Por: André | 04 Fevereiro 2015
A carnificina do Charlie Hebdo e as reações à publicação de novas charges do profeta criam uma tensão favorável aos adeptos do choque de civilizações. O Huffington Post Algérie conversou sobre isso com Henri Teissier (foto), arcebispo emérito de Argel, homem incansável do diálogo entre cristãos e muçulmanos.
Fonte: http://huff.to/1zIzaPT |
A entrevista é de Nejma Rondeleux e Said Djaafer e publicada no jornal Huffington Post Algérie, 29-01-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O diálogo entre cristãos e muçulmanos não corre o risco de sofrer as repercussões dos recentes acontecimentos marcados pelo caso Charlie Hebdo e as caricaturas do profeta?
A Argélia torna-se independente em 1962, assim como a Igreja da Argélia. Desde a nossa separação da Igreja da França, o nosso principal projeto sempre foi o de nos situar em uma sociedade que tem suas crenças, suas tradições, etc. Nós tivemos, durante 50 anos, continuamente essa mesma preocupação: como podemos viver como minoria cristã numa relação respeitosa e construtiva com os parceiros argelinos, quase todos muçulmanos? Nós conseguimos viver juntos. Mesmo entre 1991 e 1999, quando estávamos, todos, ameaçados pela mesma violência.
Mas, eis que, de repente, vemos a violência dos anos 90, com os mesmos fundamentos que eles dizem doutrinários, espalhar suas desordens, não apenas no Iraque ou na Síria, mas também em muitas partes do mundo, na Nigéria, na Somália, na África Central, etc.
É verdade que esta crise, que se tornou visível graças ao ataque à redação do Charlie Hebdo, fragilizou significativamente o que queríamos fazer, na medida em que muitos muçulmanos sentiram a publicação do novo número do Charlie como um ataque contra as suas convicções mais profundas.
Tudo isso levou a reações desastrosas, sendo a mais visível, talvez, aquela do Níger, onde uma pequena minoria cristã, que vivia em uma relação diária muito fecunda com a grande maioria muçulmana, teve 45 igrejas atacadas e um grande número de pessoas mortas por causa de pessoas sem crença religiosa que tomam uma posição em Paris.
Quando se ataca igrejas por causa de um jornal anticlerical e inclusive anti-religioso ao longo de muito tempo, isso não denota um profundo desconhecimento da realidade uns dos outros.
Do lado dos muçulmanos, era necessário encontrar um adversário contra o qual expressar seu ressentimento. O único adversário atual é a Igreja ou a Embaixada da França, com seu Instituto Francês. Por outro lado, os jornalistas franceses não se colocam a questão da relação com as religiões, uma vez que consideram que são estruturas ultrapassadas. Fixam-se sobre os aspectos negativos.
Mas há também aspectos positivos. Uma aceleração do questionamento entre aqueles que querem fazer avançar essa relação entre cristãos e muçulmanos; ou mesmo simplesmente para fazer avançar uma pertença identitária ao Islã que não seja uma pertença "contra", mas uma pertença "para" colocar em evidência os valores recebidos e não para atacar os outros grupos.
A prova dessa aceleração é que eu recebo diariamente pelo menos vinte textos produzidos por uns e outros, que são o resultado desta crise. Muitos grupos tomaram posição, especialmente chefes de Estado, cuja intervenção neste campo não se esperava. O presidente do Egito, por exemplo, interpelou a Universidade de Al-Azhar, a maior instituição sunita de reflexão, dizendo: "Há 1,5 bilhão de muçulmanos no mundo, mas há 7 bilhões de pessoas e devemos viver o Islã de uma maneira que funda a nossa relação com o resto do mundo, em vez de nos estabelecer como os adversários de todos os outros seres humanos."
O Papa sugeriu que a liberdade de expressão não pode ofender as convicções dos outros. O que você pensa sobre isso?
Ele estava muito feliz que após a condenação do ataque, o Papa insistisse que há profundas convicções que devem ser respeitadas nas comunidades humanas. Porque essa é um pouco a dificuldade da vida, hoje: o que pode, eventualmente, ser dito em um ambiente sem criar divisões muitos graves, não será recebido da mesma forma em outro lugar e vai desencadear uma séria divisão, como o que aconteceu no Níger.
Espero que esta situação vá permitir uma reflexão em dois sentidos: sobre o que podemos continuar a fazer juntos, especialmente no nível da partilha de valores. A condição da partilha de valores comuns é a confiança fundada na amizade. Há, atualmente, muitos lugares onde essas amizades entre líderes cristãos e muçulmanos existem e permitem impedir a generalização – dizendo que todos aqueles que são de outra comunidade são adversários – e buscar juntos como construir pontes.
A outra consideração é que é importante fazer avançar a ideia de que a liberdade de expressão deve levar em conta a capacidade das diferentes culturas de ouvir as mensagens. Não ouvimos a mesma mensagem em todas as culturas do mundo e em todas as línguas.
O Ocidente foi secularizado a tal ponto que seus povos não se dão mais conta de que o sagrado deu sentido mesmo em outro lugar?
Este é o lugar onde o déficit em verdadeiras relações entre pessoas de tradição cristã e pessoas de tradição muçulmana na Europa não foram capazes de entender a sensibilidade do outro. É óbvio que aqueles que têm relações pessoais com famílias muçulmanas compreendem muito rapidamente que a vida dessas famílias é movida pelas crenças que sobreviveram aos séculos e que não podemos atacar sem ferir profundamente a pessoa.
Com outras palavras, devemos multiplicar os lugares de encontros entre as pessoas nascidas nas sociedades cristãs e entre as sociedades de tradição muçulmana. Neste nível, a situação avançou. Na França, e em países vizinhos, Bélgica, Suíça, Espanha, há, por exemplo, cada ano, em novembro, uma semana de diálogo islâmico-cristão. Reuniões entre imãs e líderes religiosos das comunidades cristãs, assim como um fórum cristão-muçulmano também é realizado anualmente na região de Lyon, na França.
O peso de situações políticas como a Palestina, as guerras no Iraque, Líbia, Síria, não criaram uma tensão no diálogo inter-religioso?
Em primeiro lugar, é preciso que o Ocidente perceba que as primeiras vítimas nessas regiões são muçulmanas. Por outro lado, para a comunidade muçulmana, é óbvio que a multiplicação desses campos de intervenção pode dar a impressão de um complô organizado contra o mundo muçulmano.
Quando se olha as coisas, há razões específicas para cada situação. Poucas pessoas previram uma tensão na República Centro-Africana ou no Mali, especialmente porque o Islã africano viveu durante séculos uma relação bastante pacífica com os não-muçulmanos.
Mas estes eventos ocorreram um após o outro e a partir do momento em que a crença em uma conspiração contra o mundo muçulmano existe, suscita reações que devem deixar o Ocidente mais atento à maneira como intervém ou manifesta suas atitudes.
Admito que fiquei muito surpreso com o fato de que 44 chefes de Estado participaram da marcha republicana em Paris depois do ataque ao jornal Charlie Hebdo. Isso prova que esta manifestação de correntes extremas que criaram graves crises é agora vista como uma ameaça por muitos cidadãos do resto do mundo. Um medo que se espalhou.
Para parar os infortúnios decorrentes deste medo, é necessário que as pessoas se encontrem, que elas confiem umas nas outras e que acreditem na partilha dos valores, em vez de acreditar no inevitável confronto de comunidades.
Como o senhor avalia as reações na Argélia diante deste acontecimento?
As reações do ministro para Assuntos Religiosos, Mohamed Aissa, foram inicialmente dirigidas contra a própria comunidade muçulmana a partir dos acontecimentos vividos. A primeira declaração dizia: "Recebemos correntes muçulmanas que chegaram do Oriente Médio que não correspondem às nossas tradições; retornemos ao Islã de Córdoba".
Naquele tempo, não se tratava, portanto, de um confronto entre o mundo cristão e o mundo muçulmano, mas de uma evolução do Islã argelino e de um apelo para retornar às origens do Islã magrebino, que tem uma outra história simbolizada também, ao nível do êxito cultural, pelo que aconteceu na Andaluzia.
Era o sinal de um progresso que se tornou necessário não por causa da relação com o exterior, mas por causa do equilíbrio da própria sociedade argelina.
Mais recentemente, obviamente, com o que aconteceu em Paris, houve uma outra intervenção, mas que foi dirigida principalmente para aqueles que queriam destacar essas correntes, que estavam na origem da crise de 1991, da comunidade argelina.
O que está claro é que os questionamentos são feitos a todos: aos fiéis – porque devemos respeitar os outros fiéis –, e àqueles que não têm convicções religiosas. Porque precisamos de todos para alcançar, não só a paz civil dentro de cada país, o que já é difícil, mas também a paz civil entre os países. Especialmente aqueles que têm diferentes tradições e esses que têm ritmos de transformação que não são os mesmos.
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Henri Teissier, homem incansável do diálogo entre cristãos e muçulmanos, fala sobre Charlie e suas consequências - Instituto Humanitas Unisinos - IHU