30 Janeiro 2015
"A mãe de minha colega eventualmente se casou pela segunda vez, e por anos ela e seu marido levaram os filhos para as missas de domingo ficando nos bancos enquanto eles comungavam. Esta mulher pediu desculpas pelo resto da vida por 'deixar' a Igreja", escreve William McDonough, presidente do Fed regional de Nova York, em artigo publicado por Commonweal, 26-01-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Nos últimos anos, o Papa Bento XVI vem supervisionando a publicação de sua Opera Omnia, ou obras completas. Auxiliado pelo atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Ludwig Müller, Bento está publicando novamente, sob o nome de Joseph Ratzinger, todos os seus escritos teológicos, até agora resultando em nove volumes (em alemão, pela Verlag Herder). O mais recente volume (1) contém um ensaio de 1972 sobre a indissolubilidade do matrimônio, cuja conclusão Bento achou apropriado reescrever. O texto original, escrito quando Ratzinger, aos 45 anos, era professor de Teologia na Universidade de Ratisbona, propunha que aos católicos divorciados e casados novamente no civil fossem permitidos comungar em certas circunstâncias. Numa alteração importante, esta proposta está conspicuamente ausente na conclusão da versão reescrita.
A conclusão original reconhecia que a Igreja é “da Nova Aliança” e que permanece estando “num mundo no qual segue existindo inalterada esta ‘dureza de coração’” (Mateus, 19,8)”. E, assim, a prática eclesial “deve começar no concreto”, levando em conta o dano feito, até mesmo pela própria Igreja, através da tal “dureza de coração”. Especificamente, quanto ao claro ensinamento das Escrituras sobre a indissolubilidade do matrimônio, Ratzinger em 1972 concluiu que, em algumas situações de casamentos pela segunda vez, seria “imoral” exigir a separação como condição para se permitir os cônjuges voltarem a comungar. “Quando do segundo matrimônio nascem obrigações morais em relação aos filhos, à família e mesmo à mulher e inexistirem obrigações análogas que derivam do primeiro matrimônio”, escreveu Ratzinger, “a abertura à comunhão eucarística parece, depois de um tempo de experiências, ser justo e estar em plena harmonia com a tradição da Igreja”.
A conclusão nova reescrita mantém a observação da versão original sobre a dureza humana de coração, mas dá conta de observar que estamos numa nova situação “concreta” – e então apresenta uma pergunta que Ratzinger não havia formulado a 43 anos atrás: “O que se poder fazer concretamente, sobretudo num tempo em que a fé se dilui sempre mais, mesmo dentro da Igreja?” Os tempos mudaram, Bento parece estar dizendo, e a readmissão aos sacramentos não mais é uma opção. Em vez disso, ele recomenda que aos católicos divorciados que se casaram novamente no civil seja oferecida uma “comunhão espiritual intensa com o Senhor”, incluindo uma bênção nas missas de domingo quando eles se “aproximarem do altar com as mãos sobre o peito”. Comunhão espiritual, sim; comunhão sacramental, não.
Os tempos podem, de fato, ter mudado desde 1972, mas mudaram tão radicalmente assim para invalidar a conclusão do artigo original? Que o texto anterior havia apelado aos Pais da Igreja (como Orígenes, São Basílio e Santo Agostinho) para sustentar que a indissolubilidade do matrimônio fora uma doutrina “definitiva” da Igreja deste o começo e que “dentro do ideal que é, de fato, determinante para a Igreja, houve claramente, cada vez mais na aplicação pastoral concreta, uma prática mais elástica”. Para os cristãos recasados, esta “prática mais elástica” incluía, em alguns casos, voltar aos sacramentos.
O parágrafo conclusivo do artigo original começava reafirmando a natureza “irrevogável” do consentimento matrimonial, e então acrescentava: “Isto não exclui que a comunhão eucarística da Igreja abrace também as pessoas que reconhecem esta doutrina e este princípio de vida, mas que se encontram numa situação de emergência de natureza especial na qual têm particularmente necessidade da plena comunhão com o Corpo do Senhor”. Na última frase do mesmo parágrafo, o artigo chamou esta dupla reivindicação “da fé da Igreja” como algo que “seguirá sendo um sinal de contradição”. De fato, este sinal de contradição é “essencial” para a Igreja, sustentou Ratzinger, cujo Senhor “anunciou a seus discípulos que não têm que pretender estar acima do Mestre, que foi rejeitado pelos piedosos e progressistas, [por judeus e pagãos]”.
Por que ele mudou de ideia? Há uma complicada história por detrás desta revisão de Bento, uma contendo certas lutas teológicas e eclesiais internas. Em fevereiro de 2014, o artigo de Ratzinger foi citado pelo Cardeal Walter Kasper em suas observações introdutórias ao Consistório convocado pelo Papa Francisco para debater a questão da família em preparação ao Sínodo que ocorreria em setembro do mesmo ano; ao afirmar a sua opinião de que os divorciados e recasados deveriam ser admitidos à Comunhão, Kasper citou o texto do hoje Papa Emérito como se estivesse apresentando uma “solução apropriada” para o dilema. No entanto, este artigo de 1972 foi a primeira e única vez que Ratzinger assumiu uma tal posição publicamente.
Depois disso, ele retornou à proibição tradicional contra a Comunhão a católicos em tais situações e, na verdade, até ajudou a fortalecê-la quando, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF, assinou uma carta, de setembro de 1994, aos bispos na qual a Santa Sé rejeitou a posição progressista defendida por certos bispos – inclusive Kasper. Aparentemente, a insatisfação de Ratzinger com o uso feito por Kasper de seu ensaio no ano passado levou à decisão de reformular suas conclusões que seriam publicadas nas obras completas.
É, na visão de muitos, uma alteração infeliz, uma diminuição da visão de fé apresentada na conclusão do artigo original. Em suma, para Ratzinger há 43 anos, uma disposição para viver dentro da tensão entre uma reivindicação doutrinal definitiva e um dever pastoral em abraçar aqueles de “particular necessidade” não eram uma contradição que precisava ser resolvida, mas sim um sinal de discipulado. Esta disposição está faltando nas novas conclusões, que dissolvem aquela “contradição essencial” abandonando uma acolhida pastoral em favor de uma doutrina definitiva. Efetivamente, Bento esquece aquilo que o seu ensaio original sustentara como fundamental.
Tal esquecimento encontra um desafio acentuado na ideia primeiramente expressa pelo teólogo católico alemão Johannes Metz em 1977, poucos anos depois do ensaio original de Ratzinger. Metz dizia que, no centro do cristianismo, existe a “memória perigosa” da morte e ressureição de Jesus, com a sua promessa da vinda do Reino de Deus (cf. o livro “Faith in History and Society”)(2). Devemos cultivar esta memória perigosa para superarmos toda e qualquer tentação de se “banhar todas as coisas do passado numa luz suave, conciliatória”, insistia Metz, e, em vez disso, permitir que o passado “revele novos e perigosos insights para o presente”. O que precisamos é de uma memória mais cheia do passado, porém a conclusão reescrita de Bento move-se na direção contrária; ela esquece o que é dificultoso a respeito do passado e, portanto, evita “insights perigosos para o presente”.
Tive minhas próprias razões para revisitar o passado distante. Minha mãe, de 82 anos de idade, recentemente se pôs a contar a mim e a meus irmãos histórias que não havíamos ouvido antes: histórias difíceis sobre sua infância em Boston. Em outubro, ela e eu saímos de Minnesota para visitar o último irmão vivo dela, com então 88 anos e vivendo com demência avançada numa casa de repouso em Boston. Durante o voo, minha mãe falou de uma conversa ao telefone que teve com o seu irmão alguns anos antes, quando ele ainda podia conversar normalmente. “A nossa infância foi tão ruim quanto eu lembro dela?”, perguntou ela ao irmão. “Pior”, respondeu ele. Na casa de repouso, o meu tio não falou nenhuma palavra, mas sorriu naquilo que pareceu ser um reconhecimento silencioso de minha mãe. A visita acabou sendo a última; ele morreu três semanas depois.
Estes eventos abriram ainda mais as comportas para a minha mãe, aumentando o desejo dela de olhar para o passado e compreender as memórias perigosas da infância que teve. Eles se centraram em torno das dificuldades criadas pelo alcoolismo da mãe deles, pelo divórcio e um segundo casamento. Uma memória diz respeito a uma outra família que, aos domingos, ajudava levando a minha mãe à igreja com eles. “Minha mãe não podia ficar no interior da igreja, já que ela era divorciada”, recordou minha progenitora. “A outra família não entrava fisicamente em nossa casa, mas buzinava em frente de nossa residência para me avisarem de que estava na hora de eu ir junto com eles”. Uma outra memória dizia respeito a um de seus professores da escola primária – da escola católica em que estudou –, o qual, de tempos em tempos, a instruía para ficar de pé para que o resto da turma pudesse “ver como se parece a filha de uma divorciada”.
Minha mãe, no mínimo, não pôs os desafios presentes em sua vida na conta da igreja. O alcoolismo de sua mãe foi o que atrapalhou cedo demais a sua vida, mais do que os ensinamentos da Igreja sobre o divórcio e o matrimônio, e o consolo e a esperança que minha mãe recebeu das décadas de participação ativa na Igreja superam, de longe, o sofrimento.
No entanto, suas histórias difíceis ficaram vívidas em minha mente e em meu coração quando li a conclusão revisada de Bento – e quando uma colega partilhou comigo parte de suas próprias memórias de quando era aluna de sétima série numa escola católica, ainda na década de 1960.
Depois de sofrer muitos anos de maus-tratos conjugais, a mãe de minha colega teve a coragem de se divorciar de seu marido. Aparentemente, ela soltou o verbo e “eu fui chamada para fora da aula numa manhã”, lembrou a colega, “e me disseram que o pastor queria me ver. O monsenhor estava na sala da direção e contou que minha mãe iria para o inferno, a menos que eu a fizesse desistir deste divórcio”.
Esta minha colega ficou tão abatida com aquela visita que silenciou sobre o assunto durante anos. Quando ela finalmente contou a sua mãe, soube que o monsenhor havia telefonado para ela, muitos anos antes, com a mesma mensagem, lembrando-a, por telefone, que ela era uma pecadora, que não era bem-vinda à Comunhão e que, certamente, iria acabar no inferno caso não criasse seus filhos na fé católica.
A mãe de minha colega eventualmente se casou pela segunda vez, e por anos ela e seu marido levaram os filhos para as missas de domingo ficando nos bancos enquanto eles comungavam. Esta mulher pediu desculpas pelo resto da vida por “deixar” a Igreja; quando estava com seus 60 anos e prestes a falecer, esta mulher – divorciada e recasada – escreveu uma carta para a própria mãe (a qual sobreviveu a ela) que incluía o seguinte: “Por favor, diga-me que a senhora compreende o que fiz e que a senhora espera que iremos nos encontrar de novo no céu”.
Estas histórias têm algo a dizer para qualquer um de nós que queira levar a sério o sinal de contradição, a memória perigosa da morte e ressurreição de Jesus. Não permitir tais histórias em nossas vidas é uma fracassar na compaixão. Em seu belo ensaio sobre Johannes Metz e as “memórias perigosas” (3), Michael J. Iafrate cita Metz, quando este diz que “compaixão” significa, literalmente, “uma disposição para sofrer os sofrimentos dos outros” (4). Não estou sugerindo que o Papa Bento careça de compaixão. Estou, sim, sugerindo que algo está faltando em seu relato do passado – a saber, aquela tensão que, antes, ele considerou essencial à fé da Igreja. Esta sua nova conclusão vem, escreve ele, “num momento em que a fé se dilui sempre mais”; mas, a meu ver, isto está de acordo com o que estão pedindo de nós hoje. O que precisamos não é resolver a “contradição essencial” a que ele fazia referência em 1972, mas aprender como viver com ela, e nela, juntos.
Na verdade, o Papa Francisco parece estar, neste momento, pedindo a nós exatamente isto. No final da primeira parte do Sínodo dos Bispos sobre a família, de outubro de 2014, ele pediu a todos os presentes para abrirem-se a um ano de “verdadeiro discernimento espiritual”, de forma que, quando o Sínodo se reunir novamente em 2015, ele possa “encontrar soluções concretas às tantas dificuldades e inumeráveis desafios que as famílias devem enfrentar”.
Como é possível alcançarmos um tal discernimento? Em seu livro de 2011 intitulado “Katholische Kirche: Wesen, Wirklichkeit, Sendung”, o Cardeal Walter Kasper elencou três regras para se discernir o movimento do Espírito da Igreja. A regra que Kasper chamou de “eclesiológica” eu a considero especialmente propícia. “O Espírito é um Espírito de unidade”, escreve ele. “O Espírito não divide, mas reúne e ordena carismas da Igreja para dentro de um todo (...) O discurso profético deve servir na construção da comunidade”. Esta regra soa bastante parecido com a preocupação do Ratzinger de 1972, de que atendamos os que estão em situações de emergência, aqueles que têm “particularmente necessidade da plena comunhão com o Corpo do Senhor”.
Será que abrirmo-nos para ouvir as histórias das pessoas cujas vidas foram profundamente afetadas pela prática pastoral da Igreja relativa ao divórcio e matrimônio ajudaria a compreendermos como a verdadeira comunhão deva ser? Isto não poderia ajudar a aprendermos como construir a comunidade – e, assim, contribuir para o ano de verdadeiro discernimento espiritual que Francisco recomenda?
Nota:
1 - A obra intitulada “Joseph Ratzinger-Collected Works: Theology of the Liturgy” pode ser encontrada aqui
2 - A obra “Faith in History and Society: Toward a Practical Fundamental Theology” pode ser encontrada aqui.
3 - O ensaio, intitulado “‘We Will Never Forget’: Metz, Memory, and the Dangerous Spirituality of Post-9/11” (America, Part II), pode ser encontrado aqui.
4 - Uma versão anterior deste ensaio não incluía esta citação de Michael J. Iafrate. O presente ensaio foi revisado para refletir a inclusão desta citação.
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Bento XVI sobre Comunhão para os recasados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU