Por: Jonas Jorge da Silva | 15 Novembro 2018
O sociólogo Rudá Ricci é um ferrenho defensor das regras democráticas. Foge da armadilha de que na democracia se pode tudo, de que a liberdade é total, como alguns são tentados a pensar. Ao contrário, em um regime democrático há limites e regras que devem ser respeitados em favor da convivência democrática.
“Nossa preocupação central não é com o governo eleito”, referindo-se à vitória de Jair Bolsonaro, mas “com os grupos de extrema-direita que, a partir desta eleição, foram encorajados a agir com violência contra as minorias”, ressaltou Ricci.
Essas e outras reflexões foram apresentadas durante o debate O Brasil que sai das urnas, promovido pelo CEPAT, em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR e o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na noite de terça-feira, 13 de novembro, em Curitiba-PR.
Ricci está muito preocupado com a maneira como vem crescendo os valores apregoados pela extrema-direita, em detrimento dos valores humanistas presentes na história de luta e resistência de ativistas, artistas e intelectuais brasileiros.
Com um sistema de representação que há tempo está em decadência e com a extrema-direita ocupando o lugar do centro político, as organizações e entidades da sociedade civil precisam estar preparadas para agir em defesa das regras democráticas, para impedir a intolerância e a violência dos grupos extremistas e antidemocráticos. Nesse sentido, para o sociólogo, é imprescindível a formação de redes de resistência e observatórios da violência política, um movimento que já começa a ser observado em diferentes locais do território brasileiro.
Em um debate caloroso, com a apresentação de dados sobre a pulverização de partidos políticos no futuro Congresso Nacional, os desafios que isto acarretará ao novo presidente eleito e as primeiras contradições já inerentes no início da formação do futuro Governo Bolsonaro, Ricci trouxe para os participantes um panorama geral do resultado das urnas.
Debate: O Brasil que sai das urnas (Foto: Viviane Aparecida Ferreira de Lara Matos)
Além disso, desafiou os participantes a se engajarem em favor dos valores democráticos e em defesa das vítimas da violência política. Não se trata de um tempo de resignação, mas de posicionamento político, nas diferentes instituições e organizações, sempre que as regras básicas da democracia estiverem em perigo.
Abaixo, reproduzimos alguns apontamentos de Rudá Ricci acerca da eleição nacional.
1. A eleição para Presidente da República neste tumultuado 2018 teve momentos distintos. Até o episódio da facada em Jair Bolsonaro, na cidade mineira de Juiz de Fora, sua candidatura não gerava segurança. Demonstrava estar paralisada em intenção de votos ao redor de 20%. A candidatura petista de Fernando Haddad crescia aceleradamente, procurando transferir votos de Lula, campeão de intenção do eleitorado brasileiro (na marca dos 40%), mas que havia sido preso e impedido de registrar sua candidatura;
2. Com o atentado à Bolsonaro, ocorrido em 6 de setembro, sua candidatura recebeu um sopro de vida. Primeiro, porque a comoção que gerou fez sua candidatura superar os 25% de intenção de votos rapidamente (em 20 de agosto, Bolsonaro tinha, segundo o IBOPE, 20% de intenção de votos; em 11 de setembro, já alcançava 26% e em 24 do mesmo mês, 28%). Segundo, porque o episódio consolidou sua candidatura como a única capaz de enfrentar o campo à esquerda. E, finalmente, porque lhe concedeu o álibi para se silenciar e não participar de nenhum debate público com seus adversários. Ficou em jejum. Todos sabemos da sua inabilidade retórica e fragilidade programática. Se safar dos debates foi um percalço a menos na sua campanha;
3. Na última semana de campanha do primeiro turno, a candidatura de Bolsonaro continuava crescer modestamente (ultrapassando a marca dos 35%), mas seu principal adversário, Haddad, estabilizava (em 22%);
4. O fato novo, que daria o impulso final à candidatura de Bolsonaro neste final de primeiro turno foi a disseminação de fake news pelos grupos de WhatsApp. Esta inovação de campanha deverá marcar os próximos pleitos nacionais. O fato é que esta tática conseguiu superar o teto do anti-petismo (na marca dos 25% a 30% dos eleitores brasileiros) e conseguiu penetrar nas camadas mais populares. O intento se deu por uma aliança entre igrejas evangélicas (com alta penetração popular) e esta nova tecnologia de comunicação de natureza privada e comunitária. Esta associação proporcionou a construção, já tentada por Marina Silva em 2010, de uma “Cruzada” ou “Guerra Santa” na reta final do primeiro turno. Tanto que o mote dos últimos dois dias de campanha não foi o anti-petismo, mas os gays e feministas que, segundo mensagens disseminadas nesses segmentos sociais, colocariam a família tradicional em risco, fortalecendo comportamentos imorais e inadequados;
5. Pesquisa XP/IPESPE realizada no final de setembro indicava que Haddad herdaria 71% dos eleitores que votariam em Ciro Gomes (equivalente a 8% do total de intenções de voto); 73% do eleitorado de Marina Silva (equivalente a 4%) e 33% dos eleitores de Alckmin (3% das intenções de voto). Assim, em 15 de outubro, pesquisa IBOPE indicava que a intenção de votos de Bolsonaro atingia 59% e Haddad atingia 41% (Bolsonaro obteve 46% dos votos no primeiro turno e Haddad, 29%, demonstrando um maior crescimento do candidato petista no segundo turno em relação ao verificado pela candidatura Bolsonaro);
6. Lentamente, Bolsonaro cai, ao longo do segundo turno, deste patamar de 59% para 55% e Haddad sobe de 41% para 45%. A mudança, ainda que insuficiente para retirar a vitória final de Bolsonaro, se deu em função da descoberta e reação tímida do judiciário em virtude das notícias falsas disseminadas nas redes sociais no final do primeiro turno, além da divulgação de financiamento de empresários para gerar esta fraude;
7. Aqui aparece uma primeira tese que confunde até o momento parte do campo progressista, muito disseminado pela candidatura de Ciro Gomes: a que a escolha de Fernando Haddad facilitou a vitória de Bolsonaro. A tese se apoia num equívoco técnico: pesquisas realizadas no primeiro turno projetariam todos candidatos, menos Haddad, como possíveis de vencer Jair Bolsonaro no segundo turno. A tese incorre em vários erros. O primeiro é que no final de setembro, a candidatura de Haddad já se projetava à frente de Bolsonaro no segundo turno (segundo pesquisas XP/IPESPE e IBOPE). Mas, o erro maior da tese está na própria confiança neste tipo de projeção.
Um dos erros primários que não se pode cometer em pesquisas quantitativas é a indução da resposta. Isto significa que a sequência de questões merece atenção profissional. Uma ilustração é perguntar se uma pessoa gosta de violência e, em seguida, perguntar se vota em candidato que prega a violência. A indução é nítida e gera viés na resposta. Pois bem, ao perguntar, durante o primeiro turno, em quem o eleitor pretendia votar no segundo turno, o viés inviabiliza o rigor em relação à resposta. Isto porque o eleitor projeta seu candidato no segundo turno.
No caso, se o seu candidato ataca um possível concorrente (caso de Marina e Ciro Gomes em relação a Haddad), mas este adversário não fazia crítica aos primeiros (Haddad tentava atrair os outros dois adversários citados), os eleitores se comportam de maneira distinta. Ocorre que num segundo turno, com apenas dois candidatos no páreo, aquela intenção inicial estimulada pela crença em seu candidato do primeiro turno se dissipou, obrigando o eleitor a repensar à luz dos projetos de país em disputa. O erro metodológico foi evidente. Tanto que a projeção das pesquisas realizadas no primeiro turno em relação à intenção de voto do eleitor no segundo turno já revelou total descompasso na primeira semana do segundo turno: Haddad e Bolsonaro passaram a ter um índice de intenção de votos absolutamente distinto das pesquisas realizadas anteriormente;
8. A tese sobre o melhor nome para enfrentar Jair Bolsonaro desconsidera dados concretos da realidade e a sequência de acontecimentos que ocorreram ao longo do primeiro turno. Ciro Gomes nunca conseguiu se revelar um candidato efetivamente competitivo justamente porque não conseguiu formatar um arco de alianças potente, não tinha relação orgânica com estruturas sociais de massa (sindicatos, igrejas ou entidades de representação de classe) e não obteve apoio da maior liderança política do país, Lula. Este foi justamente o diferencial entre Ciro Gomes e Fernando Haddad: o potencial eleitoral dos dois era equivalente (entre 5% e 10%). Foi o apoio de Lula e a estrutura política do lulismo que levou Haddad ao crescimento no primeiro turno. E justamente quando o nome de Haddad ganhou visibilidade e seus méritos passaram a ser examinados de perto pelo eleitor, o ritmo de crescimento do percentual de intenção de votos começou a ser menor até atingir o ponto de estabilidade;
9. O que parece ter ocorrido é que os acontecimentos imprevisíveis que catapultaram a candidatura de Bolsonaro se somaram à fraqueza dos candidatos do campo que se opunha ao candidato da extrema-direita. No campo do centro-esquerda, Haddad e Ciro Gomes – ambos apresentando programas de natureza social-liberal – não possuem carisma ou histórico suficientes para se equiparar à Lula. Poderiam até fazer frente à Bolsonaro desde que a facada e a disseminação de Fake News pelos grupos de WhatsApp não tivessem ocorrido. Com tais situações inusitadas, os dois candidatos não conseguiram atingir corações e mentes das populações silenciosas, não organizadas, altamente religiosas e conservadoras no seu ideário (ainda que não tanto em sua prática social concreta);
10. A eleição revelou um país dividido. Haddad venceu na maioria dos municípios brasileiros: o petista venceu em 2.810 municípios, Jair Bolsonaro venceu em 2.760 municípios. Por outro lado, Bolsonaro venceu em 97% das cidades mais ricas e Haddad em 98% das mais pobres. Entre os mil municípios com os maiores IDHs do País, Bolsonaro venceu em 967, enquanto Haddad conquistou 33. Já nas mil cidades menos desenvolvidas, Haddad ganhou em 975 e Bolsonaro em 25. Portanto, a campanha lulista conseguiu penetrar nos grotões;
11. Nas 500 cidades brasileiras com maior percentual de eleitores até 24 anos, Haddad venceu em 457. Já nas 500 cidades com maior percentual de eleitores acima de 60 anos, Bolsonaro venceu em 382;
12. Jair Bolsonaro se saiu melhor nos Estados com maior eleitorado. Venceu a eleição em 16 Estados, incluindo o Distrito Federal, enquanto Fernando Haddad ficou à frente em 11 unidades da federação (no Nordeste). Ganhou do petista por diferença mínima -- menos de 1 ponto percentual -- apenas no Amazonas e no Amapá, onde obteve 50,5% e 50,2% dos votos válidos. Venceu com uma diferença 16 pontos em Minas Gerais (com 58%), segundo colégio eleitoral do país, representando 10% dos eleitores brasileiros. Mas foi São Paulo, o maior colégio eleitoral do país (com 20% dos eleitores), que garantiu sua vitória: 63% dos votos válidos.
13. Em quatro Estados, Bolsonaro obteve mais de 70% dos votos, chegando a 76% em Santa Catarina e 77% no Acre, seus melhores resultados proporcionais.
14. Assim, houve confronto entre os dois maiores colégios eleitorais regionais do país: Sudeste (o maior, com mais de 43% dos eleitores) e Nordeste (com pouco mais de 26% dos eleitores);
15. As dificuldades de Bolsonaro, neste momento, são de equacionamento das divergências internas: entre militares nacionalistas e economistas e empresários ultraliberais. Esta tensão pode ser exacerbada caso a agenda econômica (ultraliberal, já anunciada pelo seu principal assessor da área, o banqueiro Paulo Guedes), próxima à adotada por Michel Temer, for posta em pauta. A frustração do eleitorado menos abastado deverá seguir o caminho da impopularidade que acometeu o governo Dilma Rousseff em 2015 e Michel Temer (que adotaram justamente esta agenda);
16. Outro problema é a crise econômica e de empregos que, segundo agências internacionais, não deverá ser superada no próximo ano;
17. Outro ponto de estrangulamento é a rejeição internacional que seu perfil de extrema-direita provocou na Europa e EUA, entre a grande imprensa, governos e grandes empresas;
18. Finalmente, terá que negociar com o Baixo Clero do Congresso Nacional, sua origem parlamentar, que demanda obras e recursos para suas bases eleitorais, pouco se dedicando às agendas nacionais. As demandas pulverizadas e agressivas tomarão muito tempo de negociação, como ocorreu nas gestões anteriores;
19. Este cenário sombrio sugere que seu governo deverá iniciar com pautas “quentes” mais populares, possivelmente da área da segurança pública, exacerbando suas diferenças com o campo progressista e de esquerda e procurando aumentar sua gordura de popularidade para, então, desfechar a agenda econômica;
20. Resta uma palavra sobre o campo progressista. Bolsonaro é a última liderança do campo conservador. Na verdade, é uma aposta arriscada numa liderança pouco equilibrada e experiente e afeta aos arroubos de extrema-direita. Foram-se os partidos de centro e centro-direita e candidatos “espetaculares”, personalidades sem projeção no cenário político (mas, por isso mesmo, mais fáceis de manipulação). O campo progressista sai derrotado das urnas, mas pode se recompor a partir da agenda econômica ultraliberal (que renderá grande frustração no eleitorado popular) e nos ataques que a vitória de Bolsonaro deve encorajar em grupos paramilitares ou mesmo segmentos reacionários, racistas e sexistas;
21. Não há certeza de nada. Os campos político e econômico continuam abertos e em crise. Os seis primeiros meses podem ser de namoro com a agenda reacionária. Veremos se permanece a partir daí.
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Na democracia há regras, independente do resultado das eleições - Instituto Humanitas Unisinos - IHU