23 Abril 2014
Mesmo sendo um economista "menos crítico ao governo", como ele mesmo diz, Luiz Gonzaga Belluzzo acredita que é importante realinhar a rota do governo: "é preciso dar mais peso ao investimento do que ao consumo e elevar a meta de superávit primário", diz.
A entrevista é de Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 20-04-2014.
Na sua avaliação, outra tarefa prioritária é se dedicar à solução de problemas estruturais, como a indexação, que faz a inflação persistir, e o baixo crescimento. Entre as estratégias que defende está o fortalecimento da Petrobrás, que pode contribuir com a reindustrialização, e a permanência da política de campeões nacionais. "Você não pode entrar na competição global com uma carroça e concorrer com os caras que estão em carros de Fórmula 1", disse na entrevista que segue.
Eis a entrevista.
Como o senhor está vendo a economia?
Eu vejo a economia brasileira eivada de contradições e, às vezes de aporias – contradições que não se resolvem. Hoje o Brasil tem dificuldade para lidar com o regime de metas e para colocar a inflação na meta. Ouço muita gente dizer: vamos fazer uma recessão e colocar a inflação na meta. Pensar isso é ótimo, mas você vai ter que enfrentar as consequências políticas.
Os economistas em geral navegam numa abstração em que o homem real e concreto não é levado em consideração – é como se dissessem, se você vai se estrepar o problema é seu. É difícil explicar alguns problemas na linguagem dos economistas. Por que coloco a inflação em primeiro lugar? Porque esse é o tema que no momento mais suscita debates, mas a questão vai além. Se você olhar ao longo do tempo fica muito claro que, desde a estabilização, a inflação está, na média, em 5,7%. É uma situação peculiar. Recentemente, isso chamou a atenção de um economista do Fundo Monetário Internacional (FMI) chamado Shaun Roache. Ele escreveu sobre essa persistência da inflação.
Falei sobre isso em um artigo na Carta Capital. Roache fez uma análise econométrica muito sofisticada para identificar essa persistência. A sua conclusão é: não há certeza se essa situação se deve ao fato de a indexação ainda sobreviver na economia ou se o problema decorre da reação do Banco Central, que, na expectativa dos agentes, é inadequada. No fundo, há um conflito entre o passado e o presente na política de metas. A política de metas não considera que as pessoas olham para o passado. Mas os agentes olham o passado – olham a indexação. Está correto olhar para frente, mas isso não permite que você elimine a indexação.
Quando a gente fala isso, as pessoas ficam nervosas porque, para muitos os agentes, os formadores de preços, olham apenas para as condições futuras – quando na verdade não é bem assim. Os salários, por exemplo, estão indexados e, por isso, permitem que qualquer choque de preço passe adiante. Eu costumo usar o exemplo do tomate. O choque de preço do tomate passa para o salário, para o transporte, para a educação. Dentro a indexação dentro da Facamp (Faculdades de Campinas, instituição da qual Belluzzo é sócio e professor).
Sofremos, por exemplo, a indexação das tarifas públicas. Falava sobre isso ontem com João Manuel (economista João Manuel Cardoso de Mello, também sócio e professor da Facamp). A segunda questão é o crescimento. Outra vez: se olharmos uma base longa, perceberemos que o Brasil vem tendo problemas para crescer. A partir dos anos 80, sofreu uma crise bastante importante que teve efeitos de longo prazo e estruturais. São 30 anos desde então. Primeiro, houve a década perdida.
Eu, infelizmente, fui para o governo depois da crise da dívida externa. A situação era incontrolável. O financiamento organizado pelo comitê dos bancos (Comitê Assessor dos Bancos, representante dos credores) e pelo do Fundo Monetário Internacional nos mantinha com a água aqui no queixo. Havia a tensão sempre presente do estrangulamento cambial, que obrigava a desvalorização do câmbio. Houve vários choques na tentativa de se conter a inflação.
A economia teve um comportamento errático e o crescimento, na média, foi muito baixo. Depois da estabilização, tivemos problemas de política fiscal, monetária e cambial. A estabilização foi feita com a âncora cambial. Se você pegar a taxa média de juros da economia, a Selic, do período verá que ela foi de 22% real ao ano. Houve momentos de grande tensão, por causa das crises. Fernando Henrique Cardoso pegou a crise mexicana, a crise asiática, a Russa – e a política econômica imaginada não era adequada para o momento porque supunha que os ganhos de competitividade viriam de uma valorização cambial que forçava os empresários a tomar providências. Isso é pelo menos duvidoso.
Nenhum país em desenvolvimento fez isso. É muito fácil dizer que o governo de Fernando Henrique foi de baixo crescimento – de 2,3%, 2,4% na média –, mas houve as crises. O governo Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) teve a seu favor uma melhora sensível das condições internacionais por conta da China. O preço das commodities abriu espaço para que ele fizesse as políticas corretas, sociais, com distribuição de renda. Isso foi inédita no período. A exceção de alguns emergentes, o movimento foi o contrário.
O mundo aumentou a desigualdade. Não que se tenha feito aqui uma nova classe média – fico nervoso quando ouço isso. Mas foi feito um avanço social importante, que teve repercussões até na forma de crescimento da economia. Entre 2004 e 2008, 2010, a taxa de crescimento foi mais elevada. Mas houve uma espécie de deslocamento da economia brasileira em relação ao que está acontecendo na economia internacional. Não conseguimos nos aproximar, nos articular, nas chamadas cadeias globais de valor. As mudanças no mundo nesses últimos anos foram muito profundas.
É essencial entender alguns fenômenos. Uma deles foi a mudança da manufatura para a Ásia. Criou-se um cluster asiático, principalmente com a China e suas relações com países asiáticos. A China tem a liderança na produção de várias manufaturas. Ocorreu uma reconfiguração da setor manufatureiro em escala global. Você produz na China, mas as empresas que estão capturando os ganhos não estão lá. Veja o caso da Foxconn, que produz o iPad para a Apple. Ela produz um iPad por US$ 150 na Ásia, mas nos EUA ele é vendido por US$ 500.
A Apple não produz quase nada nos Estados Unidos. O Brasil ficou fora dessa reconfiguração. Não avançamos na mesma direção que a industria global – tanto do ponto de vista da organização empresarial, quanto dos setores. Até o início da crise da dívida, diria que estávamos par e passo com o resto do mundo. Até o final dos anos 60, mais ainda. Se olharmos as taxas de crescimento e a diversificação da indústria brasileira, vamos perceber que estávamos bem ali, colados no que era a última palavra em indústria. Não é mais assim.
Por que falei de inflação e depois de crescimento? Porque há uma relação entre as duas questões – e essa é uma questão que vai estar presente nos próximos anos. Vários aspectos dessa recuperação tem relação com a condução da política anti-inflacionária. Temos ai um problema. É impossível recuperar – ou pelo menos buscar alguns nichos industriais – sem uma política cambial compatível com essa reindustrialização. Eu espero que ninguém esteja lendo minha entrevista tente o suicídio. O que estamos vendo agora?
O Banco Central fazendo um esforço enorme para impedir que a inflação avance. Para isso, está admitindo uma certa valorização do câmbio. As vezes noto, com surpresa, as pessoas dizerem que é ótimo o câmbio estar se valorizando. É ótimo no curto prazo, mas no longo é muito ruim porque afeta a indústria brasileira. Muitas indústrias se transformaram em importadoras. Muitas empresas praticamente fecharam as linhas de produção. Para a empresa, nenhum problema. Ela continua ganhando dinheiro importando. Mas isso pode nos custar muito no futuro. Vamos retomar a questão do crescimento.
No segundo governo Lula, as taxas de crescimento foram maiores também porque a política econômica foi compatível e tivemos o benefício da melhoria dos termos de intercâmbio e o bom comportamento da balança comercial. O déficit em transações correntes era muito pequeno, perfeitamente financiável. Quando os agentes do mercado internacional viram o comportamento das commodities, correram para os países que eram produtores de commodities. Não só para nós. Foram também para Rússia, para Austrália. Os capitais entraram generosamente – tanto que acumulamos US$ 375 bilhões de reservas. Foi o grande benefício desse período. Nunca tivemos reservas tão elevadas, nem em proporção do PIB.
A política do salário mínimo e a política social trouxeram um contingente importante de brasileiros para o mercado de consumo. Também ai houve um fator chinês. O preço das manufaturas despencou e o câmbio facilitou a aquisição de bens duráveis. Foi possível nesse momento, incorporar uma fração importante ao mercado de consumo e ao mercado de crédito. Nesse ponto vem a história da perda de dinamismo econômico.
Houve um momento, logo depois da crise, em 2009, em que o governo tomou as medidas de restauração do crédito, a compra de carteiras, a mobilização do fundo garantidor do crédito – tudo isso porque o Brasil sofreu um contágio em 2009. O PIB caiu 0,3%, mas todo mundo, de repente, cortou os programas de investimento. Os empresários ficaram apavorados. Não se sabia a dimensão da crise. O governo foi muito feliz ao reestimular o consumo. Mas houve neste ponto, na minha opinião, um hiato, uma demora em perceber que o ciclo de consumo tem suas limitações – tanto pelo lado do crédito, quanto pelo lado da natureza do bem. A não ser famílias, como dizem os franceses, nanti (abastadas em francês), ninguém compra três carros, três geladeiras. Há também o peso da dívida sobre a renda disponível.
O nível de renda aqui das classe mais baixas é bem diferente da dos Estados Unidos ou da Espanha. Logo se atinge um limite. Houve uma demora em coordenar a transição para os investimentos, principalmente em infraestrutura. Ao mesmo tempo, ocorreu algo muito delicado de se tratar: uma crise de confiança, que teve impacto sobre a decisão de investimento dos empresários e afetou muito a disposição dos bancos em conceder crédito. No último ano, quase 100% do crédito veio de bancos públicos. Os bancos privados se retraíram um pouco.
Desde o Getúlio Vargas até o regime militar, a relação entre Estado e setor privado, por razões históricas, que não cabe tratar aqui, sempre ocorreu entre tapas e beijos. Eu lembro que ainda em pleno segundo PND (Plano Nacional de Desenvolvimento dos anos 70), escreveram o Documento dos Oito (assinado por empresários do setor de bens de capital para romper a aliança do setor e o governo). Eu ajudei a escrevê-lo. Ele trazia a ambiguidade dessa relação, que tem momentos de auge, de satisfação, e momentos de desconfiança mútua. É normal.
No momento, por diversas razões, há baixa confiança. Há uma dependência muito grande da opinião do setor financeiro. Eles tem um peso enorme. E não por acaso, porque eles vivem de confiança. Vou fazer uma reflexão. As avaliações são muito voláteis nessa área. Seria bom que os economistas relessem a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber, para ver como ele desloca a crença para o crédito.
Crédito vem do latim credere, crença. A questão da confiança é importante e não é calculável. Lá na China, o Estado tem o comando da economia e autonomia para tomar decisões. Mas aqui no Brasil, o Estado não tem essa autonomia. Tem a restrição de ter de fazer o jogo de convencimento para virar as expectativas do mercado ao seu favor. Não adianta querer subir na parede contra isso porque sempre foi assim. E pesa ainda o fato de o Brasil não ter uma classe empresarial parecida com a americana e com a inglesa. Aqui você precisa lidar com o problema de uma economia que não inova, que precisa de incentivo do Estado. A construção desse espaço de confiança é importante.
Esse é um desafio para o nosso crescimento. O desafio para 2015 é esse mesmo que todo mundo fala: é preciso dar mais peso ao investimento do que ao consumo.
Os críticos dizem que o governo Dilma cometeu um erro de diagnóstico: fez uma aposta errada em mais consumo, quando deveria apostar em mais oferta e que isso levou a mais inflação e pouco crescimento.
É bom você perguntar, porque acho essa análise um tanto simplista. Eu não sou tão crítico do governo assim, mas eu falei isso antes de muita gente. Falei porque, a despeito das minhas relações afetivas com pessoas do governo, eu não vou me comportar como se fosse um porta-voz. Eu não sou um porta-voz deles. Graças a Deus, consegui sobreviver com uma certa independência.
É correto o que está sendo dito do ponto de vista da demora do governo para perceber a mudança. Escrevi um artigo sobre isso dizendo que não era para fazer mais do mesmo. O governo deveria ter preparado os programas de investimento em infraestrutura. Demorou muito. Além disso, houve um descompasso também em relação à Petrobrás, que tem um peso importante no aumento do investimento - ela tem uma participação na formação de capital e, mais que isso, um horizonte pela frente com o pré-sal.
A política em relação à Petrobrás também prejudicou o setor de etanol. Foi um pena, um descuido. A ideia original era desenvolver ao mesmo tempo o pré-sal e as energias renováveis. O Brasil com a cana tem vantagens em relação ao milho dos Estados Unidos, no entanto, pecamos nesse ponto que faria uma enorme diferença para o País.
Vai ser preciso reestruturar o setor, criar uma nova política de estímulo porque não dá para continuar com esse preço que está ai. Enfim, houve um descompasso. Eu também fiquei preocupado ao ver a ideia de que era preciso tabelar a taxa interna de torno da economia. Eu falei, várias vezes que isso não dava. O Guido (Guido Mantega, ministro da Fazenda) chegou a ficar chateado comigo, mas depois admitiu que eu tinha razão.
Enfim, atrasou e não foi favorável à conquista da confiança dos empresários. A demora foi corrigida e as coisas começaram a andar. A Petrobrás agora também começa a se recuperar. Temos que olhar para frente. Apesar de tudo, o Brasil tem um horizonte de investimento – coisa que não ocorre em muitos países. Do ponto de vista do longo prazo, é preciso explorar nichos para a reindustrialização. O que a Petrobrás demanda, por exemplo, de equipamentos e serviços são coisas muitas sofisticadas.
Não estamos vendo, mas muitas empresas estão fazendo joint ventures para atuar no setor de petróleo e gás e também no de infraestrutura. O Brasil conta com esses dois marcos, infraestrutura e Petrobrás, e se você me perguntar o que vejo quando olho para frente, vou dizer que o Brasil tem horizonte favorável. Diferentemente de outras pessoas, não creio que a China vá desacelerar. Achei engraçado que um jornal publicou que a china tinha desacelerado de 7,5% para 7,4%. O Estado atua sobre o crescimento da China e ele não vai ficar abaixo disso.
A demanda por commodities agrícolas e minerais vai se manter. Concordo com o presidente do Centro de Estudos Internacionais da Academia de Ciências que a China é outro arranjo entre Estado e setor privado. Lá o setor privado é muito maior. Há uma articulação maior entre privados e empresas estatais. O sistema de gestão da economia é muito eficaz. Mas, apesar de tudo isso, eu acho que o pacote de 2015 não vai ser fácil de desembrulhar – você vai encontrar coisas boas e coisas ruins.
Na hora que o pacote for desembrulhado, há um primeiro problema a atacar?
A política econômica vai ter de caminhar em um corredor muito estreito. Eu disse outro dia que a economia brasileira está metida numa camisa de 11 varas – é uma expressão velha, da minha avó, mas define. Seria muito ruim se tivéssemos uma perda do controle da inflação – até pelas razões que eu mencionei. Muito rapidamente o vício da indexação pode ser retomado porque ainda não conseguimos debelá-lo.
Também é preciso considerar que o Brasil tem problema para administrar a inflação quando boa parte do mundo ruma para a deflação. A Europa está com deflação. O Japão não conseguiu se livrar do risco. Os Estados Unidos também está numa situação de baixo crescimento, com mercado de trabalho sem dinamismo. Há uma proporção muito alta de jovens desempregados.
Os republicanos dizem que estão preocupados com a inflação nos Estados Unidos. Não sei por qual razão. Como diria Keynes (economista inglês John Maynard Keynes), só estando num hospício para não ter deflação. Se você não tem crédito, não tem estímulo, não tem mercado de trabalho, como ter inflação? Até na China o cenário é de deflação.
A tendência quando se tem sobrecapacidade é ter deflação. O Brasil está na outra ponta. Tem tendência à persistência da inflação. Isso obriga o governo a ser muito cauteloso, principalmente com o ajuste do câmbio. Eu tenho lido no jornal o comportamento da balança comercial. A economia está com baixo crescimento, mas as importações crescem. Isso tem relação com preços relativos, não com o nível de absorção doméstica. Isso quer dizer: o câmbio está fora do lugar. Isso não ajuda em nada o processo de reindustrialização – ainda que a gente tenha essa perspectiva de investimento da infraestrutura e do investimento da Petrobrás.
É claro que é possível subsidiar com políticas domésticas. Vou discutir um pouco essa questão das encomendas das Petrobrás e da compra no mercado doméstico. Eu vejo que há uma discussão muito grande dos economistas sobre isso – que a Petrobrás compra mais caro. É verdade, porém, não se pode ter duas coisas ao mesmo tempo.
Ou você tenta recuperar a indústria nacional com essa política de compras – que está correta – ou acelera os investimentos da empresa e libera a empresa de comprar no mercado doméstico, perdendo uma oportunidade para recompor uma parte do setor industrial, como o metal mecânico e o de informática, entre outros. É claro que ai há outro conflito – o do câmbio com a inflação, o da política de investimento e com a política econômica. E não adianta fazer protecionismo a antiga.
Aliás, um comentário: lendo o artigo de um rapaz em O Globo outro dia, que falava dos pudores desenvolvimentistas da Unicamp (Universidade de Campinas), eu perguntei para o João Manual: João, nós somos desenvolvimentistas? Essa é uma palavra vaga. Na verdade, nos tentamos entender como funciona o capitalismo brasileiro em suas várias etapas e momentos. Não somos desenvolvimentistas. Somos outra coisa. Para vocês saberem: o desenvolvimentismo é algo muito datado. Vem dos anos 30 e vai até os anos 70.
Os militares deram sequência ao desenvolvimentismo nos anos do milagre. A preparação foi feita por Roberto Campos (economista e ex-ministro do Planejamento). Campos era como Monsieur Jourdain (personagem central da peça "O Burguês Fidalgo", do francês Molière, que deseja se tornar aristocrata). Era um desenvolvimentista sem saber, assim como Jourdain fazia prosa sem saber. Roberto era uma figura admirável porque falava uma coisa e fazia outra. Na verdade, reestruturou todo o sistema de empresas estatais, recompôs as tarifas, na reforma feita logo depois da revolução.
A gente não pode cometer o erro de fazer esse anacronismo em relação ao desenvolvimentismo. Voltando à contradição, ao problema do câmbio com a inflação. Hoje, muitos componentes são importados. Se você mexe no câmbio, o efeito sobre os preços e sobre a inflação é instantâneo. Na veia. O Banco Central está entendendo isso. É preciso conduzir isso com muito cuidado.
Mas como se combate a inflação com esses limites? Os críticos do governo dizem que boa parte da inflação veio do aumento dos gastos públicos e de uma redução dos juros que teria sido forçada...
Essa questão do gasto público, no fundo, tem relação com a questão da confiança. Eu não imagino que estejam falando, neste momento, que a inflação surge porque o gasto público está produzindo excesso de demanda. Acho que tem relação com o comportamento das dívidas. Pela necessidade de o governo produzir um superávit primário que garanta a estabilização da dívida – e da dívida bruta, porque a líquida, francamente, está muito baixa, pelas razões que nós conhecemos.
Quando o câmbio é desvalorizado, a dívida líquida cai por um efeito meramente contábil. Para mim, seria muito mais razoável se o governo, nesse momento, fizesse um esforço fiscal maior. Eu já disse isso: colocaria menos peso sobre a política monetária. Como eu já disse, a questão da confiança está metida no meio da economia. A despeito de toda a oposição de economistas que pensam como eu e têm certa resistência em aceitar isso, acho que é um sacrifício necessário ter um superávit fiscal maior.
Por que a resistência?
Não vale a pena falar. Às vezes é um keynesianismo de pé quebrado. Não quero criticar meus amigos, mas, do meu ponto de vista, é crucial para o governo dar esse sinal para o mercado – vai ganhar pontos e ter mais espaços para fazer um política menos apertado. Esse ganho de confiança teria um impacto sobre a inflação. A pior solução seria manter a taxa de juros nas nuvens e elevar o câmbio para combater a inflação.
O Banco Central, acho, está sendo cauteloso para usar esses instrumentos. Seria o caminho mais adequado do meu ponto de vista. Vai ser positivo se combinar o avanço dos investimentos em infraestrutura com os da Petrobrás – que, apesar de toda essa confusão, está indo bem melhor. Ela está batendo recordes seguidos de produção. Projeta 4,2 milhões de barris para 2020. Aliás, quero fazer um parênteses: é inaceitável o que aconteceu na Petrobrás. Uma coisa dessa não pode ser.
O sr. está falando de Pasadena?
Sim. No mínimo, para você ser gentil, houve um erro de avaliação. Não sou promotor público e não quero ser – apesar de meu pai ter tentado fazer com que eu fosse. Agora, outra coisa é dizer que a Petrobrás vai quebrar. Isso não tem pé nem cabeça.
A Petrobrás teve R$ 23 bilhões de lucros no ano passado. Tem um estoque de reservas a ser exploradas. Ela tem um problema de alavancagem, sim. Deve ter um problema de caixa, sim. Mas não vai quebrar. Mas, enfim, como eu estava dizendo, é preciso que o governo tenha esse ganho na área fiscal. Vai abrir espaço para que tenha uma política monetária menos dura. Nós já vimos esse filme. As pessoas esquecem o passado. A taxa de juros a 19% e a inflação a 5,5%. Ou não teve esse momento? Teve. O Armínio (Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central) mudou a meta da taxa de juros quando teve um choque. Ele mudou para 8%, com intervalo de 2 pontos porcentuais. Vocês não lembram disso?
Mas o senhor acha que seria o momento de fazer algo parecido?
Não. Estou dizendo que, na verdade, as apreciações são muito diferentes
Pergunto porque algumas pessoas chegaram a falar em mudar a meta.
Não acho que seja o caso. O próprio regime permite que o prazo para colocar a inflação na meta seja estendido. Isso está no modelo.
Mas ainda há uma inflação represada...
Sim. Eu ia falar disso - e quanto mais você demorar para ajustar isso, vai ser pior.
Qual o tamanho do superávit necessário?
Acho que caminhar para 3% seria mais confortável.
O senhor não está dentro do governo, mas onde seria mais fácil cortar para administrar esse superávit?
Quem está no governo sabe que há coisas no orçamento que podem ser cortadas – só não pode cortar o investimento, que já é baixo. Se eu fosse examinar o orçamento, em detalhe, poderia suspender vários contratos. Há emendas parlamentares também que, mesmo com as dificuldades políticas, podem ser adiadas porque não são urgentes. Há espaço para fazer cortes.
Se a economia não cresce, fica mais difícil gerar o superávit. Se a economia tem recessão, você não consegue vencer a tendência ao déficit. Como dizia um bom keynesiano, o Joseph Stiglitz (economista americano, prêmio Nobel em 2001), o déficit e o superávit são endógenos: você pode determinar quanto você pode gastar, mas não pode determinar o resultado dessa decisão. Isso depende do funcionamento do resto da economia, de como ela reage. Veja o exemplo dos países europeus que estão tentando reduzir o déficit com corte de gastos.
É complicado. É difícil. A atividade cai e a receita do Estado cai junto. É endógeno. De qualquer maneira, é possível decidir onde cortar sem afetar setores cujo impacto é maior sobre a economia. É por isso que um bom keynesiano gostaria de ter um orçamento de capital aparte, separado do orçamento corrente. É o que Keynes recomendava. O orçamento de capital é o regulador da economia. Ele determina qual vai ser o fluxo de gasto que você vai sinalizar para o setor privado reagir na direção de seus próprios investimentos. O investimento é a coisa mais sensível que existe.
Qualquer desconfiança em relação a realização do que foi projetado, leva à retração. Veja o caso americano. As empresas americanas estão com trilhões no caixa e não investem porque não estão confiando que a economia vai deslanchar. Essa proposta de Keynes, que é antiga, diz que é preciso haver uma coordenação entre estados e municípios para se articularem. Aqui no Brasil, temos uma problema sério, que não mencionei, mas que inibe o crescimento.
Há um controle ex-ante do gasto do Estado, feito de uma maneira institucional, muito séria, que bloqueia a agilidade do Estado. Ao invés de fazer a ação ex post, temos o ex-ante. Fico rindo quando dizem que formaram um cartel aqui em São Paulo. O cartel já existia. Em nível internacional, já existia. Se for olhar o nível de concentração de empresas globais, vai descobrir que é brutal. O número de empresas do setor ferroviário, por exemplo, não passa de cinco, seis. Isso é um empecilho. É preciso mudar as regras, encontrar outra forma de acompanhar isso.
Hoje, quem perde pode entrar com recurso e bloquear todo o processo. Outro dia, Andrea Calabi (secretário da Fazenda do Estado de São Paulo)me contou: não consigo gastar. O problema do estado hoje é que ele não consegue gastar. A Justiça pode ir lá e bloquear. Criou-se um emaranhado burocrático no Brasil. O pessoal confunde a ação do Estado com essa burocracia que ninguém aguenta. A irracionalidade do sistema fiscal, dos impostos, obrigar as empresas a contratarem um número absurdos de funcionários.
Qualquer um pode, de repente, receber uma multa da Receita Federal sem saber de onde ela veio. Há um emaranhado burocrático enorme. A usina de Belo Monte é um exemplo. Teve tantas interrupções que já se perdeu, há tempos, quantas foram. As pessoas precisam pensar que Estado elas querem. Um Estado enxuto? Bem, com certeza, é um estado mais eficaz. É uma bobagem discutir se o Estado deve ou não intervir na economia. Essa discussão é uma bobagem.
Nem Adam Smith (filósofo e economista escocês) acredita nisso – ele era bem mais esperto do que se pensa. Ele era muito mais sofisticado do quem alguns fazem parecer. Mas, enfim, Adam Smith morreu faz tempo e escreveu a Teoria dos Sentimentos Morais sobre o setor privado. Muita gente deveria ler a Teoria dos Sentimentos Morais. De fato, é preciso reorganizar o sistema brasileiro e reduzir o peso da burocracia.
Não há dúvida que se você compara a facilidade de fazer negócio na China – que é um Estado pesado, mas eficaz – e compara do com o Brasil você perceber uma diferença brutal. Não tem esses empecilhos. Algumas coisas, eles deixam soltas. Aqui no Brasil, controlam o setor externo, sobretudo o movimento de capital de curto prazo, e têm controle sobre o sistema financeiro.
A China tem isso, o máximo de competitividade, com o máximo de controle – mas controle onde interessa. Não adianta fazer controle empurrando uma coisa aqui, outra ali. Essa é uma questão que as vezes me aborre porque os liberais brasileiros falam que o Estado não pode nada, enquanto os outros acham que o Estado pode tudo – mas não pode. Ficou provado que a economia de comando fracassou e que as economias que vão melhor têm uma coordenação entre os setores público e privado.
Nós podemos falar de vários. Podemos falar da China. Podemos falar da Suécia, que vai muito bem. Podemos falar da Noruega, que é um exemplo interessantíssimo. Vocês mesmos fizeram uma matéria mostrando isso – claro que são 5 milhões de pessoas. Mas com certeza o modelo de exploração do petróleo lá deu certo.
Mas, enfim, o caso do Brasil não é que o Estado se meta muito na economia. Ele se mete de maneira inadequada. E mais do que isso, ele tem esse emaranhado burocrático. Há três coisas que preciso falar. Uma é que nós perdemos um mecanismo importante de coordenação – as empresas estatais. Nos destruímos as empresas estatais nos anos 70. Seguraram tarifa. Elas foram obrigadas a tomar financiamentos lá fora porque havia abundância de financiamento externo.
Efetivamente, perdemos coordenação, porque o investimento delas funcionavam como uma coordenação, um harmonizador das expectativas do setor privado. A segunda questão está diretamente relacionamento com o desmonte feito dentro do Estado. Por exemplo, havia o Geipot (Grupo de Estudos para a Integração da Política de Transportes).
Ao invés de termos 35 ministérios, poderíamos ter grupos executivos, com empresários e burocratas, no moldes do que foi feito pelo Juscelino (ex-presidente Juscelino Kubitschek). Era uma coisa muito mais eficiente do que a maluquice de ter 35 ministérios. A terceira coisa é resolver de maneira legal, institucional, o investimento público.
Não adianta colocar um monte de controles "ex antes" (antes). Com isso, o que vai aparecer são dificuldades feitas para se vender facilidades. Ao invés de bloquear a corrupção, você incentiva a corrupção. O que deve haver é controle "ex post" (após). Se você pegou o cara fazendo coisa errada, prende. Tem que fazer. O que não pode é usar isso como argumento para manter leis e estruturas burocráticas que só servem para impedir que o Estado faça alguma coisa. Nos últimos anos, o Brasil virou isso.
O sr. falou da função das estatais na condução da economia. Temos o exemplo de Petrobrás, que teve os preços de seus produtos represados e virou a empresa mais endividada do mundo. A Eletrobrás teve R$ 6 bilhões de prejuízo. A Infraero está numa situação difícil. Como o sr. avalia a situação das estatais no governo Dilma e o que é preciso fazer para corrigir os problemas – se que é o sr. vê algum problema?
Essa ideia de segurar as tarifas foi aplicada nos anos 70 e deu no que deu. A Petrobrás tem um horizonte que permite que a gente entenda que essa alavancagem vai cair. Já mencionei que esse tentativa de segurar o preço teve efeito sobre o setor de etanol e setores correlatos, como os fabricantes de equipamentos para o setor de etanol, que também foi afetado. Isso não é bom. Afeta a capacidade e a velocidade do investimento da empresa – que tem um papel prioritário. Sei que tem impacto sobre a inflação. Mas lá atrás, quando era necessário subir o preço, tinha que ter sido feito. Era para absorver o impacto sobre a inflação.
Não há o melhor dos mundos. É preciso fazer escolhas. Parece que numa reunião recente, com banqueiros, alguém perguntou o que fazer. Eu vejo alguns economistas falarem – inclusive alguns que deram entrevistas para vocês – como se soubessem os caminhos das pedras. Ninguém sabe o caminho das pedras. Você avança pulando de pedra e pedra para não afogar. Algumas questões que vem lá de trás, não foram tratadas tempestivamente, o que vai acontecer? Você vai pagar pela decisão. Não tem jeito de enrolar e dizer que não está acontecendo nada.
Eu me lembro que em maio de 2013, quando discuti esse tema com algumas pessoas, eu disse: está na hora, a inflação esta retrocedendo. Você não pode ter todas as vantagens ao mesmo tempo. Mas agora vai ter de trata com cuidado esse problema da Petrobrás.
O senhor no começo falou muito do papel da Petrobrás no crescimento e agora que as estatais foram importantes para guiar os investimentos. A Petrobras tem um papel importante em um eventual novo modelo de crescimento? Qual seria esse modelo?
Acho que a Petrobrás tem importância, mas mais ainda tem importância o pré-sal e o modelo de partilha escolhido. É pertinente e permite que se tenha controle mais adequado dos recursos. Essa fonte de recurso precisa ser tratada como um patrimônio do País porque não é renovável. Não pode – vou usar uma expressão futebolística – mandar pau nesse dinheiro. Precisa colocar no fundo soberano e usar apropriadamente, como fazem outros países, com destinação específica. O dinheiro está destinado para a educação.
A Petobrás produz hoje 1,9 milhão de barris. Logo chegará a 2 milhões. Está projetando para 2020, 4,2 milhões barris. A Petrobrás é hoje uma das 20 maiores empresas de petróleo e, certamente, será uma das maiores. Vai ficar, eu diria, tranquilamente, entre as 10 maiores. A Petrobrás em parte pertence ao governo brasileiro, mas em parte precisa dar retorno aos acionistas. Qual o benefício que ela vai gerar pelo fato de ter se mantido como estatal? É o benefício do modelo de partilha. Nessa crise da Petrobras, eu vejo gente defendendo que se retorne ao modelo de concessão.
O modelo de concessão é apropriado para achar petróleo. A Petrobrás já achou o petróleo. Quantas plataformas ela tem em operação? Nove – até onde sei. Eu posso estar enganado e ter aparecido mais uma. Mas é por ai. Agora, o importante é definir o ritmo da operação e a destinação dos recursos, porque são recursos finitos.
Não podemos nos comportar como a elite venezuelana. Durante anos, ela capturava as rendas do petróleo e ia para Miami. O resultado disso foi o Chávez (Hugo Chávez, ex-presidente falecido). Esse foi um mérito do governo Dilma. Ela montou direitinho um modelo de partilha. O resultado disso vamos ver lá na frente. Boa parte da sobrevivência do Estado de bem e dos avanços na Noruega se deve ao fato de que eles usaram corretamente da renda do petróleo. Não é difícil. Mas é preciso resistir às pressões. Além do mais, não pode segurar o preço da gasolina.
E se tratando do setor elétrico. Vai ser preciso fazer uma reestruturação? Como o sr. avalia a setor.
O setor elétrico tem vários problemas. Não se vocês se lembram, havia um movimento dos empresários acusando as tarifas de energia serem as mais altas do mundo. De fato são – e não era para ser assim. Há um problema de coordenação no setor elétrico. Na verdade, temos uma reserva de recursos hídricos importante.
Poderíamos ter usado outras formas de geração, sobretudo quando os preços dos painéis solares estão caindo – até por força dos chineses terem adotado uma política mais ativa nesse produto. Mas acho que o problema está na forma como foram feitas as concessões e o cálculo de reajuste das tarifas. Não tem cabimento corrigir tarifa pelo IGP-M. Depois disso, o problema foi agravado por uma falta de percepção de como integrar o setor.
Tínhamos falado do modelo de crescimento. Um dos pontos centrais mencionados pelo senhor é que o câmbio – com essa limitação da inflação. Como a economia pode voltar a crescer sem o motor do câmbio e como tratar o câmbio no próximo governo?
Essa questão do câmbio é muito difícil de ser tratada. Se produzir um deslizamento mais suave, ao longo do tempo, o efeito sobre a inflação não será grave. O problema é a desvalorização abrupta. Já falei: com a atual estrutura de fornecimento vai ser um problema.
O câmbio não suficiente para reanimar a indústria. São necessárias outras medidas, incentivos para recuperar certos elos das cadeias produtivas que foram eliminados. É preciso uma política de investimento e de "funding" (financiamento). Estou sempre pensando como fazem os asiáticos. Eu seu que esse é um exemplo complicado, mas o General Park Chunk-hee, o grande responsável pela industrialização coreana, decidiu fazer a petroquímica, os economistas dele disseram para ele não fazer. Mas ele insistiu e disse que iria dar incentivos, estímulos à industria do setor. Isso porque não faz industrialização apenas com câmbio.
É preciso ir devagar. Não se pode mais permitir um período tão longo de valorização, como foi permitido porque ai temos outra questão – temos uma moeda não conversível. Somos um País ainda em crescimento. Precisamos de uma política específica para o câmbio. Se outros países mais desenvolvidos não tem é porque as moedas deles são conversíveis. Não sofrem choques.
O senhor está defendendo o controle de capitais?
Claro. Temos de ter o controle de capitais como outros países. Recentemente, o Fundo Monetário Internacional publicou um documento importante sobre essa questão do controle de capitais dizendo, claro, que o controle de capitais não é desejável em si mesmo, mas é preciso que se tenha a capacidade de dirigir a entrada de capitais de forma a te beneficiar. Muitos países já fizeram isso. Não é nenhuma heresia econômica. O que é inconveniente é ter momentos de euforia e depressão.
O senhor falou da necessidade de recuperar a confiança. Mas isso não provocaria o efeito inverso, na medida que controlaria a retirada de dinheiro do Brasil?
Seria preciso fazer o controle da entrada de capitais. É evidente que o capital de curto prazo, que vem apenas fazer arbitragem, especulação com a sua moeda, não é desejável. Os chineses permitem a entrada de capital. Aliás, o crescimento chinês foi feito com a entrada maciça de capitais estrangeiros...
O sr. fala muito dos asiáticos, da China, da Coreia. O modelo deles presume os campeões nacionais e demanda muitos recursos. É possível aplicar a receita no Brasil? O senhor defende a volta dos campeões nacionais?
Boa pergunta. Eu estava esquecendo de uma questão que você levantou. Eu tive a pachorra de ler inteirinho o World Economic Outlook Database (relatório de perspectivas econômicas globais do FMI). É muito chato, mas é bom para se informar sobre o que está ocorrendo nos gabinetes dos organismos bilaterais.
Eles publicaram o Global Financial (no original Global Financial Stability Report, relatório de análise da estabilidade financeira, também do FMI) e o World Economic. Lendo a análise, bem feita e muito mais arejada do que foi no passado, escrevi até um artigo um artigo na carta Capital sobre isso. Eles fizeram um estudo muito cuidadoso para fazer a relação entre poupança e crescimento.
Fizeram um painel com cento e tantos países, se bem me lembro, que mostra claramente que o crescimento precede a poupança. Essa é uma velha discussão: o Brasil não cresce porque tem baixa poupança? No Brasil, o mercado de capitais não consegue mobilizar esses recursos para o investimento de longo prazo. Só há uma fonte de financiamento de longo prazo, o BNDES. Até li, com satisfação, que o BNDES destinou R$ 3 bilhões para a compra e a venda papéis. Isso é muito importante, porque o Brasil não tem a tradição dos países anglo saxões de ter um "market maker" (provedor de liquidez). Você emite um debênture ou mesmo uma ação e precisa de liquidez para mobilizar o mercado de capitais.
Espero que não achem que isso seja uma intervenção do governo na economia, que vejam como uma atitude benéfica. Mas o que mostra o estudo é que esses países aceleraram o crescimento usando o sistema de crédito, alavancando. A China está com 250% do PIB de endividamento total, principalmente das empresas e do governo, porque o das famílias é baixo. Em todas os países asiáticos houve alta alavancagem das empresas. Mas havia um sistema de absorção dos choques, de modo que as empresas não sofressem, com taxa de juros baixas e controle de capitais.
O Banco do Japão, o banco central japonês, funcionava com um provedor de liquidez para os bancos ligados às empresas. Até um tempo atrás, o Japão não tinha uma mercado de capitais desenvolvido. Eram sistema bancário que fazia o crédito. Enfim, em todos os asiáticos as empresas eram muito alavancadas, porque o crédito vem na frente da poupança.
O capitalismo tem dessas maravilhas. Inventou o sistema bancário que empresta um múltiplo de seus depósitos. Esses múltiplos poderiam ser infinitos se não fossem as medidas prudenciais. A Ásia tem taxa de poupança alta, tem, mas ela é "ex post". Para aumentar a poupança, é preciso crescimento. Você não pode aumentar a poupança sem que a renda cresça. Para que você tenha renda, alguém precisa estar gastando. Esse é o paradoxo.
Voltando ao BNDES. Ele acabou se tonando o grande agente financiador brasileiro de longo prazo. No fim, o BNDES não acaba inibindo a expansão do mercado? Vou dar um exemplo: nas concessões, o BNDES entrou para suprir 70% do crédito. Mas esse não teria sido um momento para tentar alternativas de financiamento que pudessem fomentar e ampliar o mercado?
Mas os bancos privados dão empréstimos de longo prazo de quanto? Cinco anos? A concessão é de 30 anos. Precisamos de crédito de mais longo do que isso. Eu não entendo como o BNDES pode inibir o setor privado.
O argumento é que o BNDES recebe recursos do Tesouro e o BNDES consegue oferecer uma taxa de juros menor.
É a taxa de juros do setor privado que não consegue atrair os empresários. É um contra senso. Quando o Tesouro coloca dinheiro no BNDES e o BNDES empresa para a empresta, no fundo está criando um ativo rentável lá na frente – esperamos. É como dar injeção na veia. É assim que o Banco de Desenvolvimento da China faz. Você falou dos vencedores.
O Banco de Desenvolvimento da China, muitas vezes, só começa a cobrar o empréstimos quando a empresa já está operando. Tirando os Estados Unidos e a Inglaterra, quase todos os emergentes asiáticos usaram essa estratégia - subsidiaram. Eu não vejo problema. Ao contrário: acho que o BNDES pode servir como um estímulo para os bancos.
Qual é o problema dos bancos? Não é só um risco de crédito. É um risco de liquidez também. Porque o banco, quando empresta, individualmente, fica menos líquido, fica atrelado àquele negócio. Dar liquidez permite que ele securitize, saia e venda no mercado. É isso que o BNDES vai fazer agora.
Todos os países asiáticos e sistemas financeiros fizeram coisas parecidas. Na verdade, nos períodos mais agudos da industrialização, eles não tinham mercado de capitais. Tinham bancos. O desenvolvimento da Alemanha também foi assim no século 19. Os bancos se juntando às empresas. Nos Estados Unidos foi diferente, porque, desde logo, tinha uma relação com a praça de Londres. E, desde logo, tinham mercado de capitais. Desenvolveram o mercado de capitais com os bancos de investimento.
O Luciano Coutinho (presidente do BNDES) deu uma entrevista para o Estado anunciando que havia desistido da política de campeões nacionais. O sr. acha que deveria ser retomada?
Acho que nós temos problemas sérios de reestruturação da indústria brasileira. Não conversei com o Luciano. Faz tempo que eu não converso com ele. Você não pode entrar na competição global hoje com uma carroça e os caras concorrendo com um carro de Fórmula 1.
Como se escolhe um campeão nacional?
Por exemplo, a Petrobrás é um campeão nacional natural. Ela é uma das grandes empresas petrolíferas do mundo. Não precisou de nenhuma política especial para transformá-la nisso. Quais os setores que você vai escolher? Tem que escolher os setores em que você tem vantagens e pode conduzir a um bom termo. Isso é uma coisa construída porque não há mais vantagens comparativas. Os asiáticos perceberam isso. Hoje está muito mais difícil. Os chineses estão...
Mas isso não gera favorecimento de grupos empresariais?
Mas isso é a lógica do capitalismo. Ou você acha que você tem concorrência perfeita?
Mas isso é um incentivo, não?
Sim, mas funciona assim. "I'm sorry". Peço desculpas. Na verdade, o capital se centralizou. Te passo, se você quiser, uma lista de todos os setores para você ver quantas empresas estão no controle. São cinco. São duas. No máximo. Por exemplo: a indústria automobilística tem dez. Na indústria farmacêutica, pouquíssimas.
Mas em que momento você para de financiá-las? Por exemplo, o JBS, na pecuária, um setor escolhido. Recebeu ajuda, se tornou o maior do mundo, mas a ajuda continua, agora no setor de papel. Em que momento a empresa caminha sozinha?
Tem um momento em que você precisa reduzir mesmo o impulso. Mas você como você acha, por exemplo, que a Coreia se transformou no maior estaleiro do mundo ...
Mas a Coreia era uma ditadura. A China não é uma ditadura?
Mais ou menos. A China é um regime político peculiar. Como disse o Fernando Henrique para mim, voltando da China, 'ninguém lá atinge suas liberdades políticas, agora você não pode falar mal do Estado chinês'. Você tem restrições. A Coreia foi uma ditadura. O General Park Chunk-hee fez aquilo. Mas o Japão fez isso com o Partido Liberal. Não era uma ditadura.
Mas era uma situação diferente, o pós-guerra, com apoio dos Estados Unidos, com bases militares no país...
A Coreia também teve apoio americano. No caso do Japão...
É possível manter a economia fechada, como foram Japão e Coreia?
Mas elas não foram fechadas.
No começo, Japão e Coreia adotaram restrições...
Sim, mas não eram economias fechadas. Ao contrário. Mas é claro que foram favorecidas por critérios geopolíticos. Nós, na verdade, montamos um modelo de crescimento puxado pelas exportações. A Coreia teve taxas de câmbio múltiplas, como o Brasil teve também. Por que? Ela fez o controle de importação de bens de consumo, não tinha mesmo. Mas importação de bens de capital tinha, sim. De componentes, etc. Depois eles foram substituindo.
Diferentemente do nosso modelo de substituição de importações em que, na verdade, você foi permitindo, pelo estrangulamento cambial, a substituição durante um bom período. No caso da Coreia, fizeram uma política intencional de controle das importações, não há dúvida nenhuma.
Eu fui à Coreia. Nas lojas, havia aquela coisa de não comprar produtos que não fossem coreanos. Mas pega a composição da importação deles e vê como, na realidade, se apropriaram das tecnologias mais avançadas para produzir.
O governo adotou uma medida mais protecionista no início do mandato da presidente Dilma e o empresariado tem pedido maior abertura da economia...
Mas o que quer dizer isso, na verdade? Se você faz isso, nestas condições, com o câmbio valorizado, você vai tomar uma invertida. Eu acho que na atual conjuntura – já escrevi isto num artigo com o Julinho (Julio Gomes de Almeida, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial) – você tem que importar para exportar. Porque você está perdendo peso nas exportações globais de manufatura.
Não vamos fazer isso com câmbio desvalorizado, nem com ausência de política industriais. O que quer dizer mais abertura? Que você vai dar uma de "liberou geral"? Não existe isso no mundo. Nem os países asiáticos fazem isso. Eles, na verdade, regulam. A China é uma grande importadora. Tem déficit com os outros asiáticos, mas tem superávit com Estados Unidos.
Os chineses montaram uma estratégia inteligente. Para eles, na verdade, as importações mais baratas – porque eles são grandes montadores – são importantes. Assim como o Brasil também. Fico preocupado com essas oposições binárias. Ou é abertura total ou é então você é protecionista. Tem que fazer política de comércio exterior.
Os americanos fazem política de comércio exterior, a despeito deles terem perdido o controle para o conjunto de empresas deles. Elas não querem saber de voltar a produzir nos Estados Unidos. Essa história da reindustrialização americana está mal contada. Não que as empresas americanas estejam indo mal, elas estão indo muito bem. O sistema empresarial americano vai muito bem, o que não vai bem é a economia territorial americana.
Tem mais essa questão – ocorreu a globalização. As pessoas falam ahhhh globalização, globalização – mas ela ocorreu de fato, com implicações que tornaram muito mais difícil você ter uma política industrial. Os chineses têm dificuldades de criar seus campeões nacionais. Eles estão muito bem do ponto de vista da organização da sua produção doméstica, com auxílio do investimento externo, mas criar os seus campeões nacionais está difícil.
O que estão fazendo? Estão saindo. Compraram agora uma parte da maior empresa francesa de automóveis, a Peugeot. Compraram 30%. Eles estão saindo pelo mundo. Se você for olhar, estão começando a comprar em vários lugares. Hoje existe o problema da concorrência da marca.
Os chineses não têm marca. Eles são os maiores produtores de automóveis do mundo. Mas eles exportam muitos automóveis? Não exportam. Essa coisa da marca na concorrência é importante. Você conhece alguma marca brasileira que tenha se destacado, que você perceba como um a marca de reputação? Porque isso faz parte de um padrão de consumo contemporâneo.
Por 30 anos, o Brasil ficou praticamente afastado dessa construção. Perdeu vários passos que tinham de ter sido dados. Essa questão da criação de campeões nacionais é muito mais complicada hoje do que foi, por exemplo, quando os coreanos criaram a Samsung, a LG. Porque eles entraram numa brecha. Quando é que aconteceu isso? Nos anos 1980. Eles entraram numa brecha aberta pelo Reagan (Ronald Reagan, ex-presidente dos Estados Unidos) no mercado americano, quando o Reagan valorizou o dólar. Numa das campanhas eleitorais, o adversário dele disse: "de fato, o Reagan colocou um frango na panela e dois carros na garagem dos americanos, só que os dois carros são japoneses e coreanos".
Hoje em dia é muito mais complicado. Os asiáticos entraram no mercado num momento muito favorável. A China estava começando a jogar o jogo.
Mas a escolha é sempre complicada, não? A Coreia escolheu segmentos de ponta, eletroeletrônicos, automóveis, estaleiros. O Brasil escolheu pecuária e, ao mesmo tempo, matou o etanol..
O etanol é um bom exemplo.
...O etanol que talvez seria o trunfo na nova fase da energia no mundo...
Exatamente. O etanol é um bom exemplo, não só em si mesmo. O Brasil fez a escolha errada no II PND. Por que? Que setores foram escolhidos no II PND? Escolheram setores básicos. Mas já estava ocorrendo, estava em gestação, a Terceira Revolução Industrial. Não que as pessoas não soubessem disso. A revolução na eletroeletrônica, na automobilística, como está ocorrendo agora outra revolução tecnológica. E o Brasil, como faz? Um país deste tamanho? Nós perdemos ali, naquele momento, porque escolheram setores errados. Setores velhos
E agora, fizeram as melhores escolhas? E o exemplo do etanol?
Estou te dando razão no caso do etanol. Nós deveríamos ter levado o etanol como um projeto importante para o Brasil. Foi o que o Lula fez. O Lula moveu este negócio do etanol. Você tem razão. Nós escolhemos errado. É um setor que tinha vantagens já quase absolutas. Nós podíamos ter avançado pelo lado do etanol. Mas o problema não se restringe a isso.
Nós perdemos o padrão de industrialização da Terceira Revolução Industrial – essa que é a questão. Uma questão mais estrutural. E, agora, criar campeões nacionais é muito mais difícil. O que os asiáticos, japoneses, coreanos criaram nessas empresas, uns nos anos 1960 e 1970, outros nos anos 1980, foi com a determinada configuração da economia mundial. Hoje em dia, a configuração é completamente outra.
Você me permite a oportunidade de falar de outra coisa: o eixo hegemônico está mudando de lugar. Isso demora para acontecer, mas está acontecendo. Está mudando do Atlântico para o maciço eurasiano, incluindo a Rússia. Não sei se você está vendo: os russos e os chineses estão fazendo um movimento recíproco de cooperação. Eles são economias complementares.
Os russos são muito bem dotados de recursos naturais, como nós somos. Outro dias, eu estava vendo as maiores companhias petrolíferas do mundo. Das vinte maiores, três são russas. Eles têm vantagens na mineração e na manufatura. Eles estão, na verdade, caminhando na direção dos chineses. Se você quer que eu te diga uma coisa correta que o Brasil está fazendo, entre as críticas que eu fiz, é a aproximação com os Brics.
É dessa aproximação que vai nascer o novo dinamismo da economia global. Esse grupo muito poderoso, de qualquer ponto de vista. Do ponto de vista da dotação de recursos, do ponto de vista da disponibilidade de água. A questão da água é fundamental para os próximos anos – e o Brasil é um dos únicos países que dispõe de abundância desse recurso natural. Não vai ser fácil resolver este problema global.
O Brasil não tem que escolher ninguém, mas tem que ser estratégico, precisa se juntar onde o mundo está começando a redefinir suas relações entre as regiões. E essa região, com Rússia, China e Índia, é a região que terá o desempenho mais favorável. As pessoas não falam que nos Brics o Brasil tem um fundo de estabilização de US$ 100 bilhões com a China, com a Rússia. Eles estão criando um banco de desenvolvimento porque os chineses têm, e nós também devemos ter ambições – inclusive e sobretudo na América Latina – de ter investimentos binacionais ou trinacionais, o que você quiser. E os chineses estão menos voltados para a África e mais para a América Latina.
Os russos, por razões estratégicas, têm dificuldades de lidar com o Ocidente. Então o Brasil está fazendo uma escolha correta do ponto de vista geopolítico. Isso não tem nada a vez com os campeões nacionais. Tem a ver com a integração econômica mais razoável e com mais probabilidade de dar certo.
O sr. é um interlocutor frequente da presidente Dilma?
É o seguinte: depois que ela assumiu a presidência, falei duas vezes com ela. Não sou tão frequente assim. A frequência era muito maior com o presidente Lula. Com ela, foram duas vezes. Porque é o estilo dela. Eu não quero também me apresentar como interlocutor frequente da presidente.
Você ficar assoprando coisas no ouvido do "príncipe". Eu vejo que muitos economistas ficam envaidecidos com essa possibilidade de falar com o presidente. Isto não é legal. Você tem que falar com o público. Não chegar lá e começar a soprar coisas. Com o Lula, tenho muita liberdade. Conheço o Lula desde os anos 70, quando ele ainda estava criando o PT. Eu secretariei a primeira Conclat (Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras), em Niterói. Sou amigo dele, gosto muito dele. Ele chamava a mim e ao Delfim (Delfim Netto, economista) com muita frequência. Ele ouvia a gente, ouvia mais gente, ouvia todo mundo e tomava a decisão.
Eu nunca tive a ilusão porque sou conselheiro do presidente. É uma coisa ridícula. Posso dar minha opinião de outras formas. No caso dele, eu o considero uma pessoa amiga, pela qual tenho grande admiração pessoal. Ele é uma pessoa afetiva. Gosta dos amigos dele. Eu gosto muito dessa coisa do cara que gosta dos amigos. Ter amigo é bom. Eu me considero amigo dele, apesar das nossas divergências futebolísticas.
Para dizer a verdade, ele era muito sábio nestas coisas. Ouvia todo mundo e tomava a decisão que achava conveniente. Foi assim na crise. Ele escolheu o caminho. Ele e o Guido Mantega – que, aliás, é muito injustiçado porque na crise ele foi muito bem. Agora, no caso dela, não. Ela tem outro estilo. Eu tenho até carinho por ela. Foi minha aluna. Mas isso não tem nada a ver. Não é um estandarte que se deva estar erguendo toda hora. Acho uma coisa muito ruim, muito brasileira, essa ideia de "tenho ali minha relação particular com o presidente". Não é legal. É melhor que seja uma coisa mais impessoal – até porque me dá liberdade para falar o que eu falei para vocês sobre os problemas do governo. Se não, você fica driblando na área.
Da mesma maneira, você não pode tratar o teu adversário na democracia como um inimigo. Eu vejo que, mesmo nas entrevistas que vocês fizeram, as pessoas têm um ressentimento partidário. Isso não é bom na discussão. Eu posso ter minhas preferências partidárias, mas não posso usar isso para elogiar ou para criticar.
Eu tenho de fazer um esforço para me afastar dessa coisa. É muito difícil você dizer que nessa questão você vai fazer uma análise objetiva. Vocês são jornalistas e sabem que objetividade é uma questão relativa. Tem que, na realidade, tomar distância. Ser objetivo é um problema filosófico complicado. O que é a objetividade? O que é o real? Não vamos discutir isso. Mas você tem que se destacar e dizer com clareza, como eu estou dizendo aqui, partindo da minha visão de economia. Schumpeter (Joseph Alois Schumpeter, economista natural da República Checa) é que dizia: a análise vem depois.
Primeiro vem a visão. Uma visão geral da questão, de como é que funciona. Como é que funciona esta economia capitalista hoje? Tem que partir desta visão. Pode ser que eu esteja completamente equivocado. Não obstante, nos últimos anos na análise dos antecedentes da crise, eu não me equivoquei tanto. Mas você se equivoca porque, na verdade você, não tem capacidade de incluir todos os dados que são relevantes na sua hipótese.
Tem que admitir que sua análise está sujeita a falhas. A coisa que mais incomoda nos economistas são as certezas esféricas. Quando se olha por todos os lados, tem as mesmas certezas. É preciso ponderar. Tem que dizer o seu ponto de vista, mas considerar que é possível que as coisas não sejam assim.
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