23 Janeiro 2015
Luiz Gonzaga Belluzzo não hesita em dizer o que pensa sobre os atuais rumos da economia brasileira, que estariam pautados hoje, sobretudo, pelo princípio que ele considera ser uma espécie de “Santíssima Trindade” da “teologia” de economistas: o tripé macroeconômico. “Qual é a lógica do ajuste fiscal? Se a gente prometer ajuste fiscal, certamente o setor privado vai ganhar mais confiança, vai investir, e aí a economia se reequilibra – é o que eles pensam. Só que essa suposição é falsa”, afirma.
A entrevista é de Anna Beatriz Anjos e Glauco Faria, publicada pela Revista Fórum e reproduzida pelo jornal Brasil de Fato, 22-01-2015.
O economista e professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ressalta ainda o papel da mídia tradicional na defesa do receituário neoliberal e não poupa críticas à parte dos macroeconomistas brasileiros. “Acho que os economistas em geral têm um déficit intelectual decorrente da ignorância histórica, ficam falando abstrações”, coloca.
Eis a entrevista.
O que podemos esperar do ministro Joaquim Levy e da equipe econômica brasileira para os próximos quatro anos?
A minha modesta opinião é a de que não devemos personalizar. O Joaquim Levy, na verdade, representa um conjunto de interesses, que acabou se impondo durante as eleições e logo depois delas. Disse, em uma entrevista recente, que não é que a Dilma cometeu uma traição, porque esta é uma palavra imprópria. Ela, diante da desigualdade da correlação de forças, capitulou diante do projeto dos mercados financeiros.
O que aconteceu? Exageraram no cenário de precariedade da situação fiscal. O Brasil não está à beira de um colapso, nem pelo critério da dívida pública, que está em 63% do PIB, nem pelo critério do déficit nominal, que é bastante aceitável, sem, claro, que a gente tenha que se conformar com isso. Essas situações se agravaram, sobretudo, depois de 2011, 2012, quando a economia começou a perder fôlego. O consenso do mercado, então, era de que havia alguma espécie de violação das regras de administração do tripé [macroeconômico]. O tripé, na “teologia” econômica, é uma espécie de substituto da Santíssima Trindade – eu, pessoalmente, prefiro a Santíssima Trindade, seu mistério é mais interessante. Já o mistério do tripé tem uma vida recente, está apoiado sobre uma certa concepção da economia, uma certa formulação dos modelos macroeconômicos, e, em geral, esses modelos são curiosos, porque cuidam das políticas fiscal, monetária e cambial, indiretamente, a partir de um modelo que não tem banco e nem dinheiro.
É um capitalismo estranho, que não tem banco nem dinheiro. Se você dissesse isso para um economista conservador, no início do século XX, final do século XIX, ele acharia que você deveria ser enviado a um hospício. Mas, de qualquer maneira, eles têm a necessidade de formular uma regra, ou regras que valem o tempo inteiro, independentemente do período histórico e da conjuntura que a economia esteja vivendo. Se olharmos a ideia do ajuste fiscal, estão dizendo que, na verdade, só podem surgir os desequilíbrios macroeconômicos por conta dos equívocos da política econômica. Se a economia for deixada a ela mesma, tem capacidade de se reequilibrar automaticamente, pelas suas próprias forças, e, ao mesmo tempo, claro que apresenta flutuações, mas são autocorrigíveis. Os desequilíbrios e as flutuações só poderiam vir da tentativa do Estado de intervir.
Tome-se como exemplo o que o Joaquim Levy falou: “precisamos acabar com o patrimonialismo”. O que é o patrimonialismo? A tentativa do Estado de intervir para estimular um ou outro setor. Isso é uma visão – eu diria, para ser gentil – pobre, do que é o patrimonialismo. Se você considera isso uma impropriedade em uma economia de mercado, é porque acha que o mercado é capaz de fornecer seus próprios incentivos, e que o Estado tem de ficar ausente, porque o mercado se auto-organiza e produz um resultado mais eficiente. Isso é uma falácia. É preciso não ter nenhuma noção da história do capitalismo, desde a Revolução Industrial – quando nasce o mercantilismo dos privilégios – até as industrializações dos EUA e da Inglaterra. Acho que os economistas em geral têm um déficit intelectual decorrente da ignorância histórica, ficam falando abstrações.
Estamos nos referindo a uma abstração, que é um modelo competitivo, dinâmico, de equilíbrio geral. Se você toma essa construção abstrata como uma espécie de retrato adequado de como funciona o capitalismo, pode chegar à conclusão de que, em uma economia que tem ciclos, dinheiro, créditos, crises financeiras, o Estado deve deixar que isso ocorra naturalmente. É claro que quando ocorre uma crise como a de 2008, eles não têm a capacidade de se autorregular, então chamam o Estado. Não fossem os bancos centrais, teríamos entrado em uma depressão de grandes proporções. Mas isso passa batido, porque quando a intervenção é a favor deles, não tocam no assunto – melhor nem falar. É como algumas históricas familiares: é melhor não falar do tio bêbado nas reuniões de família.
Ou seja, um modelo que não corresponde à realidade…
Escrevi um artigo na Carta Capital, falando “ah, é, patrimonialismo?”. Então vamos ver quem aumenta seu patrimônio com a estrutura tributária e a lei fiscal brasileiras, tanto pelo lado da tributação e da receita, como pelo lado da despesa. É uma das coisas mais escandalosas do mundo, porque quem paga imposto mesmo são os assalariados. O rico e o pobre compram a geladeira com a mesma alíquota, mas quem é que paga proporcionalmente mais? E quem é que recebe o grosso dos juros? Não é que não exista o trabalhador que tenha sua poupança e receba seus “jurinhos”, mas o grosso mesmo quem recebe são os grandes poupadores. Aí eles vêm com a história de que precisa aumentar a poupança pública. Eu me pergunto: como é que você pode aumentar a poupança, concebida como uma renúncia ao gasto corrente – você recebe a renda, decide entre poupar e consumir?
Se você não tem renda, não decide nada. Se a renda cai, também vai poupar menos. O Keynes, sobre quem estou escrevendo um livro, já explorou essa ideia, que é super ideológica, porque justifica o enriquecimento pelo esforço: “eu poupei, sacrifiquei meu consumo presente para ter o consumo no futuro, então produzi um benefício social”. O Keynes diz: não senhor, você, na verdade, tomou uma decisão de acumular a riqueza para si mesmo. Como empreendedor e produtor de riquezas, alguém só é útil socialmente quando investe, gera renda adicional, emprega mais gente, gera mais imposto. Quando poupa, está fazendo uma subtração. E aquilo fica lá perturbando o tempo inteiro, afinal, como você vai adquirir renda, receita, basicamente pela sua riqueza poupada? Aplica, digamos, num CDB, em uma poupança, e aí fica um parceiro do juro alto.
Quando ela [Dilma] baixou a taxa de juros, recebi uma quantidade de telefonemas, inclusive de vários jornalistas, indignados: “onde já se viu, estou perdendo dinheiro!”. Porque ele não faz nada, é um poupador, um parasita da sociedade, todos nós a parasitamos um pouco quando aplicamos nosso dinheiro. Não estou fazendo uma condenação moral, estou fazendo uma observação do papel social disso. Não é que a poupança seja ruim, ela faz parte do jogo econômico, o problema é que a avaliação da riqueza acumulada ao longo do tempo é que vai determinar o custo do dinheiro para quem vai investir. Não é difícil entender isso.
Então, essa defesa da poupança é uma mistura de picaretagem com safadeza [risos], porque é preciso conhecer o conceito, uma coisa é a palavra, outra é o conceito que está por trás dela. A poupança é algo que parece virtuoso, mas essa economia capitalista de mercado funciona ao contrário. Há um sistema de coordenação da riqueza chamado sistema bancário. O que ele faz: transfere o dinheiro de um para outro? Não, cria moeda. Quando faz um empréstimo, cria um ativo para ele e um passivo, que é o depósito à vista. Ele adianta dinheiro para quem quer investir, gastar – claro que isso supõe o crescimento da renda e a capacidade de pagar de volta. Mas o banco funciona assim, por isso há, na economia, expansões muito virtuosas e, ao mesmo tempo, crises.
Como os modelos deles não têm bancos, ficam falando de montar poupança – poupança externa, da família, do governo. É uma trapalhada. E acham que políticas para o desenvolvimento, keynesianas, são para fazer déficit. Não é nada disso! Isso é uma falsificação absurda do Keynes. Ele disse uma vez, para seu companheiro: vocês se preocupam demais com a cura e não com a prevenção, é preciso haver um processo de socialização do investimento, ou seja, o Estado precisa estar permanentemente apetrechado para manter a taxa de investimento a um nível razoável, nem muito exagerada e nem muito baixa. Outra coisa que ele dizia é que é possível ter um sistema fiscal progressivo, que estimule o consumo de quem tem renda menor, é necessário fazer distribuição de renda.
A terceira coisa é sobre a “eutanásia do rentista”. Ele [Keynes] falava sobre a renda, palavra que vem do inglês rent, derivado, por sua vez, dos proprietários da terra, aquilo que recebiam por sua propriedade. Assim também a taxa de juros é uma renda decorrente da propriedade do dinheiro, ou do controle do dinheiro. Só que, no caso da terra, esse fenômeno pode ser atribuído a causas naturais. No caso do dinheiro, não, porque os bancos criam moeda, portanto, a escassez de capital não se compara à escassez da terra. Finalmente, a quarta coisa dita por ele era que o sistema monetário internacional e o movimento de capitais acaba por destruir as economias, sobretudo aquelas que têm a moeda menos forte. Por isso, defendia um sistema que impedisse que as economias fossem devastadas por esse movimento de capitais. O que acontece com esses “caras do ajuste”? Acham que isso é natural. Como é isso mesmo, são os países que têm de fazer ajustamento nas suas economias, não o sistema monetário internacional – que é uma maluquice, para dizer o mínimo.
O senhor tem falado muito também da fragilidade da indústria brasileira.
O Brasil vem perdendo capacidade industrial desde a dívida externa, que é o maior exemplo da inadequação de se recorrer ao que eles chamam de poupança externa para financiar seu desenvolvimento. Isso nos atrasou dez anos, o que aconteceu depois foi uma tragédia econômica, tanto do ponto de vista fiscal como do ponto de vista monetário, a adoção da generalização da indexação, a perda de competitividade da indústria brasileira começou aí. E prosseguiu, porque, depois da estabilização, durante o governo FHC, usou-se o câmbio valorizado para segurar a inflação, o que destruiu a indústria.
Sempre digo ao presidente Lula que você falava sobre câmbio para ele e ele olhava para o outro lado. Tenho a maior admiração por Lula porque puxou o pessoal de baixo para cima. Aproveitou o ciclo e fez o que deveria ter feito, cumpriu o que disse que faria. Mas, por outro lado, como as coisas não são unívocas, deixou o câmbio valorizar e foi empurrando a indústria para baixo. A Dilma, coitada, tentou fazer uma redução da taxa de juros mas teve que voltar para trás, porque um país como o Brasil, sozinho, não tem força para fazer isso. Não é por acaso que fizemos esse acordo com os BRICS. Ele é importante se o Brasil souber usar o banco e o contingente de reservas, porque aí ajuda a proteger o país de uma turbulência antiga, da qual nos protegemos muito mais agora do que nos protegemos lá atrás, por conta das reservas que temos.
O senhor mencionou esse momento do primeiro governo Dilma, em que houve uma tentativa de abaixar os juros, e houve quedas sistemáticas, uma atrás da outra – o que, a certa altura, levou o juro real a quase 2%, pouco mais que isso. Àquela época, inclusive, cogitou-se que essa poderia ser uma marca da gestão Dilma. O senhor citou a questão cambial, que teria prejudicado essa queda, que outros fatores fizeram com que isso não desse certo?
Ela tinha noção de que isso seria prejudicial, mas foi derrotada inclusive porque os supostos beneficiários de uma redução, que seriam os industriais, estavam em menor número. Houve uma mudança na composição do empresariado brasileiro. Não há mais aqueles empresários comprometidos com sua indústria, como o Antônio Ermírio de Moraes, [Antonio] Bardella, Villares, que, junto com o Estado brasileiro, foram responsáveis [pelo crescimento da economia]. Os militares, nesse aspecto, tirando o endividamento externo, que foi um desastre – e foi o [Mário Henrique] Simonsen que fez, essa coisa de segurar a tarifa das empresas públicas, empurrá-las para tomar dinheiro fora – e essa foi uma das razões das privatizações, porque as empresas chegaram lá fragilizadas. Isso também desarticulou muito as empresas brasileiras, porque as estatais tinham um papel importante de investir na frente, na infraestrutura – energia, transporte, telefonia –, criavam um horizonte para o setor privado, era uma articulação muito virtuosa. O que desarranjou isso foi a privatização, que decorre da política anterior.
As estatais foram transformadas em instrumentos de captação do recurso externo, foram endividadas e, depois da crise da dívida externa, realmente elas ficaram imanejáveis. Em seguida, se privatizou. Perdeu-se, então, um instrumento de política industrial, de crescimento. Agora só tem a Petrobras.
Mas eu dizia que a política econômica do regime militar foi de avanço industrial. O [Ernesto] Geisel, em seu período, tentou dar um salto, mas caiu no lugar errado: escolheu os setores tradicionais quando já estava ocorrendo a terceira revolução industrial, da informática, microeletrônica, farmacêutica, nanotecnologia etc, e nós perdemos esse bonde. Aí, a economia ficou toda voltada para a estabilização dos preços. Em 1994, fizemos um dano. Não estou dizendo que não havia problemas, que era fácil, mas a insistência em manter o plano valorizado era uma coisa tão tragicamente visível que nem mesmo gente do PSDB [concordava], como o [José] Serra, por exemplo – que nem sei o que está fazendo no PSDB, porque não pensa igual a eles, e já disse isso para ele, que está perdendo tempo. Eles falavam “vamos abrir a economia”, mas fazer isso com o câmbio valorizado, deu no que deu… É difícil entender isso?
Quando discutimos a economia brasileira hoje, noto que há um descompasso entre o que os macroeconomistas pensam e os reais problemas da economia, que são estruturais e estão localizados na perda de importância da indústria brasileira, na determinação da forma como funciona e seu dinamismo. Estamos, na verdade, regredindo. Brinco que estamos flertando com a série C da economia, não é nem com a série B, e olha que Série B é algo em que tenho experiência [risos].
Mas, no primeiro governo Dilma, além da questão cambial, o que mais não deu certo nessa trajetória de queda dos juros?
Em 2010, tivemos uma recuperação muito rápida da crise de 2009. Em 2009, o PIB caiu 0,3%; em 2010, cresceu 7,5% – ano de eleição, foi um crescimento espetacular, uma recuperação quase chinesa. Queria até deixar isso registrado, e não é porque ele é meu amigo – é por isso, mas não só –, mas que foi feita uma injustiça muito grande com o Guido [Mantega]. Ele tirou, com grande habilidade, a economia da recessão. Depois, e eu disse isso para ele, o governo deixou de lado a coordenação do investimento. Aí sim vem a questão da intervenção, a boa e a má. Em vez dela [Dilma] coordenar o investimento privado, chamar os empresários, discutir com eles as melhores condições para deslanchar um programa de investimentos, tabelou a taxa interna de retorno, o que é um equívoco, porque não deixou o mercado fazer isso. Tem umas coisas que o mercado pode fazer e outras que não pode. Ter deixado o mercado fazer isso teria sido melhor.
[Em 2011] Não só eu percebi, como outras pessoas – o Delfim, o próprio Lula percebeu – que ali precisava de uma aproximação entre o governo e o setor privado. Não é nem um pecado isso, nenhuma promiscuidade, tem que se evitar coisas que acontecem e são graves. Mas, enfim, esse foi o divisor de águas: a demora. Se ela tivesse deslanchado o programa, talvez pudesse ter tido um espaço maior para fazer a desvalorização cambial. Os programas, tanto o do pré-sal, como o da infraestrutura [PAC] tinham um impacto na economia doméstica. No caso do pré-sal, tinha cláusula de encomendas domésticas, que é importante, apesar de todo mundo ficar combatendo, mas é que não têm noção de como foram feitas as políticas industriais na industrialização americana, alemã e mesmo na francesa. Ou seja, ficam falando banalidades.
A outra coisa é que, juntamente com esse equívoco de querer tabelar a taxa de retorno dos empreendimentos, não se considerou a iliquidez dos empreendimentos. Você não vende uma estrada como vende uma ação. Pode até vender a ação da empresa que faz a estrada, mas se a empresa não vai bem, sua ação também não vai. O terceiro ponto foi a demora no reajuste do preço da gasolina. Não havia razão para subsidiar a massa de consumidores que tem capacidade para gastar. Em um certo momento, era possível reajustar sem causar um grande efeito sobre a inflação. Foi um erro, podia ter deixado a Petrobras em uma situação muito mais favorável para acelerar os investimentos. Não acho que a Petrobras vá falir, é preciso resolver, sim, sua relação com os fornecedores e com o pessoal das empreiteiras que trabalham para ela. Não pode ser feita a confusão de se punir rigorosamente quem cometeu malfeitorias e destruir esse complexo de empresas que está relacionado à Petrobras. Tenho insistido muito nisso porque noto alguma movimentação da CGU, no próprio governo, mas não se pode confundir as coisas.
Veja os americanos: quando ocorreu a crise, uma série de crimes financeiros cometidos pelos bancos foram punidos mais ou menos – não se tem notícia de grandes figurões que foram em cana, lá é uma farsa. Estou lendo um livro agora, Too big too jail, em que o autor conta como as coisas são feitas lá. Mas, retornando: é preciso proteger esse complexo porque todas as empresas estão financiadas pelos bancos, o que afeta, consequentemente, o sistema bancário. Há um estoque de dívida nos bancos que são de empréstimos feitos a essas empresas. Então, não se pode agir, nesse caso, simplesmente com o ânimo de punir, tem que pensar nas empresas, que são enormes. Pode-se até propor a mudança de propriedade, fusões e aquisições, mudanças de controle, fazer o que quiser. Mas não se pode esquecer que são estruturas enormes, que têm peões de obra, engenheiros, funcionários. O que vai se fazer com essa gente, mandar todo mundo embora, só porque você é uma espécie de Torquemada. É preciso pensar nas pessoas que estão lá.
Qual o efeito da financeirização das empresas para a economia brasileira?
Esse é um ponto fundamental. O modelo elétrico brasileiro é todo financeirizado. Há preço do mercado livre, que de vez em quando bate 800 kw, isso é uma anomalia. O sistema norte-americano já fracassou na Califórnia por isso, e aqui também. Vamos olhar o que está acontecendo com São Paulo. A situação me lembra uma marchinha de Carnaval dos anos 1950: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta luz”. Vi aqui, na região da minha casa, restaurantes que precisaram jogar toda a comida fora. O que está na raiz disso? Uma privatização mal feita, porque os contratos, se exigem, não obrigam as empresas a fazer o que têm de fazer.
Não quero usar esse exemplo, porque é meio pedante, mas vou ter que usar: já foram a Nova Iorque, Paris, Roma? Se sim, viram postes na rua? Poste só tem aqui e em países mais atrasados do Terceiro Mundo. Então chove e árvore cai em cima do fio, que não deveria estar no poste, deveria estar enterrado. Eles enterraram? Fui do conselho da Eletropaulo, e gentilmente falei para o presidente que não ficaria, porque não concordo com isso, tinha que enterrar. Precisa cobrar mais uma tarifa? Cobra, explicando que é o que corresponde ao serviço, mas não deixa a cidade à mercê das chuvas.
Assim como a Sabesp. A lógica dessas empresas, quando colocam ações em Nova Iorque, é que elas têm de pagar dividendos. A Sabesp pagou 4 bilhões de reais em dividendos e não investiu coisa nenhuma, e a Eletropaulo idem – manda dividendo adoidado para a tal da AES. E o povo que se lixe. Aliás, essa é a regra na economia de hoje. Eles vão fazer o ajuste fiscal e o povo que se lixe
Falando nisso, o ajuste fiscal tem sido muito criticado por conta dos efeitos recessivos que ele pode causar. Quais seriam medidas alternativas a ele na situação atual?
Vamos fugir um pouco do espírito de que a economia é uma máquina que precisa ser consertada, em que você mexe um parafuso aqui para ter um resultado ali. Eu disse que acho que o mercado exagerou em relação à situação fiscal. Boa parte do que piorou se deve a um fenômeno como aquilo que estávamos discutindo em relação à poupança – como a renda caiu, a situação fiscal piorou. É só olhar as notícias de jornal: “arrecadação cai para os níveis mais baixos desde 1900 e não sei quanto”. Por quê? A situação fiscal tem a ver com o crescimento. Por isso Keynes dizia que é preciso estabilizar o investimento para estabilizar o comportamento da renda. Se deixamos a própria economia fazer isso, flutua o tempo inteiro, e o ajuste fiscal será feito em cima de uma economia que está em recessão? Vai se afundar, empurrar para baixo. Qual é a lógica do ajuste fiscal? Se a gente prometer ajuste fiscal, certamente o setor privado vai ganhar mais confiança, vai investir, e aí a economia se reequilibra – é o que eles pensam. Só que essa suposição é falsa.
Quando o ajuste fiscal é feito em recessão, o cara da empresa que produz, digamos, equipamentos mecânicos para outra indústria que está perdendo receita, mandando os empregados embora, vai comprar equipamento da última? Vai gastar mais, investir, olhando que está tudo caindo? O que se observa hoje é isso. Não importa que os empresários digam que é bom o ajuste fiscal, porque, como dizia um tal de Karl Marx, “eles não sabem mas fazem”. As pessoas não têm noção dos seus próprios interesses, elas atiram contra seu próprio pé. Apoiam, porque a ideologia tem um papel muito importante na vida social. Não fosse isso, se os homens fossem capazes de investigar suas próprias convicções, pouca gente aderiria ao Bispo Macedo. Fazem isso porque faz parte da construção da consciência coletiva. Os empresários não são diferentes, nós todos não somos. Querem acreditar no que para eles é correto, que é ter ajuste fiscal, porque o ajuste fiscal corresponde a uma convicção profunda individual das pessoas. Se estou em uma situação difícil, o que faço? Reduzo meu gasto e, com uma parte da minha renda, tento liquidar minhas dívidas. Reduzo a dívida como proporção da minha renda e do meu patrimônio e assim recrio minha situação, e tudo corre da melhor maneira. Só há uma falácia de composição aí, não se pode transpor isso, o que uma família ou um indivíduo podem fazer, para o conjunto da economia, porque o Estado e as empresas formam um conjunto de relações, no qual o Estado tem a função de gastar e arrecadar. Se a carga tributária é de 35%, o que o Estado gasta, na margem de 35% volta para ele. Se ele não gasta, não volta. É difícil entender isso?
Vimos recentemente o anúncio de demissões na indústria automobilística. Em outras situações, o governo chegava, tentava conversar ou intervir de alguma forma, foram feitos diversos regimes de redução/isenção tributária para o setor, e agora não houve nenhuma dessas medidas. Isso já é uma amostra, digamos, do conceito de patrimonialismo de Joaquim Levy aplicado na prática? O senhor acha que existe um risco concreto do governo Dilma, neste segundo mandado, perder uma das marcas que garantiu, inclusive, sua reeleição – a manutenção dos baixos níveis de desemprego?
Isso está no escopo da guerra patrimonialista. Cerca de 50% dos empregados da Mercedes e da Volks que foram demitidos não têm ainda condições de adquirir o seguro-desemprego porque estão há menos tempo empregados. Estes vão para casa e dizem o que? Vou assaltar na rua, ou vender alguma coisa nas esquinas, por que vai sobreviver como? Essas questões não entram no debate. Se um programa para proteger essas pessoas é criado, vai contra o ajuste fiscal. Outro dia, o Elio Gaspari escreveu na Folha [de S. Paulo] que se estava criando “a bolsa metalúrgico”. Isso é porque ele não é metalúrgico. Ele ganha dinheiro da Folha de S. Paulo, deve ganhar um bom salário, então é fácil, de cima, falar isso. Como ele gosta muito dos Estados Unidos, fico surpreso dele não saber que o Obama fez um programa para proteger a GM e a Ford – na verdade, estatizou as duas. Lá tem “bolsa automóvel”. Me dou bem com ele, gosto dele, mas é preciso ter cuidado com as coisas que a gente fala para não simplificar.
Aliás, a imprensa tem esse vício de simplificar e querer respostas inequívocas, basta ver o caso da Charlie Hebdou. Muito se falou que foi um atentado à liberdade de expressão, mas acho que isso e uma simplificação que pode nos conduzir a decisões equivocadas. É uma coisa muito mais complicada, e até mesmo os franceses, em sua maioria, compreenderam que é algo mais complexo – à exceção da extrema-direita.
Falando ainda sobre o papel da imprensa, como o senhor avalia que ela colabora com a manutenção dos “dogmas da teologia econômica” que o senhor mencionou no começo da entrevista?
Ela é fundamental na sociedade de massas, porque como é que as pessoas se informam e criam convicções? Quando se entra na internet, percebe-se claramente que, em vez de contrabalançar isso, agrava, porque há uma repetição, os comentários são sempre os mesmos – assustadores. Mais do que isso, imaginou-se que se criaria a Ágora, mas se criou a Cruz Gamada, o fascismo. O fascismo não é um fenômeno de Estado, mas sim da sociedade. Uma de suas características é o imediatismo – é isso ou aquilo. Foi isso que aconteceu na França, o maniqueísmo, os bons contra os maus.
Seguindo nessa discussão sobre a mídia, como o senhor vê essa separação reforçada por ela da economia da política, como se fosse algo técnico, quase puro, não influenciado pela ideologia ou por orientações externas a si?
Para simplificar, eu diria que, se a “velhinha de Taubaté” fosse dar um curso de Economia, diria essas coisas. Há muita velhinha de Taubaté dando curso de economia, como se fosse uma ciência, que tem leis de funcionamento típicas etc. Agora, temos que entender que esse tipo de abstração é importante para retirar do cidadão a ideia de que ele pode contestar, questionar o que está sendo dito pelos especialistas. “Cidadão não pode, porque não tem formação” – é isso o que eles estão querendo dizer. Cidadão está impedido de se manifestar porque não conhece as verdadeiras leis de funcionamento. Como as verdadeiras leis de funcionamento que formulam são fajutas, é um mecanismo de dominação e de controle.
Se houvesse outra correlação de forças no Brasil, outro arranjo social, se os trabalhadores brasileiros e sindicatos tivessem participação mais efetiva na discussão, teriam outra proposta. Mas não têm, quem as tem são os rentistas, pessoal do mercado financeiro, os proprietários e controladores da riqueza. Não adianta nada votar na Dilma – e temos que reconhecer que ela está ilhada – se você depois não cobra que ela faça a política econômica que prometeu. Não é que é uma traição, mas acharam que bastava votar e não participar ativamente da discussão. Sempre dou o exemplo da Alemanha e da economia social de mercado. Ela nasce do ordoliberalismo, liberalismo na ordem, que supõe que os atores sociais importantes têm de participar da discussão – não só dos salários, da política monetária, mas de tudo. O Bundesbank [banco central da Alemanha] sempre foi submisso à questão maior, que é a relação entre trabalhadores e empresários. Os trabalhadores têm ainda representação nas empresas. E a negociação salarial, de preço de salários, além das condições de trabalho, treinamento dos trabalhadores, tudo é discutido. Por isso a Alemanha saiu muito bem depois da guerra, conseguiu preservar sua estrutura industrial, avançada em relação a outros países da Europa. Seu mecanismo de coordenação é mais adequado.
Falei para o Lula: “Presidente, era preciso que fizéssemos um acordo social para impedir que, na instabilidade da economia, se sacrificassem os trabalhadores”. Negocia, há várias formas de fazer isso. Mas o que acontece é que a economia vista dessa forma, fetichista, tem uma função. Marx já tinha dito: produzir a ilusão de que você está submetido a um sistema inexorável, natural, do qual não se pode fugir. Na verdade, não há nada de natural, é tudo uma coisa construída pelo homem. Aliás, o capitalismo não é natural, é antinatural, sob vários pontos de vista. Ele tirou o homem da dependência da natureza mas, ao mesmo tempo, cometeu ofensas brutais a ela.
Em uma entrevista recente, o senhor disse que o Aécio Neves não ganhou as eleições, mas que governaria pelos próximos quatro anos. Mantém essa opinião, sobretudo agora, que a política econômica do segundo mandato começa a ser desenhada?
A política econômica que está sendo negociada é a política do Aécio. É como se dizem nos estádios de futebol: sai Armínio [Fraga, anunciado por Aécio Neves como seu eventual ministro da Fazenda], entra Levy. É a mesma coisa que trocar seis por meia dúzia. O Armínio até que é um pouco mais moderado, eu diria. Ele tem dúvidas, o Levy não. Como disse o Luiz Carlos (Mendonça de Barros), em entrevista ao Estadão, ele é um ponto fora da curva, um ortodoxo impenitente, porque não cede. Em uma palestra que o Keynes foi fazer na Alemanha – em uma época em que o país estava submetido às reparações de guerra –, um sujeito da plateia levantou a mão e disse: “mas o senhor veio aqui outra vez e disse outra coisa”. Keynes disse: “é, mas mudei de opinião. As circunstâncias mudam e eu mudo de opinião”. Acho que esse não é o caso.
O senhor mencionou a Petrobras em outra parte da conversa. Que tipo de medidas o governo tem que tomar, além dessas saneadoras, e que tipo de papel a estatal pode desempenhar em uma recuperação econômica do Brasil?
Se juntar a Petrobras e as grandes construtoras, devem representar uns dez pontos percentuais da taxa de investimento. Se deixarmos isso colapsar, trava o sistema. O governo precisa ajudar a Petrobras usando os bancos públicos, ajudá-la a se recuperar financeiramente, a não atrasar o pagamento dos fornecedores, o que é muito grave – ela está fazendo isso, muitos estão com a corda no pescoço, sendo que nada têm a ver com a corrupção. Isso bate em pequenas e médias empresas subcontratadas dos fornecedores. Há um risco sistêmico, que reverbera nos bancos. É necessário fazer isso com muito método, cuidado. Teria que chamar os procuradores, os promotores, e avisá-los que não podem ser imprudentes. Afinal, é uma questão social, a empresa é uma organização social, tanto que os estudos de microeconomia que valem a pena são sobre organização industrial e empresarial. Por isso, não se pode entrar de sola, é preciso prestar atenção, porque se pode destruir vidas de pessoas que não têm nada a ver com isso e causar um grande prejuízo para a economia.
Pode-se criar, por exemplo, um programa de mudança de controle das empresas, limpar o terreno, mas deixar que as empresas sobrevivam. Não é essa história de “vou trazer uma empresa estrangeira para operar no Brasil”. Isso tem memória, experiência e memória técnica. Fico impressionado com as simplificações. Sei bem, meu pai foi juiz, estudei Direito, mas eles [membros do Judiciário] não têm formação sobre essas coisas, infelizmente. Noto que, no desempenho do juiz, falta um pouco de formação. Outro diz dei uma entrevista sobre isso e as pessoas disseram que queria “proteger”, aí entra a simplificação. Proteger o que? Não tenho interesse nenhum. Fico com medo de que isso agrave a recessão e, na verdade, destrua o patrimônio brasileiro.
No final do ano passado, o economista Thomas Piketty concedeu entrevista à Fórum e falou muito sobre taxação das grandes fortunas para redução de desigualdades, além de auditoria cidadã da dívida pública. O que o senhor pensa sobre estes dois conceitos? Sua aplicação no Brasil é viável?
O Brasil tem uma das menores taxações sobre patrimônio, é quase desprezível. Recentemente, li um estudo de um professor do Rio Grande do Sul sobre isso, com dados da Receita Federal. O Piketty era, não sei se é mais, assessor do Partido Socialista francês. É um social-democrata, formado nessa escola francesa, e não é marxista, é um economista convencional, mas tem essa preocupação com a igualdade. Acho o livro [O Capital no século XXI] muito interessante. As pessoas ficaram criticando a teoria – e ela pode sim receber críticas – a fórmula do r>g [renda/capital sendo maior do que a taxa de crescimento da economia], mas ela exprime, na verdade, um avanço dos ganhos patrimoniais, sejam eles do capital produtivo ou do capital financeiro, em relação à taxa de crescimento, e isso é um fator que, para ele, simplificadamente, amplia a desigualdade. Ele é muito bom economista no manejo dos dados, foi perfeito. Tentaram desmoralizá-lo, mas se deram mal, porque fez tudo direito. Mostra que, na época de guerras, a desigualdade diminui, porque há destruição de patrimônio, e que, durante um período longo, da grande depressão até meados dos anos 1970, a desigualdade cai, mas aí por conta das polícias econômicas.
Veja os Estados Unidos, o [Franklin] Roosevelt, para mim, o maior estadista do século XX, foi corajoso para enfrentar as questões: sindicalizou, garantiu aumento de salário, fez programas sociais de proteção aos mais pobres, e isso foi replicado no Pós-Guerra pelo Estado de bem estar social. O que ele [Piketty] revela é que se pode fazer arranjos de política econômica que favoreçam crescimento, aumento da igualdade e o bem-estar da população em geral. Em meados de 1980, 1990, isso se reverte com as políticas liberais, e aí a economia virou esse fetiche.
O senhor citou algumas vezes conversas com o presidente tem a mesma abertura que tinha com Lula em relação à presidenta Dilma?
É bom você ter perguntado isso. Cada um tem o seu estilo. Conheço o Lula desde os anos 1970, temos uma trajetória juntos, sei como ele é. Ele gosta de ouvir, mesmo que não concorde com você. Fui professor da Dilma no mestrado e no doutorado, e ela sempre foi uma aluna muito aplicada, muito respeitosa. Não é por isso que me darei ao direito de dar lições a ela. Quem foi eleita foi ela, com 54 milhões de votos. Não vou ficar querendo dar pitaco. Se me perguntar alguma coisa, eu falo.
Tenho grande carinho por ela, gosto dela, mas acho que está em uma situação muito difícil. Mas torço muito. Me convidou para ir à posse, não pude comparecer, mas mandei a ela um e-mail, que ainda não respondeu [risos]. Torço muito para que dê certo. Quando falo sobre a recessão e as dificuldades, não estou torcendo contra. No Palmeiras, por exemplo, tem gente que torce contra. Mas pode aparecer o diabo lá que torço a favor. Não me interessa quem é o presidente, quero que o time ganhe. Vou torcer para que dê errado, as pessoas sofram, ela se dê mal? Até porque, mal ou bem, nos últimos 50 anos, quem tentou promover a ascensão dos debaixo foi o PT, com todos os seus erros – e erros enormes –, mas foi o PT que fez. É o progressismo que nós temos.
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Belluzzo: “A regra da economia de hoje é ‘o povo que se lixe’” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU