Trabalho arqueológico do professor e pesquisador contabiliza uma trajetória de mais de três décadas reunindo artefatos e evidências científicas para contar a história dos povos amazônicos
A anedota popular ensina que a única coisa que muda o tempo todo é o passado. E como a história está sempre por ser contada, nada melhor que olhar as evidências pretéritas para compreendermos o nosso presente. Isso passa por recolocar os conceitos em seus devidos lugares. Por exemplo, a antinomia selvagem e civilizado, para ficar em expressões descritivas coloniais sobre os povos nativos do Brasil, já vem de longe sendo reconfigurada. Quando se reúne a etnologia castreana, de que sociedades sem Estado podem ser altamente sofisticadas, com estudos e artefatos arqueológicos de grande envergadura na Amazônia brasileira, percebemos que nossa história tem par, por exemplo, com a Antiguidade ocidental.
“Então, a maneira que temos de entender a história dessas populações é a partir da materialidade, dos objetos, das paisagens que foram transformadas e das amostras de solo. Isto é, a partir das matérias, que são tanto artefatos quanto outras coisas que não têm dimensão material, como amostras de solo, restos de ossos de animais e de humanos que conseguimos construir essas histórias”, explica Eduardo Góes Neves, em entrevista por videochamada ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“As evidências nos dizem que o Estado não aconteceu não por causa de alguma deficiência ou elemento que conduziria a esse estágio ‘superior’, mas de fato como uma ação política positiva, que tem a ver com a evitação da centralização política como alternativa, como maneira de se viver. Temos evidências que nos permitem tratar o Estado como uma anomalia, e não a ausência do Estado como anomalia. Aparentemente não tem Estado porque eles não quiseram”, pontua.
Neste contexto de reflexão há outros dois aspectos que se complementam para pensarmos as questões aqui postuladas. “Eu vejo uma dificuldade muito grande de uma parte das elites intelectuais brasileiras de se enxergarem como um país misturado e tropical. Uma consequência dessa dificuldade em se aceitar como país tropical é o apagamento dessa história antiga dos povos indígenas do Brasil e de outras histórias que não sejam dos imigrantes europeus, que vieram para cá depois da colonização”, critica. “Pensávamos que o neolítico no Brasil tinha sido incompleto, que nunca tinha acontecido. Na verdade, a grande virada foi perceber que esse neolítico foi diferente, pois ele está baseado em uma perspectiva de estar no mundo que os povos indígenas ou pensadores como Davi Kopenawa ou Ailton Krenak repetem o tempo todo: não se separa natureza de cultura”, acrescenta.
“O drama do mundo em que vivemos hoje é que sabemos o que fazer, o que está acontecendo, a ciência que explica por que chegamos nesse lugar está consolidada e tem uma ciência que diz o que precisamos fazer agora para reverter esse processo, que é plantar árvores. No caso da Amazônia, é zerar o desmatamento e promover a restauração em áreas de cerrado, em áreas degradadas no Sul da Amazônia”, propõe.
Eduardo Góes Neves com fragmentos de cerâmica coletados no sítio arqueológico Sol de Campinas, no Acre | Foto: InfoAmazonia
Eduardo Góes Neves é professor Titular e Diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – USP. Graduado em História pela mesma instituição, é mestre e doutor em Antropologia pela Universidade de Indiana e Livre-Docente pela USP. Bolsista de produtividade 1A do CNPq, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/USP) e coordenador do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos do Museu de Arqueologia e Etnologia. Foi professor visitante nas Universidades Harvard, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio Janeiro, do Museu Nacional de História Natural de Paris e da Pontifícia Universidade Católica do Peru, Lima. É coordenador do grupo de pesquisa "Ecologia Histórica dos Neotrópicos", do CNPq. Ganhador do Prêmio de Pesquisa do Shanghai Archaeological Forum em 2019, é autor de 130 publicações, entre livros, artigos, capítulos de livro e textos de divulgação. Sua mais recente obra é Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia central (Ubu Editora, 2022).
IHU – Eu gostaria que o senhor começasse falando do seu livro Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia central. Do que trata a obra?
Eduardo Góes Neves – Neste livro tento apresentar de maneira inteligível, para o público não especializado, os resultados e a minha interpretação dos resultados de pesquisa que realizei durante cerca de 15 anos no município de Iranduba, próximo a Manaus, entre 1995 e 2010. Realizei o projeto com um colega arqueólogo e professor da Universidade da Flórida, chamado Michael Heckenberger, que trabalha há anos no Brasil, na região do Alto Xingu. Começamos esse projeto junto a James Petersen, que morreu no campo, em 2005, em um assalto. O Michael, depois, acabou saindo. Eu toquei esse projeto até 2010. Ele tem algumas coisas que são bem interessantes.
Houve uma série de fatores que incidiram para que houvesse bons resultados. O primeiro deles é que, naquele momento, na década de 1990, havia algo muito novo na Amazônia, essa ideia de tentar mostrar que a Amazônia tinha densa ocupação, ao contrário do que se apresentavam como hipóteses aceitas à época. Entre elas, a de que a Amazônia nunca foi densamente ocupada, que havia muitas limitações ecológicas para a presença indígena no passado amazônico. Existia uma série de dados que mostrava que isso não era verdade. Se olhássemos direito para a arqueologia amazônica e trabalhássemos com calma em alguns contextos, poderíamos obter informações que falsificariam essas hipóteses. Este projeto surge nesse âmbito, algo que foi interessante para a arqueologia brasileira e amazônica.
Para isso, houve um arranjo prático quando falamos em arqueologia. Porque arqueologia custa caro fazer; houve etapas de campo em que havia mais de 60 pessoas trabalhando no que chamamos de “sítios de escola”. Eram estudantes jovens de arqueologia que vão a campo aprender a fazer escavações. Para realizar a pesquisa, é necessário alimentar e hospedar essas pessoas todas, tudo isso demanda um custo muito alto. Com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, consegui financiamentos que permitiam a realização dessas etapas de campo de longa duração e que geraram vários projetos de mestrado e doutorado, por arqueólogos que hoje são colegas professores de várias universidades do Brasil e que fizeram sua iniciação à arqueologia nesse projeto.
Houve a oportunidade de voltar a esses locais todos os anos e escavar novamente esses espaços. Abríamos novas áreas de escavação, olhávamos para os resultados obtidos, pensávamos e reformulávamos as nossas estratégias a partir desses resultados preliminares. Foi um esforço muito longo e que se beneficiou do que aconteceu no Brasil, no início do novo milênio, há mais de 20 anos, que foi o fortalecimento da pós-graduação. Onde dou aula, criamos um programa de pós-graduação, pois só havia um programa em Pernambuco e nós fomos o segundo. A expansão do ensino superior no Brasil por conta das políticas afirmativas também foi um fator positivo. Tem várias pessoas que hoje dão aula em outras universidades e há novas carreiras de arqueologia. Houve uma convulsão de fatores que favoreceram a pesquisa.
Voltando ao livro, eu tento pegar essa base de dados e de alguma forma resumir. Algo que foi uma inquietação minha é que nós arqueólogos amamos o que fazemos, mas nos comunicamos muito mal. E não fazemos uma boa comunicação para o público não acadêmico ou para quem não está na área. Olhando para os grandes autores do pensamento social brasileiro, eles vêm da sociologia, da antropologia ou da história, nós nunca tivemos um arqueólogo que de fato chegasse a ser um Sérgio Buarque de Holanda, Manoel Bomfim, Gilberto Freyre ou Florestan Fernandes, pois geralmente são pensadores que vêm de outras áreas do conhecimento em humanidades.
Reprodução da capa de Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central (Ubu Editora, 2022).
A arqueologia tem tanto a dizer para um debate interessante no Brasil, mas por um processo de timidez, de uma produção que é muito técnica e pouco “generosa” com os leitores, a arqueologia nunca se apresentou para essa conversa. Não sei se meu livro faz isso, mas meu objetivo é conversar com um público não só de arqueólogos, mas com um público acadêmico de outras áreas do conhecimento e, se for bem-sucedido, até para um público não acadêmico também. Esse livro surge da minha tese de livre-docência – a livre-docência nas universidades paulistas exige a apresentação de uma nova tese para ingressar na carreira de professor associado. Eu defendi essa tese em 2013, mas ela “ficou dormindo” durante quase dez anos. Até que na pandemia a Florência Ferrari, que é editora da Ubu, conversou comigo para retomarmos a publicação da obra. Enviei um manuscrito e ela fez uma leitura impiedosa (risos) e a partir disso chegamos a este livro.
IHU – Como a Amazônia Central é caracterizada e por que o senhor escolheu a região para realizar os seus estudos?
Eduardo Góes Neves – Tivemos a sorte de herdar uma série de hipóteses sobre a arqueologia da Amazônia Central que foi elaborada por pessoas que nunca trabalharam ali, mas que olhavam para a região e diziam se tratar de um lugar interessante para se fazer pesquisa. Certamente a pessoa mais importante que influenciou essa escolha da Amazônia Central foi um arqueólogo gaúcho, que hoje vive recluso no interior do Rio Grande do Sul, o José Brochado. Ele foi professor da UFRGS e da PUCRS. Doutorou-se nos Estados Unidos no fim da década de 1970 e começo da década seguinte. Naquela época o Brasil era muito fechado e a arqueologia mais fechada ainda. Ele estudou com outro arqueólogo que trabalhou na Amazônia peruana, chamado Donald Ward Lathrap. Quando li a tese do Brochado, ela não estava disponível no Brasil ainda – eu fiz meu doutorado nos Estados Unidos também. Eu sentia falta de algo que fizesse um nexo na arqueologia brasileira, que à época era muito descritiva, não havia uma visão sintética.
Meu trabalho é muito tributário do Brochado, que conta uma história dos grupos de línguas falantes da família tupi-guarani – a presença Guarani é muito forte no Rio Grande do Sul. E ele conta uma história da expansão Guarani com origem na Amazônia. Basicamente ele diz que a origem desses povos que falam línguas tupi-guarani está na Amazônia Central, em algum lugar entre a foz do Rio Negro e a foz do Rio Madeira. Nessa mesma região encontramos evidências de cerâmicas muito antigas e de adensamento demográfico muito grande.
O argumento é mais ou menos geográfico. Se olharmos o mapa da América do Sul, as três grandes bacias hidrográficas, as Bacias do Orinoco, Amazônica e do Prata estão interconectadas. Existe uma ligação por rio entre o Alto Orinoco e o Rio Negro. Se subirmos o Rio Paraguai até o Mato Grosso, estamos a 80 quilômetros de distância [entre a cabeceira do Rio Paraguai] do Rio Guaporé, que já tributário da Bacia Amazônica. A ideia do Brochado era que essas três grandes bacias hidrográficas trouxeram caminhos de comunicação entre áreas distantes aqui na América do Sul – terras baixas da América do Sul, tudo o que está à leste dos Andes. E ele diz que o centro disso tudo deve estar na Amazônia Central. Ou seja, ele deu o “mapa da mina”, sinalizando onde as peças poderiam ser encontradas e com qual idade e características. O que fizemos, Michael e eu, ao escrever a primeira versão do projeto, foi testar essa hipótese em campo. O mais relevante é alguém fazer uma formulação tão elegante a ponto de levar um grupo de pessoas depois a pensarem projetos de pesquisa para testar a hipótese.
Conexão das bacias hidrográficas facilitou o deslocamento das antigas civilizações indígenas na região.
À esquerda, mapa hidrológico da América do Sul e suas respectivas bacias hidrográficas (Mapa elaborado por IPH/UFRGS).
À direita, integração das hidrovias por meio das Bacias do Orinoco, Amazônica e do Prata (Mapa elaborado por Furnas Centrais Elétricas/www.tec.abinee.org.br)
A Amazônia Central tem essa particularidade. Ela está localizada no encontro do Rio Amazonas com dois dos seus principais afluentes: o Rio Negro que vem do Norte e Rio Madeira que vem do Sul, promovendo essa conexão do Caribe até o Rio da Prata. Por questões logísticas, trabalhamos muito mais próximos ao Rio Negro, porque Iranduba hoje tem até uma ponte que atravessa o Rio Negro, mas naquela época não.
Eu fiz meu doutorado no Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com a Colômbia, com os povos indígenas de língua tucana, mas era uma logística muito complicada: são 900 quilômetros de Manaus até São José da Cachoeira e de lá mais uns 200 quilômetros até Iauaretê, que era minha base de pesquisa. Assim, demoravam-se semanas só para chegar no campo. A região de Iranduba tinha essa grande vantagem comparada a outros lugares da Amazônia, o que nos permitiu trazer alunos, trabalhar em equipe e compartilhar os objetos de pesquisa.
IHU – É interessante pensar como nós, os civilizados, cerca de 8 mil anos depois, abandonamos essa matriz fluvial que conecta o continente sul-americano de Norte a Sul.
Eduardo Góes Neves – E estamos matando nossos rios. O Rio Amazonas, nos últimos dois anos, secou no Alto Solimões, o Rio Madeira está seco e os rios não estão enchendo mais. Eu falei com um amigo que está no rio Purus, e ele disse que não está enchendo. É uma imagem que jamais achei que fosse ver na vida, rios secos na Amazônia. É uma tragédia.
IHU – Pode nos falar sobre o equinócio, fenômeno que ocorre apenas duas vezes por ano? Até que ponto ele serve de metonímia ou metáfora para pensarmos as consequências sociais e políticas do Antropoceno, apesar do seu trabalho ter como objeto fenômenos do holoceno?
Eduardo Góes Neves – Ao falar em equinócio, estou me referindo a uma citação do Sérgio Buarque que abre meu livro. Um dos meus livros preferidos do Sérgio Buarque de Holanda intitula-se Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil (Editora José Olympio, 1959). Ele é mais conhecido por Raízes do Brasil, mas Visão do Paraíso é um livro mais maduro, em que ele chama os motivos edênicos da colonização – imagens do Eldorado, de Lago Parime.
Quando eu penso em equinócio, estou pensando na nossa condição de país tropical. Eu vejo uma dificuldade muito grande de uma parte das elites intelectuais brasileiras de se enxergarem como um país misturado e tropical. A maior parte do território está entre a Linha do Equador e os Trópicos de Capricórnio e, ao Norte, de Câncer. Uma consequência dessa dificuldade em se aceitar como país tropical é o apagamento dessa história antiga dos povos indígenas do Brasil e de outras histórias que não sejam dos imigrantes europeus, que vieram para cá depois da colonização.
Esse título tem o objetivo de chamar a atenção para estas temporalidades tropicais, quem tem a ver com essa história profunda do Brasil, forjada pelos povos indígenas, uma história que se constrói em um ritmo – tento mostrar isso no livro – mais de oscilação do que de acumulação, de flecha em direção ao futuro. Desejo mostrar que é fundamental para o nosso entendimento como país incorporar essa perspectiva de uma história que é muito mais profunda e muito mais antiga.
Portanto, quando falo em equinócio, é muito mais a linha equinocial, é uma história contada a partir de uma perspectiva que vem da Linha do Equador. E não uma perspectiva “sudestina” ou “sulista”, que é uma perspectiva que também reflete uma visão que é neocolonialista, uma ordem que se impõe inicialmente a partir do Sul e de São Paulo e que ignora essas temporalidades mais antigas, essas paisagens formadas pelos povos ancestrais e zera totalmente essas memórias que estão escritas na paisagem.
Esse equinócio é muito mais em relação à Linha do Equador. Essa citação do Sérgio Buarque é para chamar a atenção para essas temporalidades muito mais profundas, que são fundamentais para que pensemos, de fato, em uma história do Brasil. A história do Brasil não começa em 1500, ela tem uma antiguidade que é muito maior. O livro faz um recorte para uma área pequena da Amazônia, mas seria importante ter um recorte disso também em outros lugares do território brasileiro.
IHU – O subtítulo de seu livro traz um dado instigante: oito mil anos de história na Amazônia central. No interior do texto, seus estudos apontam para a possibilidade de ter havido agrupamentos grandes e de grande duração. Que evidências apontam para esta afirmação?
Eduardo Góes Neves – No caso de referência à história é bem explícita. O uso do termo pré-história sempre pareceu muito anacrônico para a América do Sul. Tem arqueólogos que se referem à civilização Inca, que era um império, tinha uma burocracia, como uma civilização pré-histórica. Trata-se de um conceito eurocêntrico e que se refere à presença europeia como o fator que inaugura a história. O Brasil vivia na pré-história até 21-04-1500 e no dia 22 Pedro Alvarez Cabral aparece aqui e a história está inaugurada?
Eu apresento algumas ações para dizer que precisamos falar de história antiga da mesma forma como falamos da história antiga do Mediterrâneo, temos que usar o termo para o Brasil. Quando falo “História” no título, tem uma declaração; estou querendo representar. Não é uma menção puramente ocasional, mas se refere à ideia de pensar o Brasil como muito mais antigo e muito mais profundo.
Em relação às evidências, as sociedades indígenas que viviam nas Américas, com exceção da Mesoamérica e do Povo Maia, não tinham escrita. Então, a maneira que temos de entender a história dessas populações é a partir da materialidade, dos objetos, das paisagens que foram transformadas e das amostras de solo. Isto é, a partir das matérias, que são tanto artefatos quanto outras coisas que não têm dimensão material, como amostras de solo, restos de ossos de animais e de humanos que conseguimos construir essas histórias.
Ainda há a questão do privilégio que tive de trabalhar sempre no mesmo lugar. Esse sítio maior em que trabalhamos tem cerca de 90 hectares de área, com aproximadamente três quilômetros de extensão por 300 metros de comprimento. É impossível escavar essa área inteira, de forma que abrimos regiões por amostragem. A partir dessas amostragens construímos a ideia de ocupação desses lugares.
No mapa acima, as áreas de ocupação de antigas civilizações.
Mapa baseado em mapas feitos por André Braga Junqueira para Clement, C. et al. The domestication of Amazonia before European conquest (2015). Fonte: Revista Fapesp
Uma característica interessante da região é que existe uma arqueologia muito complicada, no sentido de que é bastante comum haver sobreposições de ocupações diferentes nos mesmos sítios. Como é natural, cada ocupação vai interferir nos registros da ocupação anterior, pois vão cavar, mexer na terra, se encontrar um acúmulo de cerâmica mais antigo vai repetir o processo todo. Isso é o que torna a arqueologia desse sítio mais difícil, mas mais interessante também. É uma arqueologia que é muito desafiadora de ser feita.
Esse luxo de poder voltar ao mesmo local nos permitiu ir aprendendo mais sobre esses próprios sítios, sobre o significado das áreas de concentração de materiais cerâmicos, onde havia a presença de cemitérios, de inferir os locais onde estariam as antigas malocas, que eram de madeira e palha e que apodreceram. A partir desse tipo de informação conseguimos ter condições de falar sobre adensamento demográfico, aumento e diminuição das áreas domésticas.
Percebemos que há pelo menos quatro cerâmicas arqueológicas diferentes, que elas mudavam de acordo com a forma e os tamanhos dos sítios. Conseguimos atribuir o que chamamos de variabilidade da cultura material na cerâmica, percebendo outras dimensões que têm a ver com o processo de formação e ocupação desses sítios arqueológicos. A arqueologia feita no Brasil era ínfima – isso não é uma crítica, fazia-se o que era possível. Com esse projeto foi possível adicionar outras dimensões de variabilidade e mostrar como essas diferenças na produção dos objetos estavam correlacionadas com outras formas de variabilidade que tem a ver com estruturas defensivas, grandes aldeias, construção de aterros e cemitérios embaixo das aldeias. Tudo isso porque tivemos a possibilidade de retornar 15 anos no mesmo lugar, voltando a campo quase anualmente. Isso é pouco comum na arqueologia brasileira e nos permitiu ter uma base de dados para fazer esta síntese.
IHU – Olhando retrospectivamente, cerca de 10 mil anos atrás, podemos colocar as populações nativas da Amazônia central em paralelo com a Antiguidade ocidental. O que se sabe da organização política desses agrupamentos?
Eduardo Góes Neves – Após o fim do projeto em 2010, comecei a trabalhar no Sudoeste da Amazônia (Rondônia, Acre e Amazônia boliviana). E uma das razões pelas quais mudei de área é que havia um buraco na Amazônia Central. Havia sítios com cerca de 8 mil anos e depois há um buraco na cronologia – ainda não é possível explicar – e saltamos para 2.500 anos, quando começamos a ter evidências com sítios grandes que vão se multiplicando até o ano mil, quando há um processo de mudança muito drástica, associada a conflitos provavelmente, onde os sítios diminuem de tamanho naquela região. Continuam aparecendo dados, mas acredito se tratar de um outro povo, porque é outra cerâmica, outro padrão de assentamento.
Baseados nas pesquisas do Sudoeste da Amazônia, entendemos que ela foi um grande centro de produção de agrobiodiversidade; falo disso para fazer uma perspectiva comparativa. Se voltássemos no tempo, uns 8 mil anos atrás, veríamos, em vários lugares do mundo, um processo que é famoso no Oriente Médio, na China e no México, chamado neolitização. Trata-se do início do processo de produção de alimentos, domesticação de plantas e animais. Percebemos que isso também acontecia na Amazônia. Várias plantas importantes, que são consumidas no mundo inteiro, foram cultivadas primeiro na Amazônia. Por exemplo, mandioca, cacau, tabaco, amendoim, pupunha, que é uma planta consumida fora da Amazônia, nas Américas, além de abacaxi, mamão, açaí e castanha. Há uma diversidade de plantas importantes que primeiro foram consumidas na Amazônia.
Há uma crítica àquela visão que vê as comunidades locais como regiões atrasadas, periféricas e marginais. Na realidade, percebemos que a Amazônia foi um centro importante de produção de agrobiodiversidade como qualquer outro lugar do planeta em que isso estava acontecendo.
Além disso, aprendemos posteriormente que as cerâmicas mais antigas das Américas foram produzidas na Amazônia – a cerâmica na arqueologia é um indicador desse processo de mudança tecnológica. O neolítico na Amazônia foi um pouco diferente, mas se olharmos para as cerâmicas mais antigas da Amazônia, elas não estão nos Andes, no México ou na Guatemala. Elas não estão nesses centros nucleares de civilização, mas na Amazônia. Há indícios de uma série de avanços tecnológicos interessantes.
O que não temos na Amazônia, que gerou toda essa perspectiva preconceituosa sobre o passado do Brasil, é o Estado. Não há evidências da presença do Estado organizado. Desde o início da colonização europeia, os portugueses e espanhóis construíram esse contraste, e os próprios Incas tinham essa visão: a civilização está nos Andes, e esses povos das terras baixas eram bárbaros. Havia essa visão que vinha da Europa, mas também do império centralizado como era o Inca. Essa ausência de Estado foi interpretada durante muito tempo como uma espécie de deficiência civilizatória dos povos amazônicos.
Voltando à Amazônia Central, o que tento mostrar é que há um registro destes 2 mil anos anteriores da conquista europeia – apesar de o livro falar dos últimos 8 mil anos, a história dos últimos 2 mil anos é mais conhecida. Percebemos que houve a formação de grandes assentamentos, modificações da paisagem, formação de solo, mas esses locais eram abandonados periodicamente. Tradicionalmente, a arqueologia olharia e diria que isso acontecia por limitações ambientais, isto é, não havia condições ambientais para manter tanta gente durante muito tempo no mesmo lugar. Porém, encontramos evidências de que todos eram bem alimentados. As escavações mostraram ossos grandes, não havia sinais de patologias muito claras, além de evidências de plantas e animais, muitos peixes presentes nos sítios arqueológicos. Por isso o argumento dessa deficiência não explica o processo centrífugo de abandono desses assentamentos.
A partir de Pierre Clastres, um grande antropólogo francês, eu penso a sociedade contra o Estado: vamos positivar a ausência do Estado. As evidências nos dizem que o Estado não aconteceu não por causa de alguma deficiência ou elemento que conduziria a esse estágio “superior”, mas de fato como uma ação política positiva, que tem a ver com a evitação da centralização política como alternativa, como maneira de se viver. Temos evidências que nos permitem tratar o Estado como uma anomalia, e não a ausência do Estado como anomalia. Aparentemente não tem Estado porque eles não quiseram.
No mapa acima, as áreas onde estão concentrados os diversos complexos cerâmicos da Pan-Amazônia. Imagem por Lima, Barreto e Jaimes-Betancourt. | pulitzercenter.org
IHU – Em que sentido a Floresta Amazônica, a região mais biodiversa do planeta, pode não ter sido resultado de aleatoriedades “naturais”, mas, sim, resultado da agência humana?
Eduardo Góes Neves – Essa questão traz a arqueologia para fora da sua dimensão puramente acadêmica e a coloca para fazer uma conversa sobre o futuro. Quando falamos de arqueologia, pensamos no passado, mas quando trazemos essa dimensão, fundamental para a arqueologia amazônica, acrescentamos as perspectivas do presente e do futuro do mundo que vamos viver. Algumas dessas ideias já estavam latentes no começo da pesquisa, mas ficaram muito mais consolidadas nos últimos dez anos.
Sabemos que a Amazônia foi um berço importante de geração de agrobiodiversidade. Quando começamos a olhar para a questão das plantas, depois da Amazônia central, percebemos que havia muitas plantas utilizadas em outros países. Por exemplo, a castanha-do-pará é consumida há pelo menos 11 mil anos. No entanto, a castanha é uma planta que nunca foi domesticada. Domesticação é um conceito-chave.
Talvez o maior arqueólogo de todos os tempos tenha sido o marxista australiano Gordon Childe, que escreveu vários livros, entre eles, Man Makes Himself (O homem faz a si mesmo, em tradução livre) onde apresenta alguns conceitos importantes, entre eles o de revolução neolítica. Trata-se da grande mudança havida na história humana: de caçador e coletor para o modo de vida de agricultor.
Um elemento-chave da ideia de revolução neolítica é o conceito de domesticação. A domesticação é quando temos uma planta ou animal selecionados ao longo de muitas décadas, por muitos séculos, uma seleção que acontece por manejo humano, a ponto de uma nova espécie não conseguir mais se reproduzir sem interferência humana. A ideia de domesticação é uma interferência radical na natureza, uma modificação dela; é a criação de novas espécies para satisfazer as demandas da nossa espécie. Nós somos superantropocêntricos. Se sumirmos do planeta, as galinhas vão embora junto, assim como o milho, que precisa da interferência humana para se reproduzir. O conceito de domesticação funciona em alguns lugares.
Mas se nos determos nas plantas amazônicas, perceberemos que várias delas nunca foram domesticadas e outras tantas estavam entre o caminho de totalmente selvagem ou domesticada. Existe uma oposição: o domesticado seria a civilização e o não domesticado o selvagem, a natureza. Percebemos que várias plantas estavam “no meio do caminho”.
Pensávamos que o neolítico no Brasil tinha sido incompleto, que nunca tinha acontecido. Na verdade, a grande virada foi perceber que esse neolítico foi diferente, pois ele está baseado em uma perspectiva de estar no mundo que os povos indígenas ou pensadores como Davi Kopenawa ou Ailton Krenak repetem o tempo todo: não se separa natureza de cultura. Essa separação entre domesticado e selvagem é uma imposição feita sobre o mundo a partir de uma visão que é particular, que é historicamente situada, que tem a ver com o pensamento europeu do iluminismo e do positivismo depois do século XIX. Para entender essa questão da Amazônia, é muito mais interessante pensar nessa relação de abertura com a natureza.
O que é o agronegócio contemporâneo hoje? É uma imposição radical de uma ordem cultural, tecnológica, um sistema supertecnológico baseado numa ontologia que vê a natureza como algo que está a serviço da nossa espécie, uma visão antropocêntrica da vida. Ela impõe uma mudança radical, apaga, oblitera, zera totalmente essas paisagens que têm uma história anterior. Impõe uma lógica e produz um tipo de paisagem intimamente associada, primeiramente, a essa ontologia que separa natureza de cultura, mas também a uma ordem que chamo de capitalista internacional, financerizada, que tem a ver com o uso intensivo de derivados de petróleo e da água, como se fosse um recurso infinito.
E as ontologias que chamo de Amazônicas são aquelas que estão abertas por natureza e que não separam o que é domesticado do que é selvagem, e que produziram essa floresta que conhecemos hoje.
As evidências que temos sobre isso, além dessas discussões feitas até agora, que são mais teóricas, pelo menos 3% dos solos amazônicos são “terras pretas”, que são solos formados pela atividade indígena no passado – o número parece pequeno, mas equivale à área do Rio de Janeiro, por exemplo. Nós supomos que existam pelo menos 10 mil estruturas arqueológicas na Amazônica, como aterros, valas, canais, baseados em projeções feitas com dados que estão disponíveis agora.
Sabemos que se olharmos para as espécies de árvores mais comuns na Amazônia – a mais comum é o açaí –, várias delas são palmeiras ou outras árvores que têm uma importância simbólica e tecnológica grande para as populações indígenas. Portanto, podemos pensar que essa composição botânica da floresta contemporânea, essa incidência muito maior de espécies que são simbólica e economicamente importantes para os povos tradicionais, reflete a história de manejo que tem cerca de 13 mil anos.
A grande questão que queremos responder agora é o quanto da Amazônia foi de fato modificado pela atividade indígena. A estimativa que temos foi proposta em 1991: 11% das áreas de terra firme resultam do manejo indígena. Essa estimativa é bem interessante, mas é conservadora. Baseado no que aprendemos nesses 30 anos, podemos dizer que esse número é maior. O quão maior eu não sei dizer, mas posso estimar que cerca de 20% da Amazônia resulta da influência indígena na sua formação.
Saiu um estudo muito bom no fim de 2024, que mostra que a chuva que é formada nas terras indígenas amazônicas irriga uma parte do agronegócio brasileiro no centro do Brasil. É uma conexão muito clara. A Amazônia existiria se os indígenas não estivessem ali, mas seria outra floresta. Tem a atividade indígena que cria a floresta que conhecemos hoje e ela se apresenta em um contraste absoluto entre a forma de ocupar hoje o território, que gera muito dinheiro a curto prazo, mas a vida útil do agronegócio brasileiro é de difícil previsão futura. O Matopiba é uma fronteira agrícola que não vai ter água para se sustentar nesse ritmo de exploração.
IHU – Como o manejo humano na constituição da floresta amazônica reforça a necessidade de as políticas de preservação ambiental terem como prioridade a demarcação das terras indígenas e a garantia do direito à manutenção de seus modos tradicionais de vida?
Eduardo Góes Neves – É fundamental. Se olharmos o mapa da Amazônia, na região do Arco do Desmatamento, o que sobrou de floresta é basicamente terra indígena, o resto está cercado pelo agronegócio. Além disso, tem muita terra pública não destinada na Amazônia, as chamadas terras devolutas. Acredito que todas essas terras públicas têm que virar terras protegidas e não destinadas. Essa é uma briga política muito forte, mas muito importante, isso sem falar em restauração florestal.
O drama do mundo em que vivemos hoje é que sabemos o que fazer, o que está acontecendo, a ciência que explica por que chegamos nesse lugar está consolidada e tem uma ciência que diz o que precisamos fazer agora para reverter esse processo, que é plantar árvores. No caso da Amazônia, é zerar o desmatamento e promover a restauração em áreas de Cerrado, em áreas degradadas no Sul da Amazônia.
O que funciona como uma verdadeira barreira que protege o avanço da destruição são as terras indígenas. Se olharmos para o mapa, o que sobrou são terras indígenas ou áreas protegidas. Onde não há terra protegida, não há mais floresta. É claro que tem uma pressão muito grande sobre Rondônia, sobre as terras protegidas também. Nós não viramos a página e estamos na mesma situação desde o século XVI em relação à ocupação de terras.
IHU – Permita-me parafrasear uma pergunta que o senhor coloca no livro: Qual é o objeto de estudo da arqueologia e por que é tão importante defini-lo como um fenômeno do presente?
Eduardo Góes Neves – Eu sou suspeito para falar porque estudo isso há 40 anos e até hoje sou encantado com a arqueologia. Tem um capítulo no livro, chamado “A serviço da história”, que fala sobre o tema. A arqueologia busca produzir conteúdo sobre o passado a partir da materialidade. Essa materialidade são os objetos, mas também as amostras de solo, os ossos de animais e humanos, restos de plantas e a própria paisagem que está sobre os sítios arqueológicos. A arqueologia é uma ciência social, mas tem um pé muito forte nas ciências da natureza também, porque trabalha com restos de plantas, animais etc. A geografia é parecida. Ter um pé em cada uma dessas frentes dos campos de conhecimento durante muito tempo gerou uma espécie de ansiedade epistemológica, porque ninguém sabia se era cientista social, se era cientista da natureza e a arqueologia ficava meio de lado.
Hoje, vivemos em uma crise socioambiental tão profunda e tão grave que, de certa maneira, coloca a arqueologia num lugar interessante para falar. Isso porque, ao trabalhar com essa matriz que inclui elementos naturais e culturais, no fim sempre lidamos com a questão da relação da nossa espécie com a natureza. Somos privilegiados para entender como essa relação se constituiu ao longo dos milênios. Isso é fantástico.
A arqueologia nos permite falar do presente, ainda que seja um campo de produção de conhecimento sobre o passado. Se olharmos para a quantidade de lixo que produzimos no presente e a quantidade de produtos químicos que são jogados nos cursos d’água por causa do agronegócio nas grandes cidades, poderemos ter uma perspectiva arqueológica.
Sabemos que a diferença de expectativa de vida em São Paulo, por exemplo, conforme o bairro que a pessoa nasce, tem uma diferença de 20 anos. Podemos olhar para a produção material desses bairros que são tão diferentes e fazer uma crítica interessante sobre o presente. É possível olhar para a frequência e para os diferentes tipos de materiais que se preservam ou não nesses contextos diferentes e oferecer uma crítica. A arqueologia está num momento em que conseguiu derrubar até as amarras que o passado impunha a ela. Essa maneira de olhar o mundo a partir do estudo da materialidade permite uma conversa que chega até o presente ou ao passado muito recente, como a Guerrilha do Araguaia, os desaparecidos políticos da delegacia do Departamento de Ordem Política e Social - DOPs que foi escavada no ano passado. É possível trabalhar com diferentes tipos de informação e saber sobre o passado recente.
Por trabalhar com materialidade e não com produção escrita, a arqueologia consegue revelar histórias que foram escondidas ou apagadas, histórias de populações que não quiseram que suas histórias fossem conhecidas naquela época, como no caso da arqueologia dos povos quilombolas.
IHU – Está previsto para ser lançado este ano seu novo livro sobre Amazônia pela editora Ubu. Pode adiantar do que se trata a obra?
Eduardo Góes Neves – O livro fala da história que contei aqui, da história de produção das paisagens amazônicas pelos povos indígenas. É a história da produção da agrobiodiversidade e da transformação da natureza. Eu já abordo um pouco essa questão no primeiro livro, Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central, mas agora quero dar um tratamento mais aprofundado, trazendo mais informações sobre o Sudoeste da Amazônia. A ideia é que seja um livro curto, legível, menos jargão e mais inteligível, quase um livro de bolso mesmo, para que todos possam ler, não só a academia, porque essa mensagem é importante.
Depois do Bolsonaro e da pandemia, eu fiquei muito preocupado. Não tenho muita ilusão de que as pessoas vão mudar de opinião, elas não acreditam na ciência, acham que a Terra é plana, não acreditam nas vacinas. Mas, como cientista e professor de uma universidade pública, acho que é importante fazer um trabalho de comunicação.
Eu quero fazer um livro mais leve, contando essa história de produção de paisagem e de modificação de como os povos indígenas criaram as paisagens no Brasil. Vou falar da Amazônia, mas também do Sul do Brasil, que tem algumas evidências, como a mata de araucária. Quero contar essa história para um público não especializado.
Tenho um título provisório: “Uma fruta ao alcance da mão”. Essa expressão nos Estados Unidos é meio pejorativa, as pessoas falam que é “coisa de preguiçoso porque a fruta estava ao alcance da mão”. Eu desejo contar que existe um investimento muito grande de conhecimento, sofisticado, para produzir essa fruta ao alcance da mão, que é maravilhosa e que estamos destruindo, mas que é uma parte importante do Brasil.