Crise em cooperativas gaúchas revela risco de avanços do capitalismo sobre um modelo de economia partilhada. Entrevista especial com Ariosto Sparemberger

Para o professor, erros de gestão abrem frentes para a globalização, pois o cooperativismo em si é um sistema forte e capaz de enfrentar modelos que expropriam produtores locais

Foto: Instituto Biossistêmico

Por: João Vitor Santos | 05 Abril 2023

Recentemente, problemas financeiros em duas grandes cooperativas do Rio Grande do Sul que atuam nos ramos de carne e leite, a Languiru e a Piá, acenderam um alerta: o modelo do cooperativismo está em crise, não sendo capaz de fazer frente aos desafios de nosso tempo? “Cada vez acredito mais no cooperativismo como um modelo que é viável e, principalmente, que faz frente a outros modelos tradicionais de gestão que não têm esse olhar social e humano que o cooperativismo tem. O problema desse sistema quase perfeito é que existem gestores que não conduzem o negócio da maneira mais adequada e acabam criando uma imagem de que o problema é o sistema”. A resposta, cujo centro é repetido com veemência na entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU via WhatsApp, é do professor Ariosto Sparemberger.

Com larga experiência em estudos sobre gestão e cooperativismo, Sparemberger vê os casos de Languiru e Piá como isolados. “Não podemos de dois casos, que considero atípicos e isolados, em que em alguns momentos as decisões por parte dos gestores não observaram o impacto dos elementos externos e levaram a endividamentos por decisões equivocadas, pôr em descrédito ou levantar qualquer dúvida sobre o êxito do modelo do cooperativismo”, reitera. Mas o problema que, isolados ou não, esses casos abrem o flanco para mercados com lógicas completamente opostas, como no caso da Languiru, que vendeu sua produção de leite para uma multinacional e, no ramo de carnes, fechou parcerias com a indústria chinesa. “Essa entrada do poder chinês é um risco. O capital chinês não vem aqui de bonzinho para ajudar o produtor rural do Rio Grande do Sul. Ele quer resultado. Eu vejo como preocupante fazer esses acordos, principalmente com a indústria e o mercado chinês”, completa o professor.

Para ele, o caminho é justamente fortalecer as lógicas do cooperativismo, pois elas enfocam o desenvolvimento local e têm as pessoas no centro de suas ações. “Lembre-se que os ganhos e dividendos das multinacionais são de acionistas que muitas vezes nem aqui estão. O local aqui é só para obter lucros e os investimentos, muitas vezes, só vão acontecer em aplicações financeiras. É muito diferente do sistema cooperativista”, alerta. “Precisamos ter pessoas capacitadas para tomar decisões estratégicas assertivas. Não adianta o associado participar, a cooperativa dar resultado e as decisões não serem as mais corretas”, indica, lembrando a importância do investimento em desenvolvimento tecnológico e em políticas públicas que façam as atividades em pequenas propriedades serem atrativas aos jovens. “Em muitos casos, as famílias não sabem quem vai ficar, no futuro, produzindo na pequena propriedade”, sintetiza.

Ariosto Sparemberger (Foto: Arquivo pessoal)

Ariosto Sparemberger possui graduação em Administração e graduação em Cooperativismo pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, mestrado em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, doutorado em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e pela Universidade Nacional de Missiones, na Argentina. É professor titular da Unijuí, coordena e atua em projetos na área de marketing e cooperativismos.

Confira a entrevista.

IHU – Recentemente, têm sido noticiadas crises nas cooperativas Piá, de Novo Petrópolis, e Languiru, em Teutônia, ambas no Rio Grande do Sul. Como podemos compreender o que essas duas cooperativas estão passando?

Ariosto Sparemberger – Desde a sua constituição, se olharmos o caso da Languiru, que começou suas atividades em 1955 e a Piá em 1967, veremos que são organizações cooperativas bem antigas. Seu patrimônio, construído ao longo desse tempo, foi feito com muita participação, muita transparência e dentro dos princípios cooperativistas [1], entre eles uma participação efetiva de seus associados. Assim, ao longo do tempo uma credibilidade e uma confiança muito fortes forma criadas em torno dessas cooperativas e de todo o sistema cooperativo.

Localização de Nova Petrópolis | Mapa: Wikipédia

Localização de Teutônia | Mapa: Wikipédia

Nesse momento, olhamos para quem está na presidência da cooperativa, pois a responsabilidade é do gestor que foi colocado lá via assembleia entre associados, assim como o conselho de administração. Acredito que todas essas pessoas têm enfrentado uma situação bastante complexa. Compreender o que se passa é tentar entender um momento pontual de instabilidade porque, ao longo da história, pelo que temos notícias, é um momento único.

Se nós olharmos tanto a Languiru quanto a Piá, a evolução que tiveram em termos de faturamento e resultado líquido foi algo muito positivo. O que acontece é que, em algum momento, alguma análise estratégica feita pelo conselho de administração não foi a mais correta. Isso principalmente relacionado aos fatores externos, pois são cooperativas complexas que atuam em diferentes cadeias produtivas, o que pode ter se agravado com os custos de insumos e própria redução de compra e, principalmente, com as altas taxas de juros e a estiagem dos últimos anos. Por isso considero que são fatores complexos.

Implicações em outros setores

A situação é muito complexa porque o sistema cooperativo está enraizado nessas localidades onde está inserido e tudo o que ocorre na cooperativa tem implicação em outros setores. Por isso, compreender a fundo o que essas duas cooperativas estão passando é difícil porque passa pelo Poder Público, pelos prefeitos da região, pelos conselhos de administração e conselho fiscal das cooperativas, instituições financeiras que também estão aí para negociar dívidas, os próprios fornecedores e os produtores rurais.

É evidente que todos esses agentes vão cobrar respostas e vão querer ações das cooperativas, dos dirigentes dessas cooperativas. Essas diretorias não estão passando por situações rotineiras, e é preciso muita habilidade para lidar com esses períodos de crises. E nem sempre os gestores têm competência para lidar. Por isso, também precisamos considerar que é um momento de muita cautela para que não se tomem decisões ainda mais precipitadas.

IHU – No caso da Languiru, a multinacional francesa Lactalis assumiu a compra de leite dos produtores associados. Embora seja um alento aos produtores, pois conseguem vender seu produto, essa operação não representa um enfraquecimento do sistema cooperativo enquanto há um fortalecimento das multinacionais de alimentos?

Ariosto Sparemberger – Não diria que essa operação represente um enfraquecimento do sistema cooperativo porque o próprio cooperativismo é, hoje, sem dúvida, um dos principais modelos, é o sistema de organização que melhor responde à atual situação. Claro, com suas dificuldades e desafios. Onde o cooperativismo está implementado, ele contribui para o desenvolvimento social e econômico. É um modelo que dá resultados, justamente pelo esgotamento de outros modelos mais tradicionais de organizações voltados, principalmente ao capital, em que não foca o social.

No Rio Grande do Sul, segundo o Sistema Ocergs-Sescoop, temos mais de 400 cooperativas e cooperativas que dão resultado para os associados e que estão reinvestindo dinheiro nas suas propriedades, nas suas localidades. Há lugares e setores que realmente só a cooperativa está, por isso digo que o cooperativismo é um dos melhores modelos que respondem hoje à sociedade. Nele, há sempre um olhar voltado ao social, há a redistribuição desses resultados e a aplicação desses resultados nos locais onde só o cooperativismo atua.

Por isso, não podemos de dois casos, que considero atípicos e isolados, em que em alguns momentos as decisões por parte dos gestores não observaram o impacto dos elementos externos e levaram a endividamentos por decisões equivocadas, pôr em descrédito ou levantar qualquer dúvida sobre o êxito do modelo do cooperativismo.

Multinacionais

Ainda sobre as multinacionais, é claro que isso faz parte do processo de globalização iniciado há duas ou três décadas, onde há uma busca pela implementação de crescimento nas cadeias produtivas, principalmente na América Latina. Aliás, dentro dessas lógicas o Brasil é tido como muito promissor, pois é um dos poucos países do mundo onde ainda há muita área agricultável. Estes fatores geram o interesse das multinacionais pelo Brasil.

E isso não ocorre só no segmento de alimentos e no ramo onde as cooperativas atuam. Fato é que o poder de multinacionais se dá e acaba sendo uma concorrência também para todos os setores da economia. A força da indústria nacional também sente isso, e há problemas na nossa indústria porque há uma dependência de componentes e matéria-prima e de tantos outros produtos que a indústria nacional precisa e em que não somos autossuficientes.

Nesse contexto, o próprio cooperativismo não deixa de ser uma força, um modelo de organização justamente para fazer resistência a esse crescimento das empresas multinacionais. Lembremos que os ganhos e dividendos das multinacionais são de acionistas que muitas vezes nem aqui estão. O local aqui é só para obter lucros e os investimentos, muitas vezes, só vão acontecer em aplicações financeiras. É muito diferente do sistema cooperativista. Nesse sentido, a multinacional pode apresentar um risco, pois há uma tendência dessa entrada de cadeias de multinacionais na produção de alimentos, uma vez que o mundo inteiro precisa de alimentos.

IHU – Também no caso da Languiru, o presidente da cooperativa, Dirceu Bayer, anunciou uma parceria com empresas chinesas no ramo de carnes e frigoríficos. Para ele, a parceria salvou a cooperativa, pois não só a Languiru, mas muitas que atuam no ramo de carnes estão em crise. Como analisa esse cenário?

Ariosto Sparemberger – Essa é uma posição do presidente. Quem atua no setor de carnes precisa entender o que causou a crise nessa área da cooperativa. Acho que quem até tem melhores condições de falar seria um pesquisador de comércio internacional. Mas o que precisamos entender aqui é que faz mais de duas décadas (há um relatório de 2008 de Pequim e que na época não foi dada muita atenção) que a China vem demonstrando interesse na América Latina, justamente na compra de alimentos. Isto acontece depois de um certo distanciamento na relação entre América Latina e Europa e Estados Unidos.

China vem crescendo suas cadeias produtivas. Ela teve crescimento de renda, de consumo. A China também precisa exportar e importar insumos e matéria-prima. O medo maior é justamente o enfraquecimento da indústria nacional com a entrada de produtos chineses com preço mais barato e que criem uma situação preocupante na indústria. Toda essa questão, e ainda a Guerra na Ucrânia com uma parceria entre China e Rússia, é bem complexa.

A China está de olho e tem interesse nos países da América Latina. O país vai investir e continuar investindo, até mesmo com empréstimos para a América Latina visando melhoria de infraestrutura e outras situações para poder alavancar a indústria. Isso volta um pouco à nossa segunda questão, que expõe um cenário bem preocupante porque, se o cooperativismo deve ser uma fortaleza para manter a indústria nacional, todas as cadeias produtivas nacionais em ação e com produção nacional, essa entrada do poder chinês é um risco. O capital chinês não vem aqui de bonzinho para ajudar o produtor rural do Rio Grande do Sul. Ele quer resultado. Eu vejo como preocupante fazer esses acordos principalmente com a indústria e o mercado chinês.

IHU – Além de assumir a operação de carnes e frigoríficos, o presidente da Languiru disse que os chineses também pagam muito melhor pelo leite. O que mais isso revela?

Ariosto Sparemberger – Com certeza os chineses sabem que o cooperativismo brasileiro, gaúcho, em todos os seus ramos de atuação, é um mecanismo, uma forma de melhoria de condições de vida das pessoas menos favorecidas e que se apresenta hoje como uma solução. É uma solução com origem lá da constituição do cooperativismo de 1844, com os tecelões, quando também melhorou a vida social daqueles operários (embora antes disso já falavam em modelos cooperativos por volta de 1609 nas reduções jesuíticas). Com certeza, isso a China sabe e vem fazer frente.

Lembro que quando trabalhei em uma cooperativa, a colheita e comercialização da soja se aproximaram e começaram a surgir muitas empresas duvidosas para comprar os grãos do produtor. Elas pagavam a mais para o associado não entregar na cooperativa. Muitas pessoas, naquele momento iludidas – e aqui acho que falta uma base de educação cooperativa, pois ainda existem muitos associados que participam, mas não têm uma formação cooperativa de forma mais ampla – aceitavam a proposta.

Isto lembra a situação da cadeia produtiva de leite, pois aquele que paga mais faz com que o produtor entregue seu produto. E como há toda uma situação de instabilidade e insegurança gerado na região em função desses problemas que ocorreram com essas duas cooperativas. É claro que é o momento propício para você entrar e pagar um pouco mais para, em seguida, desacreditar o sistema da cooperativa. Lembre-se de que esse sistema, no caso da Languiru, está aí desde 1955 e o quanto produtor rural já foi fortalecido, beneficiado, quantas famílias já melhoraram de vida, de propriedade. Claro, entendo que é uma oportunidade que surge num momento de instabilidade. Mas é uma posição do presidente e da cooperativa.

Temo que possa acontecer com uma empresa chinesa aquilo que aconteceu com aquelas empresas que comprovam os grãos. Estas empresas não existem mais, e a cooperativa segue lá, ano a ano prestando assistência técnica junto do produtor e recebendo soja. Claro que isso tudo é bem oportuno para a indústria, para o mercado chinês. Mas é preciso avaliar bem. Os chineses podem até pagar mais, mas essa fala preocupa, pois parece que se esquece tudo o que significou e significa o modelo cooperativo e a própria cooperativa Languiru desde sua fundação.

IHU – Essas duas cooperativas são dá área de proteína animal. Como estão as cooperativas rurais de outros setores, especialmente ligadas a produtores de grãos? Vivem crises semelhantes ou estão em outro momento?

Ariosto Sparemberger – Não. Trata-se de uma situação pontual e isolada. Se buscarmos os últimos indicadores das maiores empresas, segundo o jornal Valor Econômico, em 2022, vamos encontrar algumas cooperativas e grãos, principalmente Cotrijal, Cotrisal, Cotripal, nesse ranking brasileiro das maiores. Isto considera que, em 2021 e 2022, os produtores dessas cooperativas enfrentaram uma estiagem violenta, com quebras significativas na cadeia produtiva de milho, de soja e outros grãos. Mesmo assim, o cooperativismo conseguiu apresentar resultados positivos.

Na nossa região, em 2022, a Coopermil, cooperativa essencialmente agropecuária de Santa Rosa, teve um faturamento superior em relação ao ano anterior, na faixa de 1,2 bilhão de reais, dando retorno para os associados com ampliação, investimos e inauguração de unidades. A própria Coopatrigo, em São Luiz Gonzaga, apresentou resultados positivos em 2022, na faixa de 2 bilhões de reais, embora todo o problema de estiagem enfrentado pela cooperativa de grãos. Não, o sistema inclusive está fortalecido, não vive crises similares.

Aquilo que eu entendo, estando um pouco mais fisicamente distante, percebo que os casos da Languiru e Piá são situações pontuais e isoladas, assim como tivemos aqui na época da Cotrijui, que foi a maior cooperativa da América Latina e passou por um período de crise e perda de credibilidade. A perda de credibilidade ocorreu a partir da gestão implementada, de pessoas conduzidas aos cargos de direção executiva, conselhos administrativo e fiscal. Não é que estejamos em algum momento desacreditando o sistema ou dizendo que ele está em crise.

IHU – O que as crises na Piá e Languiru indicam sobre o sistema cooperativo hoje? Podemos afirmar que o modelo está em crise?

Ariosto Sparemberger – Não. Segundo nossa análise, o cooperativismo não está em crise. Reporto-me, de novo, a alguns indicadores. Se pegarmos a eficiência econômica das cooperativas gaúchas em 2022, ano base 2021, elas tiveram um faturamento de 71,2 bilhões de reais; 36,8% acima em relação ao período anterior. Isso realmente impulsiona a economia do Rio Grande do Sul, gera emprego e distribui riqueza.

A região central tem cerca 19 cooperativas de diferentes segmentos – agropecuária, crédito, transporte etc. Elas tiveram incremento de mais de 6% nos anos anteriores de geração de emprego. Bem pelo contrário, o sistema não está em crise, está fortalecido, tanto é que enfrentou com muita propriedade todo o sistema de estiagem pelo que o Rio Grande do Sul passou.

As cooperativas não estão em crise, são casos isolados, mas não devem ser as últimas situações de crise dentro do sistema. São modelos de gestão, decisões equivocadas em alguns momentos. Algumas análises não foram feitas com todos os elementos necessários, tanto elementos internos, como infraestrutura, capital e capacidade de investimentos, quanto elementos externos – lembrando que passamos por uma pandemia, houve mudanças demográficas, econômicas e tecnológicas.

IHU – Como podemos compreender a origem do modelo de cooperativismo empregado no Rio Grande do Sul? Esse modelo é o mesmo empregado em outras regiões do país?

Ariosto Sparemberger – O cooperativismo é empregado em outras regiões, até porque temos os princípios do cooperativismo e a lei n. 5764/1971, que define a política nacional de cooperativismo. Os princípios universais do cooperativismo e as cooperativas têm autonomia para criar seus estatutos sociais e definir, dentro da lei e dos princípios cooperativistas, suas regras. O que muda são as diferenças culturais, de costumes e de tradições, mas isso não interfere somente no cooperativismo; também ocorre em outras organizações. Algumas questões se adaptam melhor devido à origem do povo, à tradição, ao passado histórico. Tudo isso influencia nos resultados e na forma de gestão.

As cooperativas do Rio Grande do Sul começaram em 1957. A maioria dessas cooperativas é de grãos – tritícolas – e surgiu para resolver problemas da época, como a falta de espaços para armazenagem de grãos. As ideias cooperativistas vêm desde 1600 no Rio Grande do Sul, principalmente nas reduções jesuíticas. Temos a Linha Imperial, em 1902, oficialmente, como a origem cooperativista, linha de crédito etc. Mas já há estudos e pesquisas que indicam a existência de traços do cooperativismo, nas primeiras ações dos missionários jesuítas no RS. Ali já apareciam a importância da cooperação e traços do cooperativismo.

Em pouco tempo, deve ser implementada a prática cooperativista dentro das escolas, como já temos aqui, com o Sicredi, que vai até as escolas para ensinar gestão financeira, pois as crianças não têm hoje, em sala de aula, conteúdos que trabalhem bem a cultura financeira. O trabalho de educação cooperativista pode ser aplicado a outros ramos do cooperativismo, como saúde, transporte, agropecuária etc. Mostrar também a importância da cooperação das pessoas.

IHU – Pode o que representa um sistema de cooperativa para pequenos produtores rurais como os da região do Vale do Taquari, região de Teutônia, e Serra, região de Nova Petrópolis.

Ariosto Sparemberger – Além dos pequenos produtores terem o amparo de um sistema que garante todos os elementos necessários para o processo de produção, existe, ao mesmo tempo, o amparo do cooperativismo para o processo de comercialização. Pode ser uma marca de referência, que é o próprio sistema, e com isso pode valorizar ainda mais a pequena produção, o que de forma individual não seria possível. Até porque o cooperativismo tem uma finalidade diferente de uma associação, que visa apenas comercialização.

Isso tudo além da questão do associado, o pequeno proprietário, que é dono de seu negócio. Ele pode participar e ajudar na tomada de decisão desse negócio. E mesmo na questão da comercialização, o cooperado consegue valores mais competitivos para seu produto em função do volume e da competitividade que assume ao estar cooperado com outros pequenos produtores rurais. E terá, ainda, toda assistência técnica tanto na hora da produção como também terá um preço mais competitivo lá no final.

Assim, dentro desse modelo cooperativo ele vai adquirir insumos, suporte logístico e, por essa união com demais produtores, vai tendo um crescimento na área econômica e social, pela participação e tomada de decisões. Por isso, digo que um sistema cooperativo representa muito para um pequeno produtor, mais do que para um grande produtor que tem toda a sua estrutura logística, seus equipamentos, e que ele mesmo vai tentar negociar um preço de sua produção. Não que para um grande produtor um sistema cooperativo não seja importante, mas esse sistema representa, para um pequeno produtor, a sua própria existência e a possibilidade de melhorar sua vida.

Como se dizia antigamente: a união faz a força. A união desses pequenos produtores em torno de sua produção, uma produção mais qualificada, os faz fortes. É importante destacar que muitas cooperativas colocam à disposição lojas, supermercados, postos de combustíveis e financiamentos aos seus associados, até com os chamados regimes de troca-troca, em que ele troca a sua produção por insumos para uma próxima safra, além da facilidade para pagamentos com prazo maior. Temos aí uma das essências do cooperativismo: a força do que realmente significa o modelo cooperativismo, esse espaço, estratégia, forma que se faz presente na vida das pessoas, especialmente pequenos produtores e todas as suas famílias.

IHU – Há algum tempo, falar em cooperativas era falar em produtores rurais, associações para produção e venda de alimentos em pequenas propriedades. Atualmente, em tempos de financeirização da vida, ouve-se muito falar das cooperativas de crédito, os bancos. No que as lógicas dessas cooperativas se aproximam e no que se distanciam das antigas cooperativas ligadas ao ramo de alimentos?

Ariosto Sparemberger – Realmente, temos várias cooperativas de créditos e todas elas estão crescendo. Eu não as vejo se distanciando das demais cooperativas ligadas ao ramo de alimentos. Claro, dentro dos estatutos e obedecendo a lei das cooperativas, cada uma vai atuar dentro de seu segmento. Assim como outras cooperativas de áreas como a médica, de eletrificação, essas cooperativas de crédito também têm que responder a outros tipos de legislação. Ou seja, a diferenciação ocorre em função do ramo de atuação. Mas, se pensarmos na raiz, na essência, no elo comum da cooperação para a melhoria de vida todas são muito parecidas.

Se compararmos com outros bancos, veremos que as cooperativas de crédito são bem diferentes, pois esses visam o lucro, atender grandes investidores e proprietários que, muitas vezes, não estão no país. Já as cooperativas de crédito têm seu foco no cooperado e na realidade local.

IHU – Quais os desafios para a manutenção do sistema cooperativo, com foco na proteção e no desenvolvimento, especialmente dos pequenos produtores rurais? Como salvar o velho espírito do cooperativismo de um tsunami chamado mercado?

Ariosto Sparemberger – É justamente um tsunami chamado mercado que, muitas vezes, não tem escrúpulos e visa resultado financeiro imediato que eleva muito o nível de concorrência, competição. E é uma competição que não é mais nem mesmo local, se tornou uma competição global desde a década de 1980. Então, os desafios são maiores para o sistema cooperativo porque enfrenta também grandes players e conglomerados internacionais. Muitas vezes, compete-se com empresas multinacionais de alta tecnologia, alto poder de mercado, com domínio de toda uma cadeia produtiva que vai desde a distribuição de insumos, tecnologias, sistema de produção, até o consumidor final.

Nosso grande desafio é fazer com que o cooperativismo siga fazendo o que vem fazendo. É o exemplo que tivemos recentemente da Cotrijal, que vem há anos trabalhando com inovação e tecnologia, fazendo frente aos novos desafios, especificamente agora sobre o caso da estiagem. E sempre focando no bem-estar do associado e, principalmente, na participação desse associado. Se não tivermos essa cultura de participação do associado em sua cooperativa, ela enfraquece o sistema. É somente pela participação do associado, dele operando junto com a cooperativa, indo nas assembleias, nas reuniões, mas também entregando a sua produção e adquirindo insumos, produtos – sejam em lojas, supermercados, sejam em postos de combustíveis –, que se vai se fortalecendo o cooperativismo e se consegue fazer frente às adversidades no contexto do tsunami chamado mercado, pois a lógica do sistema financeiro é enfraquecer o cooperativismo.

Por outro lado, precisamos ter pessoas capacitadas para tomar decisões estratégicas assertivas. Não adianta o associado participar, a cooperativa dar resultado e as decisões não serem as mais corretas. O que o cooperativo ainda tem como desafios é a transparência do sistema cooperativista. O associado deve participar e, também, ajudar a fiscalizar. É na cooperativa que ele entrega o resultado de seu trabalho, coloca lá e acredita na direção, no conselho, nos dirigentes, que eles realmente vão cuidar bem do seu capital, do resultado de seu suor, do seu trabalho e do seu esforço. Se não tivermos lideranças e pessoas capacitadas, teremos um problema. É preciso dizer que o cooperativismo é o que é, hoje, graças a muitos líderes cooperativistas. É disso que precisamos, pessoas que realmente trabalhem pelo desenvolvimento das cooperações.

IHU – Que caminhos podemos vislumbrar para a produção de alimentos no mundo? Qual será o papel do pequeno produtor rural e das agroindústrias locais?

Ariosto Sparemberger – Realmente, a produção de alimentos vai ser o caminho para o desenvolvimento porque o mundo inteiro precisa se alimentar. Mas o desafio que temos é o de viabilizar uma produção de forma sustentável. O investimento nos pequenos produtores rurais e nas agroindústrias é sim um caminho. Precisamos fortalecê-los, mas para isso também são necessárias políticas públicas de incentivo, junto com o sistema cooperativo.

Um outro grande desafio tem relação com a permanência do produtor nas áreas produtivas, pois se tem percebido o êxodo muito grande dos jovens. Temos muitas carências e, em muitos casos, as famílias não sabem quem vai ficar, no futuro, produzindo na pequena propriedade. Também é preciso um investimento maior em tecnologia, especialmente na produção de alimentos nas agroindústrias.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Ariosto Sparemberger – Cada vez acredito mais no cooperativismo como um modelo que é viável e, principalmente, que faz frente a outros modelos tradicionais de gestão que não têm esse olhar social e humano que o cooperativismo tem. O problema desse sistema quase perfeito é que existem gestores que não conduzem o negócio da maneira mais adequada e acabam criando uma imagem de que o problema é o sistema.

O cooperativismo está aí e ninguém mais discute se é um modelo que dá ou não certo. Dá certo e está comprovado com todo o crescimento do cooperativismo ao longo dos últimos anos, melhorando a vida de cada vez mais pessoas.

Notas:

[1] Princípios cooperativistas: adesão livre e voluntária; gestão democrática pelos sócios; participação econômica dos sócios; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; interesse pela comunidade. (Nota do IHU)

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