Por: Jonas | 25 Março 2015
Um livro para jovens, um romance trepidante, artigos jornalísticos de uma grande qualidade analítica, reflexões sobre o futebol dignas de uma enciclopédia filosófica, textos sobre o rock ou a duvidosa cultura digital e um compromisso político com seu país sem concessões. O escritor mexicano Juan Villoro (foto) é uma fonte narrativa de uma apurada delicadeza. Villoro é, também, um dos intelectuais mexicanos que lideram essa corrente moderna de crítica radical ao estado que surgiu no México diante das revelações sobre os assassinatos e desaparecimentos massivos de pessoas.
Vencedor dos prêmios Villaurrutia e, em 2004, Herralde, por conta de seu romance El testigo, Juan Villoro possui uma obra grandiosa tecida mediante uma variedade de temas que, segundo explica, é a sua salvação do eterno medo do tédio e da repetição. Não há nada repetitivo na obra e na narrativa verbal deste autor que combina uma infinita fantasia com um rigor estrito, sempre atravessado por um sentido de humor pouco comum nestes tempos. Villoro é um autor de jogos e enigmas para renovar nosso olhar sobre a realidade, um autor fronteiriço, cuja escrita leva o leitor a conquistar mundos. Fala com uma pontualidade pedagógica e profunda sem que o tema, a política, o futebol ou a literatura modifiquem sua atitude.
O guatemalteco Augusto Monterroso foi professor de Villoro em uma oficina literária organizado pela Universidade do México (UNAM). Há entre as duas obras laços restauradores. Do primeiro romance publicado em 1991, El disparo de Argón, até o último, no ano passado, Apocalipsis (incluindo tudo), Juan Villoro publicou seis romances, seis livros de contos e várias recopilações de seus artigos jornalísticos. Para este autor, o melhor romance da história é Dom Quixote, o melhor gol do mundo é o que marcou Maradona no Mundial do México, e a vida pode se definir exatamente como uma partida de futebol, com seus 90 minutos de duração, seus escassos 10 minutos de sonho e a figura do árbitro como símbolo do sistema de injustiças da existência. Nesta entrevista ao jornal Página/12, realizada na esplêndida biblioteca do Colégio Nacional do México, Juan Villoro esmiúça este México de hoje, o melhor da literatura, a necessidade de salvar a linguagem das palavras e as conexões secretas entre o futebol e a própria vida.
Fonte: http://goo.gl/lGMuuG |
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 22-03-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você disse, há pouco, que se o México não desse um passo para trás, caía no abismo. A imagem é densa e esboça uma sociedade em um momento crítico.
A sociedade inteira dá a impressão de estar à beira do abismo. Por um lado, o governo não tem respostas aos muitos problemas nacionais, por outro, também não há uma oposição cívica, democrática, que tenha canalizado um protesto de tal forma que possamos vislumbrar um horizonte de futuro. Estamos à beira do estouro ou próximo do abismo.
Para você, o que aconteceu em Iguala, com os 43 estudantes de Ayotzinapa assassinados e desaparecidos, trata-se do resultado ou da convergência de quais outros fatores?
Acredito que em Ayotzinapa foram cristalizados três fatores da história recente do México. O primeiro é o desgaste acumulado pela violência. O presidente Felipe Calderón foi mandatário de 2006 a 2012 e saiu do poder deixando para trás 80.000 mortos e 30.000 desaparecidos. Estes números foram aumentando com o tempo. Nesta situação de desgaste terrível, Ayotzinapa representou um basta imediato, foi a gota que acabou derramando um copo que estava cheio. Contudo, existe também o tema dos 43 estudantes desaparecidos, esses normalistas, ou seja, futuros professores.
Então, o que acontece com um país que perde o melhor que pode ter, ou seja, aquelas pessoas que ensinam a escrever e a ler? Eu acredito que isso significa no imaginário coletivo a derrota da esperança, o cerceamento de um capital de futuro da sociedade. E por último – e talvez o mais determinante -, os garotos foram entregues ao crime organizado pela polícia. Isto fala sobre a total conivência dos supostos representantes da lei e os delinquentes. Estes três fatores são decisivos para entender o tema da violência e a indignação que ocorreu em Ayotzinapa.
Hoje, no México, por uma razão ou outra, desaparece aproximadamente uma pessoa a cada quatro horas. Atualmente, o México se tornou o país dos desaparecidos. Paradoxalmente, nos anos 1970 e 1980, o país acolheu de forma muito generosa os refugiados políticos que fugiam das ditaduras da América do Sul, que desapareciam com seus cidadãos.
O México é um país esquizofrênico. Nos anos 1970, o governo do presidente Luis Echeverría dava asilo político aos perseguidos da Argentina, Brasil e de outros países. Ao mesmo tempo, naqueles mesmos anos, havia uma guerra suja contra os guerrilheiros e os militantes políticos no Estado de Guerrero. Por um lado, o país tinha uma política de refúgio para os perseguidos políticos e, por outro lado, era um país repressor. Fora de Acapulco, havia uma base aérea para onde eram levados os dissidentes para ser jogados ao mar com as mesmas técnicas que eram usadas na América do Sul.
O México é esse país estranho, onde aparentemente há uma superfície progressista, uma superfície de desenvolvimento, onde há acordos coletivos e, depois, há um México soterrado, profundo, um México de injustiça, de desigualdade e de repressão. Eu cresci no tempo em que o México dava asilo aos refugiados chilenos. A utopia mexicana era a de um país de asilo, mas hoje em dia esse país de asilo se tornou um país onde as pessoas desaparecem. É dramático que não haja maior alarido a esse respeito. Estamos em um país onde a vida vale muito pouco. A vida se depreciou totalmente no México e não há nenhuma responsabilidade social por parte do Estado em dizer “já basta”.
Fiquei surpreso com a resposta do presidente francês François Hollande quando, após os assassinatos no semanário Charlie Hebdo, liderou uma grande manifestação com milhões de pessoas. Hollande tornou sua a dor. Podemos pensar que é um gesto retórico, demagógico, mas, por fim, trata-se de dar valor às vidas que se perderam. Nós não vemos o presidente do México liderar nenhum protesto, nem sair à rua. Quando ocorreram os assassinatos dos 43 estudantes, o presidente não se moveu para Iguala, não saiu às ruas, não decretou três dias de luto nacional, nem sequer interrompeu sua viagem à China. Há uma total indiferença diante do que realmente acontece na sociedade.
O que explica os recorrentes levantes e guerrilhas que ocorrem no Estado de Guerrero? Por que ali e não em outros lugares do país?
O Estado de Guerrero é emblemático. É um estado muito rico, onde está o porto de Acapulco, que foi um enclave turístico de fama mundial. E, ao mesmo tempo, é um dos estados mais atrasados na educação, na condição dos camponeses. É um estado de enorme contraste social e econômico, onde o poder político é exercido no nível da chefia, com mandos verticais, autoritários, que não se submetem a nenhum outro controle. Há uma impunidade total. Também foi um estado que conheceu uma grande resistência social e política com organizações populares que lutaram por seus direitos. Muitas vezes, agiram a partir de um ponto de vista cívico, mas quando não encontraram saídas para o seu descontentamento, optaram pela guerrilha. Estas guerrilhas foram sucessivamente reprimidas, mas não deixaram de aflorar.
Em Guerrero temos uma situação de pêndulo muito tensa. Por um lado, há uma economia exitosa, que se refere à alta burguesia relacionada ao turismo, muito vinculada aos poderes autocráticos. Do outro lado, há um povo que resiste e que sempre está disposto a uma possível insurgência. Essa tensão deu lugar a um sistemático ajuste de contas por parte do poder. Em outros lugares do país há uma violência mais seletiva, há uma violência pela qual aqueles que cometem crimes querem ver o terror ser propagado. Um bando que degola pessoas será conhecido como degolador e eles vão estabelecer uma gramática do medo, uma linguagem que permite identificá-los. Eles procuram ter uma ressonância através da violência identificada. No caso de Guerrero é diferente. Foi uma guerra de extermínio, uma guerra de desaparição do adversário. Essa é uma especificidade regional terrível. Desde que foram iniciadas as buscas dos 43 jovens desaparecidos, foram encontradas 40 fossas. Isso tem a ver com uma guerra de desaparecimento. O atual governador provisional do estado foi uma desaparição.
Que valor, que articulação possui ainda a palavra para um intelectual em um país tão afetado pela violência? A palavra ainda serve, salva, alivia, abre um espaço para o sonho coletivo?
A palavra está totalmente ameaçada por uma simples razão: todo mundo pode usá-la. Diferente do músico que compõe com notas, o escritor se serve das mesmas palavras que os políticos aviltam e os publicitários degradam. Acredito que o segredo da cultura consiste no fato de que a linguagem degradada pode voltar a adquirir vitalidade e voltar a dizer coisas novas. O trabalho dos escritores é o de procurar dar vida nova para as palavras que foram manchadas e abusadas.
No México, o governo usou uma frase para o que aconteceu em Ayotzinapa. É a expressão “verdade histórica”. Houve um relatório totalmente insuficiente, não comprovado, cheio de contradições e de lacunas sobre o que aconteceu em Ayotzinapa. E esta muito precária informação chamou de “verdade histórica”. Isso é distorcer e falsificar as palavras, criando uma propaganda de algo que, finalmente, é uma contradição. O que nós jornalistas e escritores devemos fazer é procurar demonstrar que as palavras ainda servem. Eu acredito nisso.
Em 1994, quando o Exército Zapatista se levantou com as armas, surgiu um novo discurso em cena. Era um novo discurso do ponto de vista moral e do uso das palavras, era um discurso que utilizava o sentido do humor, elementos mágicos que pareciam tomados da literatura de Gabriel García Márquez, um sentido ético talvez derivado do Evangelho e a Bíblia dos pobres. Havia uma renovação do discurso. O Subcomandante Marcos renovou o discurso em um momento no qual as palavras haviam esgotado o seu sentido. E não é por acaso que tenha sido um poeta como Javier Sicilia quem liderou o Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade, e aquele que também deu um novo valor às palavras, incluindo expressões tão populares como “estamos hasta la madre”. Esta expressão tão mexicana, que podemos dizer em qualquer botequim, tornou-se o símbolo de um movimento. Devemos lutar por isso. Não podemos deixar que a linguagem seja sequestrada pelas palavras. Nós, escritores, devemos ser críticos com a realidade, mas também manter a esperança, o jogo, o sentido lúdico da vida, o erotismo, o sentido de humor. Devemos demonstrar que, inclusive nos piores momentos, podemos convocar a felicidade. Esse é um ato de resistência muito importante.
O México tem uma história magnífica de mobilizações cívicas e populares. Sua história está cheia de milhares de pessoas marchando pelo país. O que vem depois de Ayotzinapa? Outro país?
Acredito que Ayotzinapa criou uma espécie de república do sentimento e isso fez muitas pessoas se unirem na indignação. Agora, a grande pergunta é: como convertemos isso em política? Isto ocorre em um momento no qual os partidos políticos estão totalmente degradados. Há um enorme descrédito da classe política e as pessoas não querem fazer política. As pessoas querem protestar, mas não sabem como canalizar o protesto. A grande questão é saber se haverá um grande movimento cidadão que transforme o país. Há possibilidades importantes.
Javier Sicilia e setores progressistas da Igreja se envolveram em favor de uma reforma da Constituição. Outros grupos estão buscando respostas diferentes. Há um grande tema hoje no México, é que o país está fora da legalidade. O próprio governo está fora da legalidade. Neste contexto de falta de legalidade, de falta de credibilidade, o grande desafio da sociedade é conseguir um movimento cívico que transite para um horizonte de legalidade. Acredito que antes de buscar uma reformulação radical de nosso país, devemos mudar as regras do jogo para chegar a essa transformação. Se no México houvesse um império da lei, seria uma mudança absolutamente decisiva.
Impossível não abordar com você a literatura e o futebol. Vamos ver... qual é o melhor livro da história?
Inevitavelmente, acaba-se voltando para Dom Quixote. Acredito que é um livro cheio de sentido de humor, é uma lição de humanidade, de tolerância pelo próximo. É, além disso, um romance extremamente moderno. É um meta-romance, ou seja, um romance dentro do romance que reflete sobre a forma como um romance está escrevendo a si próprio. É também um grande romance de trajetos e em muitos sentidos é um romance fronteiriço porque está entre a realidade e a fantasia. O protagonista não sabe muito bem quando está acordado e quando está louco. É também um romance entre um olhar idealista e um olhar realista: Dom Quixote e Sancho Pança. O romance se apresenta como a tradução de um livro árabe que aleatoriamente encontrou Miguel de Cervantes Saavedra. É preciso lembrar que, naquele momento, os árabes eram os inimigos. É um gesto de tolerância suprema.
Seu melhor livro?
Eu me interesso muito por um livro que eu escrevi para jovens: O Livro Selvagem. É um livro sobre a leitura. Acredito que todos nós, escritores, somos basicamente leitores e é possível ficar mais orgulhoso dos livros que se leu do que dos livros que se escreveu. Aí não está incorporada a vaidade ou o orgulho. Simplesmente se aprecia as coisas que lê. O Livro Selvagem é um livro que nunca quis ser lido. Tenho a impressão de que os livros buscam seus autores ou fogem deles. Esta sensação de que os livros nos propõem suas leituras, movimentam-se, aproximam-se de nós, fez-me pensar em um livro que nunca quis ser lido. A história de O Livro Selvagem é a história de um livro relutante, de um livro que não quer ser preso.
E o gol mais bonito da história?
O melhor gol que vi e que tive a sorte de ver por estar no estádio é o melhor gol legal da história dos mundiais: o gol que Maradona fez contra a Inglaterra, em 1986, fintando praticamente meia seleção britânica. Nessa mesma partida, também fez o melhor gol ilegal, o famoso gol da Mão de Deus. Destaco a capacidade de Maradona em dar um significado especial ao seu gol ilegal. Dizer que alguém fez um gol com esperteza, sem o árbitro ver, isso é uma malícia, é roubar algo da fortuna. No entanto, declarar, depois, que foi a Mão de Deus é criar um mito.
Osvaldo Soriano sempre estabelecia uma relação muito estreita entre o futebol e a vida. Você também?
Soriano, claro, extraordinário, escreveu esse conto maravilhoso sobre o pênalti mais longo do mundo. Uma das coisas mais interessantes do futebol é que ocorre ao lado da vida. É tão injusto como a vida e tão grandioso como a vida. Basicamente, o futebol é um esporte que dura 90 minutos em tempo real. E o que aí acontece, assim como na vida, é bastante obscuro e há somente alguns segundos de brilho, que são os gols ou as grandes jogadas. Em uma partida extraordinária, dos 90 minutos de jogo unicamente cinco são fantásticos e todo o restante é espera, especulação, anseio, decepção... e assim é a vida.
A falibilidade do árbitro também aproxima muito o futebol da vida. Porque na vida dizem que você possui um cálculo renal e você não fez nada, em especial, que fosse prejudicial do ponto de vista moral para merecer um cálculo renal. E depois, no dia seguinte, você ganha na loteria e também não teve nenhum mérito. A vida está cheia de punições e recompensas arbitrárias. E a figura do árbitro representa esse fator humano dentro do futebol. Em uma partida há 22 homens que procuram ser semideuses, mas existe apenas um que trata de ser homem. E esse é o árbitro. E isso aproxima muito o futebol e vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O México é um país esquizofrênico”. Entrevista com o escritor Juan Villoro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU