governos. Ambos não cumprem um objetivo de interesse social, já que não transmitem informações precisas e não respeitem o pluralismo de opinião. Ambos acabam aplicando a frase de Winston Churchill, quando ele disse que "a verdade é tão preciosa que deve ser cuidada por um segurança da mentira".
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Equador: Correa abandonou projeto de mudança profunda no país, diz ex-assessor de presidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU