14 Julho 2015
Num mundo anestesiado, a dor virou escória que a medicina tem de resolver.
Escrever tem seu componente de dor. Escrever então um compêndio sobre a própria - a dor em si, comezinha, aguda ou crônica - parece trabalho hercúleo. Qual é a dor que deveras sente? O antropólogo francês David Le Breton adiou como pôde a amplitude da tarefa. Mas em 2013 juntou todos os seus achados sobre o corpo, as emoções e a modernidade e lançou Antropologia da Dor, publicado no Brasil pela editora Fap-Unifesp.
É livro de ponta para quem deseja entender algo que, como ele diz, envolve toda a espessura do homem. “Se a dor é uma bússola que aponta o aparecimento de uma doença a ser tratada”, afirma Le Breton, “ela obedece a diversos polos e embaralha a sagacidade; resplandece no dedo queimado e se cala no desenvolvimento de um câncer que em pouco tempo será fatal.” Acontece que o ser humano não é uma máquina nem a dor um mecanismo, continua. O elo entre o primeiro e a segunda está costurado por ambivalências, afetividades e contextos socioculturais, que as tomografias não conseguem mapear.
A entrevista é de Mônica Manir, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 12-07-2015.
Sendo a dor a principal motivação para as consultas médicas, Le Breton dedica parte de seus estudos à ciência de Hipócrates. “Percebida como inútil, como estéril, a dor é uma escória que o progresso tem obrigação de dissolver. Ela se tornou um escândalo, à semelhança da morte.” Tão curto ficou o limiar da intolerância que a antalgia ultrapassou o patológico e atingiu os partos. É por aí que começa esta entrevista. Numa semana em que o governo brasileiro propôs travas à epidemia de cesáreas, muitas vezes motivadas pelo medo da mulher de enfrentar a natureza de dar à luz, esse professor de Estrasburgo respeita, mas desconstrói a “dor das dores”. E se prolonga por outros vários aspectos dessa coisa que não raro detona a alma, mas, uma vez superada, invariavelmente revigora a vontade de existir.
Eis a entrevista.
O Brasil é campeão em cesáreas. Pesquisas atribuem esse recorde, em grande parte, ao medo que as mulheres sentem da dor do parto, dita “a pior de todas”. Pelas suas pesquisas, ela estaria no topo desse ranking?
Acho que é preciso ligar essa constatação à crescente analgesia da vida cotidiana. Vale lembrar que desde a origem da humanidade as mulheres deram à luz sem a ajuda da medicina, mas tendo em compensação o apoio de mulheres da sua comunidade. E tudo corria muito bem.
Durante o parto a dor não está ligada a doenças ou a um acidente, ela é aguda e provisória, e a parturiente sabe que logo dará à luz. Algumas mulheres têm um trabalho de parto mais fácil que outras. Sentem a dor, mas não necessariamente a associam a um sofrimento. Querem viver o parto como um acontecimento íntimo, traduzindo uma metamorfose interior que exige toda a sua lucidez. A dor está amplamente sob o império do sentido, as diferenças se referem ao seu grau. O sofrimento é mais ou menos intenso de uma mulher para outra de acordo com a sua história pessoal, sua filiação social e cultural, sua experiência num parto anterior, as representações que tem dele, o valor que representa para ela a criança que vai nascer, a presença ou não de outras pessoas em torno, sobretudo seu companheiro. Portanto, é falso afirmar que a dor do parto é a pior que existe. Milhões de mulheres ficariam chocadas ao ouvir tal opinião. Que algumas temem o parto e sofrem durante o processo eu compreendo, mas isso traduz bem uma experiência fundamental da condição humana: colocar no mundo uma criança hoje tornou-se um processo técnico em virtude da sua medicalização. Conseguimos convencer as mulheres de que o parto é uma experiência terrível, que deve ser absolutamente supervisionada por homens.
Homens e mulheres costumam manifestar o sofrimento de maneira diversa?
Existe uma diferença de gênero, mesmo que seja difícil, obviamente, penetrar na intimidade física de cada um. Mas resistir à dor, no caso do homem, ainda tem um relativo valor de virilidade. Encontramos isso em muitas culturas. Ser homem implica resistir às provações, sob pena de ser mal reputado. Um homem “delicado” não é, de modo nenhum, um homem.
Socialmente, a mulher é mais livre para exprimir sua dor, sua feminilidade não é questionada. Ao contrário, os estereótipos sociais apreciam essa fragilidade da mulher, que leva o homem a ter uma atitude protetora em relação a ela. Claro que o mundo vem mudando. As feministas mostraram a importância das mulheres como profissionais da saúde, sua proximidade da dor e do sofrimento dos outros, ao passo que os homens, médicos, por exemplo, são cada vez “menos mulheres”. Com frequência se mantêm a distância, como puros técnicos.
Médicos ainda desenvolvem uma carapaça? Ou a medicina está se humanizando?
A carapaça existe, e muitas vezes produz desumanidade, incompetência, impossibilidade de se identificar com a angústia da pessoa e, portanto, de tratá-la. Trabalho há muito tempo na questão da dor e conversei com numerosos pacientes. A experiência mostra que o médico fixado no organismo só se interessa pela dor, e não pelo sofrimento. Ou seja: a experiência vivida por seu paciente, ele nem mesmo a escuta. Seus olhos estão fixados nas imagens ou nos exames. Para mim, o trabalho do médico implica na capacidade de criação, de invenção, de recuperação, um jogo entre o conhecimento e o que ele sente, e que o leva a retomar uma conversa ou um sintoma. O médico que se entedia sem o saber e se refugia num parecer técnico, acadêmico, que torna os pacientes intercambiáveis e os transforma em puros organismos, corre o grande risco de decepcionar os atendidos em busca de refrigério - ainda que esteja em ressonância com aqueles que, sem se darem conta, se agarram a seus sintomas a fim de continuarem a existir. Penso que a eficácia terapêutica implica um mínimo de empatia.
Então o senhor valoriza o efeito placebo?
Todo dispositivo médico, do local da consulta ou tratamento à qualidade humana do médico ou das pessoas encarregadas de prestar os cuidados, somado ao círculo de pessoas chegado ao paciente e seu próprio desejo de sarar, tudo isso constitui uma fórmula alquímica que interfere no processo da cura. A consulta não significa apenas coletar dados para estabelecer um diagnóstico e definir o tratamento. Ela já é uma orientação, um dispositivo de influência, que transparece nas palavras e gestos do médico, no tom da sua voz, nas feições do seu rosto. Queira ou não, para o melhor ou o pior, tudo o que o paciente presume nas entrelinhas do que o especialista diz duplica o enunciado por ele. É esse o efeito, a eficácia simbólica, o impacto material de uma palavra, um gesto, um ritual.
Drogas psicodélicas voltaram a ser estudadas para alívio do sofrimento, num primeiro momento apenas em pacientes terminais. O que o senhor acha dessa retomada depois de um período de ostracismo?
A importância social da dor crônica, que afeta centenas de milhões de pessoas, mostra como são imensos os avanços a serem feitos para se conseguir verdadeiramente aliviá-la. Como nenhuma panaceia é possível diante da multiplicidade de dados implícitos a cada tipo, um paciente deve recorrer a um uso razoável de tratamentos conjuntos e a competências diversas e jamais esperar passivamente o alívio ou a cura. É preciso ajudar os tratamentos a nos ajudarem. As pesquisas sobre os analgésicos são bastante ativas, mas outros tratamentos estão à disposição: acupuntura, homeopatia, osteopatia, etc. Há também o que chamo de técnicas de sentido. Apoiadas numa disciplina do corpo, permitem exercer um controle daquilo que se sente: relaxamento, visualização de imagens mentais, hipnose, auto-hipnose, meditação, massagens. Toda digressão é propícia para o alívio. Deixando de pensar no seu sofrimento, ou seja, não investindo mais nele, o indivíduo corta a sua energia. O envolvimento no trabalho ou em outra atividade que considere importante também possui impacto analgésico. O sentimento de controle faz com que a pessoa fique menos focada no incômodo.
Como uma pessoa que foi torturada encara a existência?
A tortura é o exercício de uma crueldade absoluta do carrasco contra alguém incapaz de se defender. Técnica de aniquilamento da identidade por meio da combinação de violências físicas e morais, ela satura a vítima de sofrimento com tal ferocidade que o único limite é a morte. A consciência de que são outros homens que torturam, e com toda a tranquilidade, acaba com a confiança no mundo. Uma dor infligida de maneira traumática e deliberada deixa um traço de sofrimento mesmo após a libertação e a cicatrização das feridas. O sobrevivente não consegue esquecer, a sua existência não é mais que a sombra da tragédia vivida. A clínica dos sobreviventes de tortura implica inumeráveis acondicionamentos para não reavivar o terror.
Entretanto, mesmo nos piores casos, alguns sobreviventes retomam uma existência mais ou menos propícia. Um exemplo, entre outros: durante o longo tempo de tortura nas prisões da ditadura militar, o escritor uruguaio Carlos Liscano tinha a convicção de que, se denunciasse seus amigos, os carrascos lhe arrebatariam qualquer possibilidade de olhar esses amigos no rosto e um dia retomar o fio da sua existência. O remorso seria avassalador. Diante dele, a dor infligida pelos carrascos é pequena, mesmo pagando o preço de exações suplementares. Liscano se aferra apaixonadamente àquilo que chama de dignidade. “Talvez não seja a dignidade do militante político, mas uma outra, mais primitiva, feita de valores simples, apreendidos não se sabe quando, talvez na mesa da cozinha de casa quando criança ou nos bancos da escola.” O sofrimento, sempre, é uma questão de sentido.
Sob a perspectiva da dor, qual a marca de uma sociedade cada vez mais envelhecida?
O prolongamento da vida devido ao aprimoramento das condições de existência resulta em inúmeras patologias que não existiam antes - ou pelo menos não com tamanha força estatística. Não basta acrescentar anos à vida, é importante somar vida aos anos. Muitos idosos vivem hoje uma velhice feliz. Mas para outros o preço paradoxal a pagar por uma existência mais longa se traduz num crescente confronto com a dor, a doença, a incapacidade, a solidão, o sofrimento. Essa será nossa sorte comum. É fundamental que nossas sociedades reflitam sobre como cuidar de uma população que envelhece quase sempre afetada por dores crônicas.
O emprego de cuidados paliativos pode, ao poucos, diminuir o número de pessoas que requerem a eutanásia, por exemplo?
Estudos mostram que a demanda pela eutanásia nasce do abandono de um doente enfrentando um fim de vida sem significado, sem o reconhecimento dos outros, sentindo a indiferença ou a reprovação dos que cuidam dele. Mais nada confere valor a uma existência que ele considera residual, até indigna. No entanto, o acompanhamento, os cuidados paliativos podem arrancar o indivíduo da sua solidão, neutralizando o seu desejo de morrer e restaurando o valor da existência. A experiência na cabeceira do doente atesta a modulação assim exercida sobre o sofrimento, às vezes a sua suspensão. O alívio da dor, se possível, é reforçado pela qualidade da presença daqueles que o cercam, uma atenção serena. No momento último da existência, o tratamento médico não é suficiente se o indivíduo se submete apenas a tratamentos de rotina. Somente uma fisionomia amiga dá o prazer de habitar as últimas horas da vida preservando o valor do mundo.
No capítulo que trata da cultura esportiva, o senhor destaca o boxe, que representaria “uma figura exemplar do uso social da dor”. Mas muitos analistas não o consideram uma prática esportiva, justamente por esse aspecto “violento”. Como o senhor o classificaria?
Uso exemplar da dor não quer dizer necessariamente violência. Um combate é um ritual, que é controlado. A troca de golpes não é feita às cegas. E, se um boxeador é ferido, o juiz pode parar o combate. O boxe consiste não só do nocaute, mas da fragilização do adversário, por meio da intensidade física da luta e da série de golpes. Os boxeadores precisam saber encaixá-los, daí os constantes rostos contundidos, as cicatrizes que marcam seu corpo.
A dor dimensiona a felicidade?
Sim, a dor, especialmente a crônica, arruína a vida. Ela torna irreconhecíveis os pacientes, que sentem que sua existência lhes foi arrebatada. Impõe uma vida rompida, destroçada. É um maremoto que arrasta tudo à sua passagem. Nada é mais como antes, e cada lembrança anterior à instalação da dor está envolta na nostalgia de um “nunca mais”. A antiga segurança, as familiaridades dos comportamentos são suspeitas. O indivíduo coloca em xeque a evidência do seu próprio ser. Daí a felicidade sentida, a sensação de renascimento quando a dor diminui, se torna tolerável ou desaparece completamente.
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A duras penas. Entrevista com David Le Breton - Instituto Humanitas Unisinos - IHU