“As favelas são territórios que expressam uma luta legítima por moradia e pelo direito à cidade”. Entrevista especial com Flávia Feitosa

Para arquiteta e doutora em Geografia, as informações sobre o crescimento das favelas são fundamentais para reivindicar ações efetivas na promoção de melhorias

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: André Cardoso e Patricia Fachin | 29 Novembro 2024

Os dados do Censo Demográfico de 2022 atestam: houve um aumento expressivo no número de moradores em favelas nos últimos 12 anos. Mais precisamente, o aumento foi de 40% em comparação com os dados obtidos em 2010. Em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Flávia Feitosa, arquiteta e doutora em geografia, interpreta este crescimento como evidência de um mercado formal de moradia inviável, que leva “muitas pessoas a recorrerem a alternativas informais para suprir suas necessidades habitacionais”.

Estas informações sobre as favelas, diz Flávia, são fundamentais “para que o Brasil conheça esses territórios, para que as populações das favelas possam fundamentar suas reivindicações e para que ações efetivas na promoção de melhorias das condições de vida das pessoas possam ser pensadas, planejadas, pelos moradores e pelo poder público”.

Entretanto, é preciso ficar atento e analisar com cuidado os números sobre o crescimento das favelas. Flávia alerta que o IBGE inovou e aprimorou sua metodologia no período entre 2010 e 2022, ou seja, existem favelas mapeadas agora que não estavam identificadas em 2010. “Esse aprimoramento metodológico, tão importante para ampliar a visibilidade das favelas, dificulta a comparação direta entre os dois censos, pois é desafiador distinguir entre o crescimento real desses territórios e o aumento que é meramente resultante do aprimoramento da metodologia de mapeamento”, afirma.

Flávia Feitosa | Foto: Arquivo Pessoal

Flávia Feitosa é formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002) e mestra em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (2005). Conduziu sua pesquisa de doutorado no Center for Development Research e obteve o título de doutora em Geografia pela Rheinische Rheinisch Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, na Alemanha, em 2010. É professora do Bacharelado em Planejamento Territorial e do PPG em Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC). Também é pesquisadora do Centro de Estudos da Favela (CEFAVELA)

Confira a entrevista.

IHU – Os dados atuais mostram que o número de favelas dobrou em comparação aos dados de 2010 e o número de moradores cresceu mais de 40% em 12 anos. A que atribui essa ampliação e o que isso indica em relação à organização territorial das cidades brasileiras?

Flávia Feitosa – Os dados do Censo Demográfico 2022, recentemente divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, revelam que 8,1% da população do país vive em 12.348 favelas, totalizando mais de 16 milhões de pessoas. Dessas, 82% dessas pessoas estão nas grandes concentrações urbanas. Quando analisamos apenas essas áreas, o cenário é ainda mais impressionante: mais de 16% da população vive em favelas, o dobro do percentual nacional.

É importante destacar que essa realidade não está distribuída uniformemente pelo país. Em concentrações urbanas como Belém e Manaus, por exemplo, mais da metade da população mora em favelas: 57,1% e 55,8%, respectivamente. Esses números evidenciam a desigualdade na organização territorial brasileira e o impacto de dinâmicas socioeconômicas locais.

O aumento expressivo no número de favelas e de seus moradores nos últimos 12 anos evidencia que, para uma parcela expressiva da população brasileira, o acesso à moradia no mercado formal se tornou financeiramente inviável, levando muitas pessoas a recorrerem a alternativas informais para suprir suas necessidades habitacionais.

Esse fenômeno resulta de uma combinação de fatores sociais, econômicos e políticos, que se intensificaram durante a pandemia. Entre esses fatores, uma crise econômica que atingiu principalmente os mais pobres, cuja renda sofreu uma queda média de 2% ao ano entre 2016 e 2021. Além disso, o Brasil atravessou um período de instabilidade política que foi marcado pela desarticulação de programas habitacionais e pela drástica redução de investimentos e financiamentos para habitação de interesse social. Ou seja, a escassez de suporte estatal em um contexto de crescente pressão econômica sobre as famílias de baixa renda agravou a exclusão habitacional, aumentando a expansão e o adensamento de favelas existentes e estimulando o surgimento de novas ocupações.

Novas metodologias do IBGE

Contudo, é importante fazer uma ressalva quanto aos números sobre o crescimento das favelas. Mapear favelas é uma tarefa complexa, e o IBGE, ao longo do tempo, tem introduzido inovações metodológicas importantes para melhorar a qualidade dos dados oficiais das favelas. Isso inclui o aprimoramento da análise de imagens de satélite, uso de dados auxiliares como pontos de energia elétrica, levantamento de campo e consultas a prefeituras, atores locais e outras parcerias diversas.

Houve, portanto, uma melhoria significativa na qualidade dos dados entre o censo de 2010 e o de 2022. Temos mais favelas mapeadas agora, mas é importante notar que algumas dessas “novas” favelas registradas já existiam em 2010, mas não foram identificadas na época. Esse aprimoramento metodológico, tão importante para ampliar a visibilidade das favelas, dificulta a comparação direta entre os dois censos, pois é desafiador distinguir entre o crescimento real desses territórios e o aumento que é meramente resultante do aprimoramento da metodologia de mapeamento.

Ou seja, se por um lado temos dificuldades de comparar os dois censos, por outro estamos diante de dados melhores, obtidos com metodologias mais sofisticadas.

Esses dados são fundamentais para que conheçamos melhor esses territórios e suas especificidades. Destacam características importantes das populações em favelas: são majoritariamente negras (73% dos residentes em favelas se declaram negros, enquanto no país o percentual é de 55%) e mais jovens, com uma mediana de idade de 30 anos, comparada aos 35 anos no restante do país. Os dados revelam ainda que restam muitos desafios em relação à infraestrutura nessas áreas: 1,8 milhão de domicílios ainda não têm ligação à rede de água e 4,3 milhões não possuem esgotamento sanitário adequado.

Dados de qualidade sobre as favelas são fundamentais para que o Brasil conheça esses territórios, para que as populações das favelas possam fundamentar suas reivindicações e para que ações efetivas na promoção de melhorias das condições de vida das pessoas possam ser pensadas, planejadas, pelos moradores e pelo poder público. Não é possível realizar isso sem informações de qualidade.

IHU – Qual o papel das ONGs e organizações da sociedade civil no apoio e fortalecimento das favelas? Elas têm conseguido preencher as lacunas deixadas pelo poder público? Quais são, hoje, os principais desafios em relação às favelas?

Flávia Feitosa – As ONGs e organizações da sociedade civil desempenham um papel fundamental no apoio e no fortalecimento das favelas, especialmente em contextos em que o poder público é ausente ou ineficaz. Essas organizações atuam em diversas frentes, promovendo projetos de educação, saúde, geração de renda e cultura, além de fornecerem suporte jurídico e estrutural para a regularização fundiária e melhorias habitacionais.

São muitos os exemplos de iniciativas valiosas e transformadoras, mas cabe enfatizar que não devem substituir as responsabilidades do poder público. Elas atuam de forma complementar, buscando preencher lacunas existentes, mas entendo que a promoção de condições dignas de vida para os moradores das favelas exige políticas consistentes, integradas e de longo prazo. Nesse contexto, a pressão e a articulação de movimentos sociais, ONGs e lideranças comunitárias sobre o poder público também exercem um papel importante de transformação.

Trazendo um exemplo relacionado à temática dos dados sobre favelas, em evidência pela recente divulgação do IBGE, pressões dessa natureza foram fundamentais para a mudança na nomenclatura oficial “favelas e comunidades urbanas”, adotada recentemente pelo IBGE. Essa alteração, que substituiu o termo “aglomerado subnormal” – carregado de estigmas e preconceitos –, representa uma vitória simbólica e política, reafirmando a legitimidade e a dignidade desses territórios. As favelas não são “subnormais”, são territórios que expressam uma luta legítima por moradia e pelo direito à cidade. Favela é cidade, e reconhecê-la como tal envolve adotar uma nomenclatura adequada.

Apesar das situações de precariedade habitacional, marcadas pela falta de investimento público, as favelas atendem às necessidades de moradia e pertencimento de um grande contingente da população. Nessas comunidades, há vida social ativa, redes de solidariedade e uma identidade coletiva vibrante.

São territórios que necessitam de financiamento direcionado para melhorar as condições de vida de seus residentes. A prioridade para estes espaços deve ser a urbanização, voltada à promoção da integração urbana e social dessas áreas. Isso inclui uma série de ações, como a melhoria da infraestrutura – saneamento, pavimentação e transporte –, tratamento de situações de risco, além da expansão do acesso a serviços públicos essenciais como educação, saúde e lazer.

IHU – A composição familiar é outro dado do IBGE que chama atenção: 18% dos domicílios têm apenas um morador e 20% são domicílios com cônjuges sem filhos. Quais os desafios habitacionais e de planejamento urbano, considerando esses dados demográficos? Quais as consequências práticas dessa tendência demográfica?

Flávia Feitosa – A redução no tamanho das famílias brasileiras, evidenciada por estes números, reflete mudanças culturais e socioeconômicas que têm consequências práticas no contexto urbano. É uma tendência demográfica que coloca em xeque o modelo tradicional de residências, voltadas para famílias maiores, onde mais pessoas compartilham tanto o espaço quanto os recursos necessários para sua manutenção. Assim, embora o crescimento populacional esteja desacelerando, a demanda por unidades habitacionais não necessariamente segue a mesma tendência.

Nas favelas, o desafio habitacional é ainda mais acentuado. A demanda crescente por moradia, aliada à ausência de limites formais para o adensamento, tem levado à ocupação cada vez mais densa e verticalizada desses territórios. Áreas residuais, de risco e de preservação ambiental vão sendo progressivamente ocupadas, o que intensifica a precariedade habitacional e amplia os riscos socioambientais.

Mudanças climáticas

Esse processo se torna ainda mais preocupante no contexto das mudanças climáticas. Os impactos das alterações climáticas – como o aumento de chuvas intensas, a elevação do nível do mar e temperaturas extremas – são amplificados pela precariedade das condições habitacionais, pela ausência de infraestrutura básica e pela localização em áreas de alto risco. Estas condições agravam as vulnerabilidades das populações que habitam áreas precárias, impactando-as de maneira desproporcional.

Reforça-se, portanto, a relevância de avançar na urbanização dessas áreas, garantindo intervenções planejadas e sustentáveis para reduzir os riscos socioambientais e melhorar as condições de vida dos moradores. Isso inclui a implantação de infraestrutura básica; a criação e ampliação de espaços públicos que promovam a qualidade de vida e resiliência climática; redes de drenagem eficientes; intervenções para contenção de encostas; o monitoramento contínuo de situações de risco e a implementação de sistemas de alerta.

Tais iniciativas não podem ser tratadas de forma isolada. Elas demandam investimentos robustos, ações intersetoriais e uma governança que articule poder público, sociedade civil e comunidades locais.

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