07 Agosto 2007
A cerca de um mês do plebiscito sobre a reestatização da Vale do Rio Doce, a IHU On-Line entrevista o economista Marcos Arruda, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul – PACS. Na entrevista, Marcos relaciona o plebiscito da Vale com o primeiro plebiscito que ajudou a conceber: o da dívida externa. Fala, ainda, sobre a questão do desenvolvimento brasileiro e de quanto a Vale do Rio Doce pode contribuir para este projeto. Para ele, a Vale “precisa ser uma empresa que tenha como objetivo principal beneficiar as populações dos locais onde ela vai operar, em termos de emprego, de royalties, cuidado com o meio social e ambiental”.
Marcos Arruda é sócio-economista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul – PACS. Coordenador da Jubileu Sul e da Rede Brasil sobre Instituições Multilaterais, é formado em Filosofia, Letras, Geologia e Economia. Foi vítima de perseguição política, pois utilizava o método de Paulo Freire para alfabetizar os trabalhadores. Ao retornar do exílio ajudou a criar toda a política econômica da plataforma do PT para as campanhas de 1989 e 1994. Foi, também, um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sobre o plebiscito da dívida externa, você ressaltou o caráter pedagógico da mobilização. Este plebiscito sobre a reestatização da Vale do Rio Doce também possui caráter pedagógico? Por quê?
Marcos Arruda – Absolutamente. Todos os plebiscitos informais levados adiante pelo Movimento Popular no Brasil têm como objetivo principal o de educar. A idéia é instruir e mobilizar a população em torno de temas que os cidadãos deveriam estar definindo, se pronunciando e participando das decisões junto com o governo. Na falta de instrumentos aplicados da democracia direta, como é o plebiscito oficial que está contido na Constituição de 1988, e na falta de vontade do governo de conclamar plebiscitos desse tipo para consultar a população sobre temas de interesse estratégico do país e da população, nós estamos tomando essa iniciativa já há sete anos, desde o primeiro plebiscito sobre as dívidas externa e interna e o acordo com o FMI.
IHU On-Line – Como você acha que a discussão sobre a reestatização deve ser feita, levando em conta que a Vale do Rio Doce é grande consumidora de diversos recursos naturais?
Marcos Arruda – A Vale do Rio Doce é tomada por nós como um exemplo, pois tem uma espécie de janela para toda a problemática da economia brasileira. Essa empresa tem uma dimensão puramente mineradora no que se refere à produção e a exportação de minério, tais como ferro, alumínio e ouro. No entanto, ela também tem uma enorme quantidade de terras no seu controle. Nem todos os depósitos que estão nessas terras, aliás, já foram identificados. A Vale controla um patrimônio gigantescamente maior do que os valores que estão assegurados nos seus balanços anuais e no valor de mercado de suas ações. Tudo isso é inferior à realidade.
Além disso, ela, por controlar as terras conseqüentemente controla florestas, processos de produção de energia. Isso influi na vida de comunidades que fazem parte ou foram deslocadas dessas terras, como comunidades indígenas e de trabalhadores rurais, que são afetados pelas atividades da Vale, que controla, desse modo, tanto uma grande quantidade de água quanto de superfície e subsuperfície. Então, toda essa influência que a Vale tem sobre a sociedade, sobre a economia brasileira e sobre o meio ambiente fazem parte do foco desse plebiscito. É por isso que a nossa cartilha é bem mais ampla do que puramente sobre o tema do reconhecimento da nulidade do processo de privatização da empresa.
IHU On-Line – Como você relaciona a questão do plebiscito sobre a Vale do Rio Doce com a questão do endividamento do País?
Marcos Arruda – Antes, é importante nós conhecermos um pouco sobre a história desse endividamento. Nos anos 1970, a Vale do Rio Doce foi instrumento de endividamento externo, captando recursos do exterior a juros muito baratos. Uma parte dessa captação certamente serviu para encher os déficits financeiros do próprio governo e viabilizar pagamentos de juros com mais endividamentos. Isso aconteceu com a Eletrobrás, com a Vale e com outras várias empresas estatais. Depois disso, nós temos a Vale como uma tomadora de recursos externos. Agora, eu acho que o que interessa mais no momento, em nossa campanha, é a comparação dos valores que o Estado brasileiro recebeu pela privatização com os valores que a Vale recebeu do governo brasileiro. No caso, o governo Lula tem pagado aos credores das dívidas interna e externa pública. Veja especificamente esses números para entender a gravidade dessa situação: a Vale foi privatizada em 1997 por um valor de R$ 3,337 bilhões. Esse era o valor de mercado das ações. Não se considerou todo o patrimônio, pois tudo o que ela tinha sob controle (terras, minas, águas, florestas, ou seja, tudo o que é riqueza real e recurso comum público da nação) entrou no bolso dos atuais controladores.
Então, o valor de R$ 3,337 bilhões pode ser comparado com quanto o Brasil pagou nove anos depois, em 2006, pela dívida pública e amortizações. No ano passado, o governo pagou um total de R$ 295 bilhões, o que corresponde a R$ 22,8 bilhões por mês. Isso quer dizer que a cada mês do ano passado os banqueiros receberam um valor correspondente ao de sete Vales do Rio Doce. Isso é um contraste tão espantoso e, só então, pudemos nos dar conta da gravidade, do crime que foi privatizar essa empresa.
Além disso, temos que acrescentar que o fato de uma das empresas avaliadoras da Vale do Rio Doce, do valor nominal financeiro que seria usado para privatização, foi uma que participa hoje do controle dela. É uma das subsidiárias do Banco Bradesco e que, já na época, servia de biombo para a Mitsui, que é uma empresa transnacional de base japonesa. Assim, os jornais anunciam que a Vale teve um lucro total de cerca de U$ 15 bilhões no ano. Todos nós precisamos ler nas entrelinhas que mais da metade desse valor vai para o exterior na forma de divisas para pagar dividendos aos controladores atuais dela. Então, tudo isso significa um agravamento das contas externas do Brasil e tem a ver com o fato de que a Vale é um pivô na problemática das dívidas brasileiras e da relação financeira do Brasil com a economia internacional.
IHU On-Line – E como é o caso que mostra a Vale do Rio Doce dez anos antes de ser privatizada?
Marcos Arruda – Em 1987, foi publicado no jornal Tribuna da Imprensa uma matéria contando que o governo japonês mandou seu embaixador e o membro da Mitsui no Conselho de Administração da Vale visitarem o presidente Sarney, para oferecerem o seguinte negócio: o Japão gostaria de receber a concessão para explorar durante 30 anos, a província mineral de Carajás, ao invés de pagar em dinheiro a dívida externa brasileira. A dívida, na época, estava em torno de U$ 106 bilhões. Nesse tempo, o Japão já tinha representantes de empresas privadas, como a Mitsui, no Conselho de Administração da Vale do Rio Doce. A província mineral de Carajás, vale lembrar, é só uma pequena fração do total da Vale. Sarney, na época do convite, ficou eletrizado num primeiro momento e, depois de refletir, viu que haveria um risco político de enorme peso, principalmente porque isso se deu um ano e meio depois que o governo militar tinha sido substituído por um governo civil. Ele avaliou que não haveria condições políticas para fazer um negócio como esse e cancelou a história.
IHU On-Line - Como o pagamento da dívida se reflete na vida do cidadão comum?
Marcos Arruda – A segunda pergunta das quatro do plebiscito, que foram acordadas na plenária da assembléia popular no mês de junho, tem a ver com esse assunto. Eu vou relatar e você vai entender o impacto que tem a dívida: “O governo deve continuar priorizando o pagamento dos juros da dívida externa e interna, ao invés de investir na melhoria das condições de vida e trabalho do povo brasileiro?”. Assim, o governo dá prioridade a esse pagamento (o governo Lula se recusou a fazer uma auditoria das dívidas herdadas do FHC e decidiu, ainda, dar uma continuidade pior a este assunto), aumenta o percentual do superávit primário e, ainda, reserva uma parte do orçamento para o pagamento dos juros. Ou seja, o resto fica em segundo plano. Nós estamos questionando essa política de prioridades, dizendo que é por causa dela que não há dinheiro suficiente nem para investimento em infra-estrutura nem para a economia interna do país, muito menos para os investimentos sociais em saúde, educação, trabalho, saneamento, alimento, cuidado materno-infantil, reforma agrária, segurança pública, setor aéreo, setor de defesa etc.
Tudo isso está secundarizado para que os primeiros ganhadores da criação de riqueza material pelo povo brasileiro sejam os bancos privados credores das dívidas públicas interna e externa do Brasil. Isso se reflete no dia-a-dia das famílias, que pagam um preço alto pela precarização, por exemplo, dos serviços de saúde e educação. Nós temos um Estado incapaz de gerir o setor aéreo, por exemplo, do País. E quando se diz que o Estado é incapaz de gerir isso e que é preciso privatizar, como disse Delfim Neto, um porta-voz do projeto neoliberal no Brasil, em um artigo recente, devemos lembrar que no país mais capitalista do mundo, os Estados Unidos, a gestão do tráfego aéreo é feito pelos governos estaduais e nacional, ou seja, não existe um aeroporto privado norte-americano.
IHU On-Line - Por que o Estado lá é capaz e o daqui não é?
Marcos Arruda – Na verdade, o que existe, há décadas, é uma privatização do Estado brasileiro. Durante o governo militar, houve certos acenos de um projeto de Estado soberano, mas, desde que ele se tornou civil, foi ficando cada vez mais privatizado. O governo brasileiro atual segue as ondas, as pressões, principalmente, do capital privado e, sobretudo, do capital transnacional. Assim, vimos Lula também ceder a praticamente todas as pressões em todos os campos.
Outro campo que tem a ver com a vida do povo é a previdência, que o governo diz que é deficitária e inviável. O triste, entretanto, é saber que o presidente Lula foi um dos autores da Constituição de 1988, em que está prevista uma área de seguridade social, da qual a previdência é uma das três partes, ao lado da saúde e da assistencial social. Na Constituição, estão previstas fontes de financiamento da seguridade social, mas, ao longo dos anos, ela tem sido superavitária, numa quantia que vai de R$ 15 a 30 bilhões por ano.
Como é que vai se tirar a previdência desse contexto constitucional e tomar ela isolada e dizer que ela é deficitária? Isso é uma falsidade, uma violência à constituição que acaba justificando uma reforma que vem para acabar com as conquistas que o mundo do trabalho conseguiu ao longo de décadas de luta social. Como você vê, há uma malha de inter-relações que acaba tendo como principal pagador de promessa o povo brasileiro. Há alguns dias, saiu, no Le Figaro (1), uma grande reportagem contando que nunca os ricos no Brasil tiveram tantos ganhos, privilégios, beneficios quanto durante o governo Lula. Isso é muito triste de ver, ainda mais que o governo Lula vem com a estampa de ser popular. Como é que um governo popular conseguiu tanto benefício justamente para as elites endinheiradas do nosso País e do exterior?
IHU On-Line – Como a reestatização da Vale do Rio Doce pode contribuir para o desenvolvimento brasileiro de forma solidária e sustentável?
Marcos Arruda – Eu quero observar que a Vale do Rio Doce anterior à privatização não era tão boa assim para o meio ambiente nem para a sociedade, porque ela já era, em parte, uma empresa privada: o seu modo de operar era o de uma empresa comercial, pois estava atrás de lucro. A grande diferença é que esses lucros iam, predominantemente, para o Estado brasileiro, ou então viabilizavam investimentos na economia nacional. Além disso, a outra vantagem é que a empresa era, predominantemente, administrada pelo Estado que definia a estratégia da empresa em função de um projeto de desenvolvimento do país. Ao longo dos anos Collor, FHC e, agora, Lula, o Brasil deixou de ter um projeto próprio de desenvolvimento. Então, uma empresa como a Vale do Rio Doce, ou como a Petrobras, ou um banco como o BNDES, passaram a flutuar num espaço, a ter como objetivo operacional e econômico a realização de lucros para si próprios. No caso do BNDES, o banco está orientando investimentos e empréstimos em função do que se chama de desenvolvimento falso, que é o crescimento econômico sobretudo do setor privado.
Então, empréstimos do BNDES têm ido para o setor privado, inclusive para empresas transnacionais, o que, em nossa opinião, é uma grande distorção. É por isso que, dentro da Rede Brasil Sobre Instituições Financeiras Multilaterais, nós acabamos de produzir uma plataforma BNDES, ou seja, um documento com propostas à direção do banco e com uma reavaliação do seu próprio sentido e razão de ser, colocando como prioridade um projeto próprio de desenvolvimento do Brasil e redefinindo as prioridades dos empréstimos e créditos do banco para reforçar esse desenvolvimento. Então, estão colocadas aí uma série de sugestões de como o BNDES pode se tornar um banco transparente, permeável a sugestões, que presta contas à sociedade, a fim de que cumpra seu papel social, econômico e político em torno da soberania do nosso País.
O projeto Vale do Rio Doce
Com a Vale do Rio Doce, acontece mais ou menos a mesma coisa, pois se trata de uma empresa que precisa de uma profunda transformação. Precisa ser uma empresa que tenha como objetivo principal beneficiar as populações dos locais onde ela vai operar, em termos de emprego, de royalties, cuidado com o meio social e ambiental. Não é o caso agora, pois, se você observar o que a Vale faz no Pará, perceberá que o caso é lamentável, pois está se produzindo minério maciçamente para exportar e uma pequena parte vai ficar como royalties, ou seja, são apenas os “buracos” que vão ficar para povo desse estado.
Além disso, o trabalho é escravo e as fontes de energia incluem a construção de empresas termoelétricas usando carvão vegetal. Isto é, destruindo florestas num momento em que estados estão preocupados com os efeitos da emissão de gases estufa que aceleram o aquecimento global. Há uma série de aspectos a serem revisados. Nós acreditamos que a empresa nas mãos do governo e do povo será mais viável para o desenvolvimento social e humano do nosso País.
Notas:
(1) Le Figaro é o jornal de maior difusão em França e foi fundado em 1826. É, tradicionalmente, o jornal da direita francesa.
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Plebiscito sobre a anulação do leilão de privatização da Vale do Rio Doce. Entrevista especial com Marcos Arruda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU