“Vingamos o profeta Muhammad”

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"Mas, não nos enganemos, a guerra não é entre o Islã e o Ocidente, senão que na realidade se trata de uma verdadeira guerra civil no interior do Islã entre diversas maneiras de entender a mensagem do Profeta", escreve Jaume Flaquer, jesuíta, em artigo publicado pelo blog Cristianisme i Justícia, 07-01-2014. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o artigo.

Com este grito disparava à vontade um dos terroristas nas oficinas do semanário satírico Charlie Hebdo, uma espécie de “El Jueves” [A Quinta-feira] francês, provocando ao menos doze mortos. Este semanário já tinha recebido diversas ameaças e havia sido atacado em novembro de 2011, depois de fazer uma edição especial intitulada “Charia Hebdo” sobre o triunfo dos islamitas em Túnez.

Recordemos alguns anos antes, em 2005, o diário dinamarquês Jyllands Posten publicou doze caricaturas de Muhammad [Maomé], uma delas com um turbante-bomba, que incendiaram de cólera o mundo islâmico em inícios de 2006. Dois anos depois, a polícia evitou o assassinato do desenhista.

Na raiz de tudo isto, Charlie Hebdo tomou peito e denunciou satiricamente o fundamentalismo islâmico com uma explosiva folha de rosto na qual se via Muhammad dizendo: “É duro ser amado por estúpidos!”. Isto sucedia também em 2006. Mais recentemente, líamos “O Corão é uma merda, não detém as balas”, na folha de rosto de 19 de julho de 2013, onde um islamita egípcio tentava defender-se de uns disparos com o Corão. Em outro número apresentava uma “vida de Muhammad” não menos desagradável.

Apesar do mau gosto deste tipo de periodismo, e do humor-denúncia através do insulto que se estendia para todas as demais religiões, nada pode justificar um atentado terrorista. Assim o entendeu o presidente da conferência dos imanes da França quando se apressou a considerar as vítimas do semanário como verdadeiros “mártires” e denunciou os terroristas dizendo: “Mas, de que Profeta estão falando? Não temos o mesmo profeta. Seu profeta é o do ódio e do horror”. O ímã de al-Azhar e a Liga Árabe também condenaram firmemente o atentado.

A atual situação do Oriente Próximo deve preparar-nos na Europa para este tipo de atentados, e inclusive maiores. O Estado Islâmico fez um chamamento a todos os muçulmanos a incorporar-se ao Estado Islâmico na Síria e a legitimar sua permanência na Europa unicamente com atentados.

Mas, não nos enganemos, a guerra não é entre o Islã e o Ocidente, senão que na realidade se trata de uma verdadeira guerra civil no interior do Islã entre diversas maneiras de entender a mensagem do Profeta. Nesta guerra, o que na verdade está em jogo é se deve ser aplicada fisicamente a lei islâmica medieval, ou se antes deve existir uma nova legislação para os tempos atuais.

A resposta não é tão simples, já que a maioria dos muçulmanos foram educados numa mitificação de suas origens, numa exaltação da expansão muçulmana e num princípio de fé segundo o qual a última legislação revelada é a que desceu sobre o Profeta Muhammad. Esta tem sido demasiado rapidamente identificada com os códigos jurídicos dos séculos IX e X.

Na prática, o que sucede no interior do Islã é que a maioria dos muçulmanos continua lendo esta literatura medieval, que enche as livrarias islâmicas, mas considerando que não deve aplicar-se em sua grande maioria, senão que deve apresentar-se como uma “advertência” de Deus sobre a gravidade de certos comportamentos humanos. Por isso, a maior parte dos países muçulmanos combina elementos do direito ocidental (especialmente o francês) com alguns inspirados (não literalmente) na lei islâmica tradicional.

Este “gap”, este salto entre a literatura medieval lida e admitida, e sua não aplicação é o ponto de apoio ideológico do fundamentalismo islâmico atual.

Por isso, contra o que crê uma parte da opinião pública ocidental, os muçulmanos condenam, sim, os atentados, condenam, sim, o terrorismo islâmico, posto que, na maioria dos casos, são eles mesmos os que o sofrem e são vítimas. Porém sua voz não chega a ouvir-se porque, creio eu, não chega a tocar o verdadeiro problema: o estudo científico sobre a origem do islã, sobre a história de redação do Corão e sobre o verdadeiro processo de formação dos códigos jurídicos medievais. O fruto de tudo isso não será outro que o centrar-se na pura adoração da unicidade divina.

Enquanto o Ocidente há de ser cauto e inteligente para distinguir o mundo ‘salafi’ fundamentalista do tradicionalismo islâmico (porém pacífico) que domina o panorama europeu. Caso contrário, deixaremos crescer a islamofobia, com a ingênua crença que estamos culturalmente tão desenvolvidos que não podemos voltar ao passado, ao obscuro passado que deu lugar à expulsão dos mouriscos.