A partir de uma análise sobre a presença de celebridades na posse de Joe Biden, pesquisador mergulha no universo pop e revela mensagens que passam ao largo de quem reduz esse tipo de manifestação
Os mais entusiasmados com as possíveis mudanças de rumo no governo dos Estados Unidos se disseram emocionados ao verem Lady Gaga cantando o hino estadunidense na posse de Joe Biden. Mas o professor e pesquisador Thiago Soares destaca que isso não é novidade. “As posses sempre tiveram presença de cantores com shows”, pontua, na entrevista concedida via mensagens de áudio do WhatsApp à IHU On-Line. “A cultura pop é formadora da própria sociedade estadunidense. Se analisarmos historicamente, veremos que o grande momento de formação da cultura pop e midiática nos Estados Unidos é após a crise de 1929”, completa.
Para Thiago, o mais interessante é perceber como a polarização da cultura política tem tensionado os artistas a tomarem posição. Se a cultura pop sempre pode ser lida com entrelinhas que vendiam ideologias, agora isso parece ser mais evidente. “O que vejo estar acontecendo agora é uma certa cobrança para que as celebridades se posicionem politicamente. Vimos muito isso na campanha dos Estados Unidos com um amplo espectro de artistas apoiando Joe Biden. Inclusive vemos também aqui no Brasil esse espectro de polarização muito grande”, analisa.
Pesquisador nesse campo, Thiago endossa que, mais do que nunca, “a cultura pop é um terreno fértil de mobilizações e articulações que fazem com que a dependência do sistema, dependendo do momento político, possam ser mais próximas ou mais distantes, mais questionadoras ou mais apaziguadoras”. E rechaça quem olha para essas manifestações culturais com desdém. “Achar que essa indústria é alienante é não conhecer essa história”, enfatiza.
Mas, não pense que as análises sobre os sinais da cultura pop acerca da política podem ser feitos de maneira apressada. É o caso da própria Lady Gaga, trazida pelo pesquisador, a quem define como “uma posição um pouco ambígua em relação a sua trajetória e à cultura norte-americana”. “Durante o Super Bowl, o primeiro evento desses da era Trump, Lady Gaga participou e teve uma atuação bastante apolítica, o que, inclusive, levou várias pessoas a desconfiarem dessa posição”, recorda.
Ao longo da entrevista, Thiago também faz relações com a cultura pop no Brasil e ainda chama atenção para uma mudança. “A geopolítica mundial vem mudando, vem fazendo aparecer novos atores nesse contexto. Os países orientais e especificamente a China, a Coreia do Sul e o Japão estão bastante empenhados nessa mesma estratégia que foi amplamente pensada pelos EUA”, destaca. E exemplifica: “temos o K-pop ancorando a liderança de uma empresa como Samsung na aproximação com aquele grupo chamado B T S na venda de celulares e na própria consagração da Samsung como marca global”.
Thiago Soares (Foto: Arquivo pessoal)
Thiago Soares é professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Realizou pós-doutoramento na Universidade Federal Fluminense – UFF, é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. Coordena o grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop/ UFPE) e integra o grupo de pesquisa Laboratório de Análise em Música e Audiovisual (LAMA/ UFPE).
A entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, foi publicada originalmente no dia 02-02-2021.
IHU On-Line – A campanha presidencial de Joe Biden, nos EUA, teve grande apoio de artistas e celebridades do mundo da cultura, especialmente da cultura pop. O que isso revela?
Thiago Soares – De fato, vem ficando cada vez mais próxima a relação entre cultura pop e cultura política. Se pensarmos, historicamente sempre houve uma relação entre artistas musicais e celebridades com políticos, especialmente com presidentes da república. Nos EUA, as posses sempre tiveram presença de cantores com shows. Aqui no Brasil, temos várias histórias de apoios. Temos, por exemplo, o caso de Fafá de Belém que cantou o hino nacional em várias ocasiões.
Por isso, podemos dizer que a cultura de celebridade esteve sempre próxima da cultura política no qual o político é um sujeito midiático e não me parece especialmente diferente essa presença dos artistas em acordos ou em relações com os presidentes. O caso específico da cantora Lady Gaga na posse de Biden reforça essa relação. Beyoncé já esteve na posse de Barack Obama.
Ou seja, isso não é novo, mas o que é particular desse período agora é especialmente que, com a questão das redes sociais digitais e essa profunda interação performática em rede, ocorre também um processos de polarização política muito intensa. O que vejo estar acontecendo agora é uma certa cobrança para que as celebridades se posicionem politicamente. Vimos muito isso na campanha dos Estados Unidos com um amplo espectro de artistas apoiando Joe Biden. Inclusive vemos também aqui no Brasil esse espetro de polarização muito grande, como Pabllo Vittar chegar a ser apontado como vice de Lula e toda aquela problemática de Anita se declarar contra Bolsonaro.
Esse espectro de polarização política está revelando uma necessidade de as pessoas se posicionarem e isso, agora nos Estados Unidos, também teve uma importância muito grande. Veja uma artista como a Taylor Swift, que é uma artista do country e que sempre foi vista como uma pessoa ligada a valores mais conservadores. Ela teve uma virada que foi muito interessante ao apoiar os Democratas, o que revelou uma nova tomada de posição na sua própria carreira como artista. Enfim, essa dinâmica de polarização política está acentuando essas nuances sobre os próprios artistas.
IHU On-Line – O que é possível inferir sobre as linhas do novo governo norte-americano a partir do set list de artistas e músicas que marcaram a solenidade e as festividades da posse de Biden?
Thiago Soares – Parece que temos em Biden, levando em conta as duas grandes artistas da cultura pop presentes, Lady Gaga e Jennifer Lopez, uma questão sintomática da revelação de uma nova tomada de posição do governo Democrata em relação a essas pautas ligadas aos Direitos Humanos. Lady Gaga é uma artista que, para além de seu status de celebridade, tem uma ação muito grande nas questões de gênero, do feminismo e também questões ligadas ao bullying como pautas existenciais.
E Jennifer Lopez, na medida em que ela fala até um trecho do hino americano em espanhol – ela é uma cantora de ascendência porto-riquenha – sinaliza, de forma muito evidente, uma aproximações com pautas que são vistas como ‘pautas de esquerda’, ou pautas mais identitárias, ou seja, as questões de gênero e migratórias.
E teve também aquela poetisa, Amanda Gorman, uma menina bem jovem e que – embora não a conheça, é preciso que se diga – recita um poema bastante forte e aborda questões de raciais. Essa plataforma dos artistas para Biden estavam bem próximas das plataformas identitárias e que me parece que serão reforçadas nesse momento do governo americano.
IHU On-Line – Lady Gaga foi uma dessas grandes estrelas da posse, cantando o hino dos Estados Unidos. O que isso representa? O que mundo da cultura pop revela sobre sua incidência no campo da política dos EUA?
Thiago Soares – Lady Gaga é uma cantora que, para além dessa relação intensa que tem com Joe Biden, tem uma posição um pouco ambígua em relação a sua trajetória e à cultura norte-americana. Durante o Super Bowl, o primeiro evento desses da era Trump, Lady Gaga participou e teve uma atuação bastante apolítica, o que, inclusive, levou várias pessoas a desconfiarem dessa posição. Ela cantou uma música em ode aos Estados Unidos, tinha uma bandeira do país.
Lembremos, ainda, que Lady Gaga cantou cerca de um ano depois daquele episódio muito forte em que a Beyoncé se vestiu de Panteras Negra durante o Super Bowl.
O Super Bowl evento de cultura pop mais importante nos Estados Unidos, mais mobilizador porque é dentro de um campeonato da NFL, a principal liga de futebol americano dos Estados Unidos, e extremamente popular. Então, naquela época, todos esperavam que Lady Gaga fizesse algum tipo de manifestação política, como teve Shakira e Jennifer Lopez no Super Bowl do ano passado em que elas trouxeram a bandeira de Porto Rico e fizeram toda uma defesa da questão do imigrantes nos Estados Unidos.
Me parece que aquele gesto da Lady Gaga no Super Bowl foi um gesto que custou muito à trajetória dela, o seu disco que veio logo na sequência, Joanne (2016), foi um fracasso. Ela tentou flertar com o country, mas, depois, parece que houve uma contingência que a fez voltar para sua base ideológica, que é a música pop e a questão da defesa das diferenças, sobretudo os LGBT e as mulheres. E ela cantar o hino, sendo já muito próxima do Joe Biden, pois já foi presença na campanha dele, cantou músicas para ele, é realmente uma volta de Lady Gaga para suas bases ideológicas, existentes ainda antes de seu episódio no Super Bowl.
IHU On-Line – O que mais lhe chamou atenção na posse estadunidense? Por quê?
Thiago Soares – O que mais me chamou atenção na posse, além do rígido esquema de segurança, obviamente todo relacionado aquela dinâmica de Trump e da invasão do Capitólio, foi a ampla presença de ex-presidentes. Isso evidencia uma espécie de pacto democrático simbólico. Para além desse gesto dos ex-presidentes, gostaria de reforçar algo relacionado a cultura de celebridades: como estamos vivendo um momento de ausência de grandes premiações, veja o Grammy, por exemplo, que foi cancelado, não sabemos se haverá Globo de Ouro ou Oscar esse ano, a posse foi um evento presencial que teve ali grandes figuras emblemáticas. Por isso, esse evento da posse me pareceu, em alguma medida, como uma espécie de tapete vermelho de premiação de celebridades.
Achei muito interessante, pois vimos as pessoas comentando os vestidos de Michelle Obama e da própria Kamala Harry. Tomou-se essas figuras políticas quase que como celebridades e me parece que isso correu por uma ausência dessa cultura de premiação que já é bastante importante dentro da cultura midiática global. Esse apoio e relação com a cultura de celebridade coloca realmente a posse do novo presidente norte-americano com um lugar interessante para o entendimento dessas lógicas.
IHU On-Line – Para além da participação de celebridades, a posse dos presidentes dos EUA é sempre considerado um verdadeiro show. No caso de Biden, a pandemia levou o cerimonial a pensar particularmente um show para TV. Como o senhor analisa esses elementos da posse? Em que medida podemos associar essa ‘conversão’ às mídias de massa e a cultura pop com a ideia estadunidense de democracia?
Thiago Soares – Todos os rituais estadunidenses estão fortemente ancorados dentro de uma lógica de espetáculo. Essa lógica, que é característica da cultura norte-americana, que legou Hollywood e toda a indústria do cinema, da televisão, do entretenimento, é permissivo e isso é possível se perceber em diferentes episódios. Se olharmos para o mundo dos esportes, que é um pouco mais afastado da cultura de celebridades e de premiações, veremos que sofrem também uma intensa espetacularização. É o caso do Super Bowl, um evento que em si hoje congrega as indústrias da música, do esporte e o marketing esportivo de maneira mais evidente, mas tem a própria a NBA, com seus intervalos com a participação de artistas em uma série de ações.
Isso acaba atravessando toda a cultura midiática, fazendo desses espetáculos como uma associação entre essas industrias. Quando vemos o Super Bowl, e trago ele aqui porque tem um lugar importante para entendermos essa relação, percebemos ali uma aproximação da indústria da música, pois sempre há uma expectativa muito grande sobre quem irá cantar no intervalo e até próprias questões políticas que trazem significado ao ato de estar torcendo ali naquele contexto. Me parece que há uma intensificação desses ecossistemas da indústria do entretenimento em outros espaços da cultura norte-americana. Isso é bastante sintomático e singular nessas práticas tão comuns nos EUA.
IHU On-Line – Há quem ainda considere a cultura pop e os meios de massa como algo menor, alienante. Mas qual a importância desses campos na história e política norte-americana?
Thiago Soares – A cultura pop é formadora da próprio sociedade estadunidense. Se analisarmos historicamente, veremos que o grande momento de formação da cultura pop e midiática nos Estados Unidos é após a crise de 1929. Há um livro muito interessante chamado The Entertainment Machine, de Robert C. Toll [The Entertainment Machine: American Show Business in the Twentieth Century. Oxford University Press; 1982] em que o autor vai fazer uma história dessa indústria do entretenimento nos Estados Unidos em que vai localizar a quebra da bolsa, o pós-guerra como um momento central para o fortalecimento da indústria do entretenimento.
É depois disso que se tem a ênfase nas operetas dos espetáculos da Broadway, que é a gênese de toda a formação dos espetáculos norte-americanos. O entretenimento é uma indústria basilar e formadora da identidade e da história dos Estados Unidos e nesse sentido é importantíssimo entendermos que a própria identidade dos Estados Unidos está articulada a essa formação do senso econômico e identitário do país.
Pós-segunda guerra, com os EUA extremamente fragilizado economicamente mas também precisando reforçar esse status quo, teremos a aparição do rock, na década de 1940 e o próprio processo de cristalização e consagração de figuras como Elvis Presley, que vai ser a própria síntese da relação com a indústria da música e até do cinema, pois ele vai migrar para o cinema também.
Na década de 1960 vamos ter a tentativa apaziguamento das tensões raciais nos EUA a partir da aparição Motown Records, aquela gravadora com sede na Geórgia e que vai tentar fazer a ponte entre os artistas negros com as plateias brancas nos EUA.
A indústria cultural, de massa, está presente em todos os grandes momentos dos EUA. Isso faz com que não consigamos imaginar esse país foram desse sistema industrial e achar que essa indústria é alienante é não conhecer essa história. Existe outro livro muito importante chamado Cultura da Mídia, de Douglas Kellner (EDUSC, 2001), o autor vai dizer que para entendermos os anseios e desejos de grande parte da população e das massas, precisamos pensar isso dentro da própria chave da indústria.
IHU On-Line – Uma das vertentes do imperialismo norte-americano é compreendido a partir do soft-power, que tem nas produções de cultura pop, do cinema à música, passando pelos programas de auditório e realitys, um suporte importante. Hoje, o pop estadunidense ainda pode ser lido como uma perspectiva do imperialismo? Por quê?
Thiago Soares – Essa ideia do soft-power, de um poder não bélico, a partir da questão cultural é a base dessa presença da cultura estadunidense no mundo. A própria formação do que foi o American way of life, na década de 1950, muito impulsionada pelo cinema moderno de Hollywood é bastante sintomática nesse sentido. Mas desde pelo menos dez anos que a geopolítica mundial vem mudando, vem fazendo aparecer novos atores nesse contexto. Os países orientais e especificamente a China, a Coreia do Sul e o Japão estão bastante empenhados nessa mesma estratégia que foi amplamente pensada pelos EUA.
Se formos pensar o que é o K-pop, veremos que é basilar de uma perspectiva cultural do Estado sul-coreano de aproximar a indústria da música de grandes corporações do mercado de tecnologia. Assim temos o K-pop ancorando, por exemplo, a liderança de uma empresa como Samsung na aproximação com aquele grupo chamado B T S na venda de celulares e na própria consagração da Samsung como marca global.
Além disso, o K-pop hoje está capilarizado em todo o planeta como sendo uma base de uma cultura juvenil, como incidência na América Latina, na África, na Europa e nos Estados Unidos e isso é muito sintomático de uma mudança de eixo geopolítico no qual os países do extremo-oriente passam a ser atores importantes nesse sistema.
E a China, embora com sistema político bastante diferente pela presença do Partido Comunista e de toda relação geopolítica com o mundo, também tem um forte braço no mercado de tecnologia pela Huawei e agora pelo Tik-Tok, um aplicativo do mercado chinês que chegou a ser proibido nos Estados Unidos na época de Trump, mas que é um aplicativo muito baixado e que evidencia essas diferenças e entradas de novos atores no campo da tecnologia.
Se formos pegar apenas a questão da tecnologia, o Facebook e o Google, que são empresas norte-americanas, veremos que já estão rivalizando com outras empresas chinesas do setor. Temos aí a geopolítica da cultura pop e do entretenimento articulada com marcas de tecnologia e com esse novo ambiente de circulação de bens simbólicos.
IHU On-Line – Trazendo um pouco para a realidade brasileira, como o senhor define a cultura pop nacional? E como vê a incidência no campo político?
Thiago Soares – A cultura pop no Brasil está muito ancorada numa ênfase na televisão, assim como em toda América Latina. A indústria de televisão sempre teve uma capilaridade muito grande entre os países latino-americanos e isso é algo que une o Brasil a esses outros países. Assim, ela está mais próximo do que considero como um modelo da cultura pop global. Aqui no Brasil, somos fortemente marcados pela Globo, que vai ser decisiva dessa marcação identitária de uma cultura midiática brasileira.
As telenovelas, portanto, são o produto dentro desse sistema de identidade da cultura pop brasileira. Vamos ter telenovelas que são um marco dentro de uma lógica daquilo que podemos pensar como sendo o próprio brasileiro. A Escrava Isaura, a novela mais exportada do Brasil, vai ser definidora do que se entenderá como telenovela brasileira. Essa novela vai se territorializar em vários contextos e vai dialogar com esses contextos de exportação mostrando como se deu essa relações raciais na cultura brasileira.
Em outro momento político, já na década de 1980, temos a novela Vale Tudo que vai firmar uma ideia de identidade brasileira marcada pela corrupção, pelas relações desiguais de poder, pelas marcações de classe social.
E sem falar em outros momentos, como o de Dancin' Days com a ‘cultura disco’ no Brasil. Temos uma série de telenovelas que vão marcar a identidade brasileira. Junto com isso, temos a cultura midiática jovem.
E também temos a indústria do videoclipe no Brasil e toda a questão musical marcada pela presença de programas de auditórios, como Chacrinha, depois a Xuxa, muito forte como ícone da cultura brasileira, e depois ainda Angélica, como mais uma marca da formação de uma cultura juvenil brasileira.
Ao mesmo tempo, essa cultura jovem brasileira em alguma medida estava mais afastada de um debate mais político. Assim, no Brasil vamos ter uma relação mais distante com essa formação política, o que está sendo acentuado nesse momento de polarização política brasileira. E por isso é bastante evidente vermos agora, por exemplo, vários cantores sertanejos estarem conectados com os ideais conservadores da política de Jair Bolsonaro. E também vamos ter artista da MPB, com dessa chamada MPB Lacre, de gênero, que vão estar aí associadas a políticas mais transgressoras e progressistas do campo da esquerda. O processo de polarização desde a segunda década dos anos 2000 vai legando uma outra dinâmica para esse modelo de entretenimento brasileiro que conecta muito mais facilmente política e entretenimento.
IHU On-Line – Falando de cultura e política brasileira, ainda parece haver uma distância entre líderes políticos que os artistas considerados mais ‘cults’ escolhem para apoiar na comparação com os eleitos pela maiores das classes mais populares, e também pelos artistas pop. O senhor concorda?
Thiago Soares – Existe no Brasil uma série de antropólogos e sociólogos como Roberto DaMatta e o próprio Darcy Ribeiro que vão falar de um traço da cultura brasileira que é a cordialidade, essa coisa que está sendo bastante questionada a partir desse do Bolsonaro e uma lógica de autoritarismo. Você vai ter os ideais de cordialidade rivalizando com outros como o de Lilia Schwarcz que trata do autoritarismo. Ela vai dizer que o Brasil sempre foi autoritário, a partir de uma ideia de que o jeitinho brasileiro no fundo tem um traço autoritário que seria aquela marcação de diferenças, o famoso ‘você sabe com quem está falando?’.
Coloco tudo isso para dizer que essa ideia de cordialidade brasileira muitas vezes vai esconder certas violências em relação ao cotidiano brasileiro de profunda desigualdade e que artistas da cultura pop e do entretenimento sempre quiseram deixar um pouco de lado, afastando-se dessa discussão. Diria que o mito do brasileiro cordial esteve sempre muito presente nos artistas e celebridades brasileiras que nunca quiseram se envolver em causas mais políticas.
Isso ocorre de forma diferente, até por conta do contexto, quando se tem os artistas brasileiros exilados durante a ditadura militar, em que temos um momento de polarização muito grande e perseguições a artistas. E aí temos nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros artistas que vão se pronunciar publicamente em relação a causas e questões políticas. Mas, de maneira geral, talvez a cordialidade dos artistas com relação aos artistas seja um imperativo dentro de uma lógica do que é produção de cultura pop no Brasil.
IHU On-Line – O sertanejo é um capítulo à parte na cultura popular brasileira. Como o senhor lê essa manifestação cultural e suas relações com o campo da política?
Thiago Soares – O sertanejo vem de dentro desse modelo econômico do agronegócio, que vai por sua vez formar as grandes metrópoles do centro-oeste, do sudeste e de parte do norte do Brasil e junto com esse modelo de negócio que tem o sertanejo vem com um modelo de entretenimento que são as feiras do agronegócio, os bailes e festas de peões. E esse sistema econômico adota o que está ligado a valores econômicos muito mais hegemônicos e também a valores mais conservadores. E não é só no Brasil, nos EUA a música country é também enraizada nos princípios econômicos do meio-oeste americano e que também vão trazer à tona valores bastante conservadores ligados a branquitude, ao cristianismo e tais valores aparecem inclusive na poética das canções.
Quando vemos essa emergência do sertanejo, e uma certa leitura política do sertanejo, se percebe essa ligação com valores conservadores. É quanto temos a raiz e relações políticas ligadas ao agronegócio, a bancada da bala, da Bíblia e a do boi. Essas bancadas políticas no Brasil estão muito próximas, veja como a defesa da venda de armas no Brasil está profundamente ligada a defesa de terra pelo agronegócio. Assim, não é de se espantar com a vinculação de artistas sertanejos a pautas muito próximas ao governo Bolsonaro, afinal a gênese de todo esse entretenimento está arregrada dentro desse sistema.
É imperativo que percebamos essa relação e que ela vai trazer à tona essa marca de um Brasil mais rural e conservador. Embora você vá ter artistas sertanejos que tenham posicionamentos mais questionadores. E aqui é importante pontuar a Marília Mendonça, que é uma artista que revê seus pontos de vista. Houve um episódios de ‘cancelamento’ [na gíria das redes, cancelamento é quando alguém é silenciado nas redes, perdendo seguidores por causa de certos posicionamentos e atitudes] dela nas redes por causa de uma piada com pessoas trans e ela reviu o ponto de vista dela. Vamos ter figuras que vão tentar sair um pouco desse horizonte.
IHU On-Line – Em regimes totalitários, ou mesmo nessas atuais vertentes de extrema-direita, há sempre um afã de pautar e dirigir manifestações culturais de forma que alimente e potencialize seus ideais. Nesse sentido, a cultura pop pode ser encara como um front de resistência?
Thiago Soares – Se pensarmos no fascismo e no nazismo na Itália e na Alemanha, que foram os modelos de regimes totalitários que temos conhecimento, veremos que houve muita proximidade com a cultura. Costume sempre citar a Leni Riefenstahl, grande cineasta alemã que filmava as convenções do partido nazista e fazia verdadeiras obras de grande impacto cultural e de extrema beleza.
A cultura nem sempre esteve à parte dos regimes mais autoritários e gosto de citar, por exemplo, a intensa aproximação da indústria de Hollywood com os lobista do governo Reagan. Não foi um governo totalitário, mas foi de muitas ações militares em ambientes como o Oriente Médio, América Latina e vai haver esse aproximação de Hollywood com esses ideias militaristas. Não é à toa que surgem filmes como Top Gun, com Tom Cruise e Kelly Mcgillis, lançado em 1986, vai ser quase um portfólio do governo militar e do militarismo americano que queria que as pessoas se alistassem. Há muitos estudos mostrando como Top Gun incentivou o alistamento militar nos EUA, para que houvesse todo aquele sistema de invasões e de ocupações em outros ambientes.
O que me parece acontecer agora é que esse campo da cultura esteja mais difuso pelos próprios modos de produção, a descentralização dos modos de produção, a popularização das câmeras, tudo isso está fazendo com que a gente tenha um novo modelo de produção que talvez coloque o Estado um pouco alheio, embora você ainda tenha muitos editais públicos de produções culturais. Esse modelo de ampla descentralização que vivemos agora, de produção de conteúdos muito diversos, faz com que entendamos esses posicionamentos políticos muito difusos e que inclusive questionam o próprio papel do Estado.
Até creio que o próprio sistema global faz com que isso aconteça porque recentemente na época da campanha eleitoral nos Estados Unidos tivemos uma articulação de fãs de K-pop para o esvaziamento de um comício de Donald Trump. Então, já estamos vendo que articulações globais fazem com que certas ações políticas sejam esvaziadas em função de uma discordância de determinados grupos políticos desses fãs com relação a essas pautas do presidente Donald Trump.
Aqui no Brasil, temos vários artistas se articulando contra pautas do governo Bolsonaro, tivemos muitas articulação com relação a Cinemateca Brasileira. A cultura pop é um terreno fértil de mobilizações e articulações que fazem com que a dependência do sistema, dependendo do momento político, possam ser mais próximas ou mais distantes, mais questionadoras ou mais apaziguadoras.