14 Agosto 2015
"Estamos diante de uma revolução evangélica. Na qualidade de “profetas e profetisas da vida”, participemos dessa revolução", escreve Marcos Sassatelli, Frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG, ao comentar o discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia e cuja íntegra pode ser acessada aqui.
Eis o artigo.
Neste 2º artigo sobre o 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares destaco o primeiro ponto marcante do Discurso do Papa Francisco: precisamos e queremos uma mudança de estruturas.
Com firmeza, Francisco declara: “começamos por reconhecer que precisamos duma mudança”. Para que não haja mal-entendidos, ele esclarece: “falo dos problemas comuns de todos os latino-americanos e, em geral, de toda a humanidade. Problemas que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode resolver por si mesmo”. Depois deste esclarecimento, o Papa propõe que nos coloquemos três perguntas.
Primeira: “reconhecemos que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade?”
Segunda: “reconhecemos que as coisas não andam bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida se apodera até dos nossos bairros?”
Terceira: “reconhecemos que as coisas não andam bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça constante?”
Afirma, pois, com objetividade: “então digamo-lo sem medo: precisamos e queremos uma mudança”.
Fraternal e carinhosamente, o Papa lembra: “nas cartas de vocês e nos nossos encontros, relataram-me as múltiplas exclusões e injustiças que sofrem em cada trabalho, em cada bairro, em cada território. São tantas e tão variadas como muitas e diferentes são as formas próprias de as enfrentar. Mas há um elo invisível que une cada uma destas exclusões: conseguimos reconhecê-lo? É que não se trata de questões isoladas”.
Com realismo, Francisco diz ainda: “pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza? Se é assim - insisto - digamo-lo sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos.... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”.
O Papa continua insistindo: “queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que atinja também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença”. Pela coragem de dizer a verdade e pela clareza de suas palavras, Francisco é realmente um grande profeta do nosso tempo!
Como um irmão e companheiro de caminhada, o Papa afirma: “hoje quero refletir com vocês sobre a mudança que queremos e precisamos. Como sabem, recentemente escrevi sobre os problemas da mudança climática. Mas, desta vez, quero falar duma mudança noutro sentido. Uma mudança positiva, uma mudança que nos faça bem, uma mudança - poderíamos dizer - redentora. Porque é dela que precisamos. Sei que vocês buscam uma mudança e não apenas vocês: nos diferentes encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma expectativa, uma busca forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo. Mesmo dentro da minoria cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste sistema, reina a insatisfação e sobretudo a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte desta tristeza individualista que escraviza”.
Francisco - sempre com clareza - continua dizendo: “o tempo, irmãos e irmãs, parece exaurir-se; já não nos contentamos com lutar entre nós, mas chegamos até a ter o assanhamento de lutar contra a nossa casa. Hoje, a comunidade científica aceita aquilo que os pobres já há muito denunciam: produzem-se danos talvez irreversíveis no ecossistema. Castiga-se a terra, os povos e as pessoas de forma violenta”.
E ainda: “por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o ser humano, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum”.
Em tom coloquial, o Papa continua dizendo: “não quero alongar-me na descrição dos efeitos malignos desta ditadura subtil: vocês os conhecem! Mas também não basta assinalar as causas estruturais do drama social e ambiental contemporâneo. Sofremos de um certo excesso de diagnóstico, que às vezes nos leva a um pessimismo ilusório ou a rejubilar com o negativo. Ao ver a crônica dos crimes de cada dia, pensamos que não haja nada que se possa fazer, além de cuidar de nós mesmos e do pequeno círculo da família e dos amigos”.
Identificando-se com os trabalhadores e trabalhadoras explorados e oprimidos, ele declara: “que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos trabalhistas? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador, que dificilmente consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, do meu povoado, da minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma solução para os meus problemas?”
Francisco - que confia plenamente nos trabalhadores e trabalhadoras - responde: “Muito! Podem fazer muito”. Vocês, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito”.
Em sua opção pelos pobres, que, na realidade, é uma entranhável solidariedade para com eles, o Papa conclui: “atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas mãos de vocês, na capacidade de vocês se organizarem e promoverem alternativas criativas na busca diária dos ‘3 T’ (trabalho, teto, terra), e também na participação de vocês como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!”.
Como já disse, estamos diante de uma revolução evangélica. Na qualidade de “profetas e profetisas da vida”, participemos dessa revolução!
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Discurso de Francisco aos participantes do 2º EMMP - Precisamos e queremos uma mudança de estruturas - - Instituto Humanitas Unisinos - IHU