Por: Patricia Fachin | 17 Setembro 2018
“A chave do sucesso político reside no sucesso econômico e o sucesso econômico vem por medidas muito simples”, defende o economista Amir Khair na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line. Entre as providências que poderiam ser tomadas imediatamente pelo próximo presidente, Khair sugere a retirada do governo e dos bancos públicos do cartel do sistema financeiro. “Tanto retirar o governo do cartel, que é o primeiro passo importante para tirar o ‘freio do crédito’, que é a mola mestra do crescimento econômico e do consumo, quanto ter uma gestão econômica competente de receitas e despesas públicas, economizaria uma barbaridade de recursos”, assegura. Na avaliação dele, essas propostas podem ser implementadas “com facilidade” pelo futuro presidente, “porque nenhuma delas depende do Congresso”.
O economista argumenta ainda que os novos governos precisam de “gestão” e não de “reformas”. “Gestão significa saber trabalhar tanto as receitas quanto as despesas públicas, e deixar o mercado reagir tirando o ‘freio do consumo’”, explica. Acerca do gasto fiscal e do equilíbrio das contas públicas, Khair pontua que “a discussão séria, correta e competente sobre a questão fiscal passa por estes dois vetores principais: retomar a arrecadação através do crescimento econômico e baixar a conta de juros que hoje responde por 82% do déficit público”.
Ex-secretário municipal de Finanças na gestão da prefeita Luiza Erundina na capital paulista entre 1989 e 1992, Khair também comenta o quadro de déficit fiscal dos estados brasileiros e frisa que a situação dificilmente será resolvida com uma reforma tributária, porque os estados não querem alterar a carga do ICMS, que é responsável por 80% do que arrecadam. “O que é fundamental nos estados é olhar com muito cuidado a questão previdenciária, porque os estados não fizeram a reforma da previdência”, adverte. Segundo ele, a situação a ser enfrentada pelos estados é “delicada”, mas eles “terão que ter um controle rígido nas suas despesas de pessoal, que extrapolaram os limites. Os estados precisam tomar cuidado e olhar se os salários dos servidores estão compatíveis ou não com o mercado e ajustá-los para isso. Não é possível fazer reajuste de salário para aquelas categorias que ganham muito acima do mercado. Isso precisa ficar claro em uma discussão ampla com a sociedade, porque quem paga o salário dos servidores é a sociedade e não o governador”.
Amir Khair também comenta a conjuntura eleitoral e os resultados da última pesquisa Datafolha sobre as intenções de voto dos candidatos à presidência. Segundo ele, a liderança de Bolsonaro nas pesquisas é explicada pelo voto antipetista. “Bolsonaro tem a marca do antipetismo, do antilulismo, e no Brasil se tem uma divisão muito clara de quem apoia o PT e Lula e de quem não apoia. Bolsonaro passou a encarnar esse anti-Lula, anti-PT”, avalia. Uma possível disputa no segundo turno, comenta, “vai depender de como o eleitorado vai descarregar os votos naquele que terá mais condições e for para o segundo turno”. Os candidatos que têm mais chances de disputar um eventual segundo turno com Bolsonaro, cogita, “são Ciro e Haddad — que ainda vai subir nas pesquisas”.
Para ele, o grande desafio do próximo presidente será “devolver à sociedade um sistema educacional que retire o Brasil dessa situação lamentável que ele vive hoje, na qual os alunos brasileiros são muito mal avaliados no ensino e nos exames internacionais”, e ampliar os recursos orçamentários destinados ao Sistema Único de Saúde – SUS.
Amir Khair | Foto: Crise e oportunidade
Amir Khair é economista e mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getulio Vargas – FGV. É consultor na área fiscal, orçamentaria e tributária.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como o senhor está avaliando o processo eleitoral deste ano? Que aspectos têm lhe chamado a atenção em relação a outras eleições?
Amir Khair — O que tem de diferente neste ano é o fato de o ex-presidente Lula não poder disputar por estar preso e impedido pela Lei da Ficha Limpa. Isso desloca um contingente bastante expressivo do eleitorado que gostaria de votar nele e não poderá votar. Assim, vamos ter uma eleição na qual o principal candidato, que estava nas pesquisas em melhor situação, com praticamente o dobro do segundo colocado, não poderá participar.
Outra questão importante é que o segundo colocado está se distanciando dos demais candidatos e essa é uma situação que preocupa muito aqueles que não querem essa pessoa como presidente. Provavelmente teremos uma eleição na qual a maioria é contra aquele que vai ganhar, o que já enfraquece o próximo presidente perante o Congresso Nacional e a própria opinião pública. Aí, ou ele obtém sucesso com certa rapidez na economia ou então será um problema sério para todos nós que teremos que aguentar uma situação que já está difícil e tende a piorar.
IHU On-Line — A partir das pesquisas, o senhor cogita a possibilidade de Bolsonaro vencer as eleições ainda no primeiro turno?
Amir Khair — Acredito que não. Isto é o que os seguidores dele querem: não o expor a uma disputa de segundo turno, porque aí é outra eleição, onde cada candidato tem o mesmo tempo para se colocar diante do eleitorado nos debates e na própria mídia. Então, teremos uma segunda eleição e, nesse caso, em geral vence aquele que é menos rejeitado; ou seja, não se tem, necessariamente, um apoio forte àquele que vai ganhar, mas se tem uma situação em que o eleitor diz que não quer votar no candidato tal e, consequentemente, vota no candidato que considera menos pior. Então não existe uma escolha pelo melhor — normalmente é isso o que acaba prevalecendo. No cenário de hoje, como as pesquisas estão revelando, Bolsonaro perderia para todos os candidatos, à exceção de Haddad, em que há um empate técnico. É essa situação que está, pelo menos por enquanto, sendo revelada nas várias pesquisas de intenção de voto.
IHU On-Line — Como o senhor avalia os dados da pesquisa Datafolha divulgada no início da semana passada, em que Bolsonaro está com 24% das intenções de voto, Ciro com 13%, Marina com 11%, Alckmin com 10% e Haddad com 9%? Com o crescimento de Ciro nos últimos dias, ele poderia ser um candidato a ir para o segundo turno com Bolsonaro? Seguindo sua linha de raciocínio, ele poderia ser eleito no segundo turno?
Amir Khair — Essa possibilidade é real, mas vai depender de como o eleitorado vai descarregar os votos naquele que terá mais condições e for para o segundo turno. Os candidatos que têm mais condições são Ciro e Haddad — que ainda vai subir nas pesquisas — e, eventualmente, o Alckmin. Mas Alckmin, pela própria pesquisa Datafolha, praticamente não saiu do lugar depois de alguma exposição na mídia, considerando que ele tem a maior parte do horário eleitoral. Por isso, não acredito que Alckmin decole; a maior probabilidade é uma disputa entre Ciro e Haddad, uma vez que Marina já começou a cair e a tendência é cair mais. Caso Ciro ganhe e vá para o segundo turno, tenho a avaliação de que ele ganha de Bolsonaro. Seria uma pessoa interessante, que tem boas propostas para o desenvolvimento do país e, consequentemente, seria uma política bem diferente da que está sendo praticada pelo governo Temer.
IHU On-Line — O que explica o fenômeno Bolsonaro depois de quase quatro gestões petistas à frente da Presidência da República?
Amir Khair — Bolsonaro tem a marca do antipetismo, do antilulismo, e no Brasil se tem uma divisão muito clara de quem apoia o PT e Lula e de quem não apoia. Bolsonaro passou a encarnar esse anti-Lula, anti-PT e, com isso, as propostas dele são contrárias às defendidas pelo PT e ditadas por Lula também. Ele não é uma pessoa que vejo com um brilho próprio.
Ficou revelado em uma das pesquisas que o eleitor de Bolsonaro vai mais pelo lado da Ficha Limpa, porque “ele não é corrupto” — dizem os que o apoiam —, e o traço da corrupção passou a ser algo muito importante nestas eleições. Bolsonaro não é apoiado pela questão da segurança, que interessa a uma fatia do eleitorado, mas muito mais pela questão da corrupção. Acho estranho que um homem com o passado dele, com várias coisas já reveladas, seja considerado como “ficha limpa”. Por exemplo, tem o episódio do cheque de 200 mil reais da Friboi que foi entregue a ele pessoalmente. Ele, percebendo que poderia ter problemas com isso, entregou o cheque ao partido e pediu um cheque de igual valor. Isso foi feito e se chama lavagem de dinheiro, e lavagem de dinheiro é corrupção. Essa é uma das situações que ficou clara e está gravada em vídeo, e em alguns debates isso aparece. Portanto, não o vejo como símbolo de ética da política, que é o que a sociedade realmente quer. Mas os seguidores de Bolsonaro acreditam que ele é ético. Do mesmo jeito que os seguidores de Lula acreditam que ele é ético, não roubou e não fez nada de errado. Mas o senso comum da sociedade, aos poucos, vai começando a pôr as coisas nos devidos lugares do ponto de vista da avaliação.
IHU On-Line — No começo da nossa conversa o senhor afirmou que a eleição de Bolsonaro seria preocupante. Quais são as razões que justificam essa posição?
Amir Khair — Em primeiro lugar, porque ele é um homem totalmente despreparado. Quando perguntam coisas que são elementares em matéria de conhecimento de economia, de política e da parte social, ele demonstra um desconhecimento assustador. Além disso, ele escolheu como futuro Ministro da Fazenda, caso seja eleito, o Paulo Guedes, que é um economista ligado ao mercado financeiro, e eu atribuo o atraso que o país vive exatamente ao mercado financeiro. Isso porque o mercado financeiro age pelos bancos num sistema de cartel — claramente classificado como um sistema de cartel —, em que explora toda a sociedade, especialmente os consumidores, que são obrigados a usar cartão de crédito e cheque especial com taxa de 300% ou 400% ao ano. Ou seja, os bancos têm o roubo legalizado no Brasil e o sistema financeiro é quem comanda esse processo.
Ora, se a pessoa escolhida para ser ministro da Fazenda é um homem extremamente ligado ao sistema financeiro, continuaremos com uma política semelhante a essa do governo Temer, cujos resultados são desastrosos para o país. Então, não vejo com bons olhos não só o Bolsonaro, que é uma pessoa que se rendeu a esse liberalismo atrasado, mas também o Alckmin e, de certa maneira, um pouco também a Marina. O que escapa disso são os candidatos Ciro Gomes, Fernando Haddad e Guilherme Boulos, que têm propostas de mudança desta política econômica que mostrou que não deu certo.
IHU On-Line — O que é preciso para romper com esse sistema de cartel dos bancos?
Amir Khair — É preciso tirar o governo do cartel. Este cartel é formado por cinco bancos: Itaú, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica. Banco do Brasil e Caixa praticam as mesmas taxas de juros absurdas, de agiota, contra a sociedade. Deixar o governo integrar o cartel é o que mais agride a sociedade. Então, o candidato que tirar o Banco do Brasil e a Caixa do cartel — e isso não depende do Congresso, mas apenas de uma decisão política do presidente — vai contribuir para tirar o pé do freio do consumo, porque essas taxas de juros multiplicam por três o preço à vista, ou seja, são a maior barreira ao consumo no Brasil. É por isso que o Brasil patina há muito tempo, podendo crescer de 4% a 5% ao ano, mas está há três ou quatro anos indo ladeira abaixo ou estagnado.
O Banco do Brasil e a Caixa, que também praticam taxas de juros de cheque especial e cartão de crédito de 300% ao ano, não devem continuar nesse cartel. A proposta que vejo é baixar essas taxas de juros rapidamente para um nível de 40%, 50% ao ano, que seriam muito lucrativas aos bancos e reduziriam a inadimplência, pois 64 milhões de pessoas estão negativadas no Serasa e deixaram de poder comprar a prazo, quando poderiam estar integrando o mercado de consumo. Como o consumo é o “carro-mestre” do crescimento econômico porque representa 2/3 do Produto Interno Bruto - PIB, quem souber trabalhar o consumo atuando sobre o crédito, mostrando que o crédito mais barato é o que interessa à população, fará um bom governo. O Banco do Brasil e a Caixa, ao saírem do cartel, podem fazer uma propaganda forte nos meios de comunicação para atrair clientes e com isso reduzir a inadimplência desses clientes; o que causa a inadimplência são os 300%, e não 40%, 50%.
Portanto, esse é um ponto de corte no futuro do Brasil, pois não tem sentido o país praticar essas taxas, enquanto na América Latina o juro do cartão de crédito é, em média, de 20% ao ano. Essa é a situação anômala que qualquer candidato que tiver como seu futuro “guru” uma pessoa ligada ao mercado financeiro, só vai estragar ainda mais a situação do Brasil.
IHU On-Line — Algum candidato propõe tirar o governo desse cartel?
Amir Khair — Tanto Haddad quanto Ciro e Boulos dizem que vão mexer com essa questão da taxa de juros e alguns até afirmam que o Banco do Brasil e a Caixa vão sair dessa situação. Como que eles vão fazer isso, vai depender do primeiro ato de governo: se o primeiro ato for tirar o Banco do Brasil e a Caixa do cartel, veremos que essa pessoa vai obter rapidamente o apoio popular e crescer nas pesquisas, porque a população reconhecerá as vantagens de se ter um banco público que não atua de costas e contra a sociedade, mas a favor dela.
IHU On-Line — Em relação aos candidatos de esquerda e centro-esquerda, quais são as distinções das propostas dos candidatos Ciro Gomes e Haddad, que são os melhores posicionados nas pesquisas?
Amir Khair — Elas são muito parecidas no sentido do social e dão um destaque muito grande às questões da educação, da saúde e também da segurança pública, mas principalmente educação e saúde. Eles tomam muito cuidado com essa situação do congelamento de gastos do governo, porque isso só foi extensivo às áreas sociais e à Previdência, mas deixaram livres os juros. Ora, quem conhece finanças públicas sabe que 82% do déficit fiscal do Brasil é de juros e só 18% são o tal do déficit primário. Mas a mídia propaga e só fala no déficit primário, e nessa situação não surge uma solução para a questão fiscal.
Tanto Haddad quanto Ciro defendem a mudança radical dessa política e defendem que para resolver o problema fiscal é preciso crescer, ou seja, é preciso muito mais crescer do que segurar despesas. Quando se trata de segurar as despesas, cada um tem a sua proposta. Ciro pensa em fazer uma reforma da Previdência com uma situação em que uma parte é preservada e a outra, de maior ganho, teria que fazer aplicações para ter o benefício do dinheiro aplicado. Já Haddad não se comprometeu com a reforma da Previdência.
Quando alguém quer fazer a reforma da Previdência e isso não está claro para a sociedade, se ataca quem? Quem ganha até três salários mínimos, porque na previdência privada do INSS, 90% das pessoas ganham até três salários mínimos. Então, a população que já está na previdência e os que ainda vão se aposentar estão na faixa de até três salários mínimos. E quando se criam problemas para essa faixa de renda no Brasil, se agride o consumo; agredindo o consumo se agride a própria arrecadação pública e o crescimento econômico.
Os técnicos que analisam as finanças não fazem a conta de que o dinheiro que se destina à Previdência Social volta para o mercado porque as pessoas gastam todo ele em consumo e, consequentemente, geram renda, emprego e arrecadação pública. Quando consideramos esse efeito sobre arrecadação pública, percebemos que a questão da Previdência não é de déficit explosivo, mas de uma situação perfeitamente confortável do ponto de vista fiscal. E essa questão só vai ficar clara se realmente as contas da Previdência forem abertas e a discussão tiver um nível técnico muito superior a esse que, praticamente, é rasteiro e não respeita o mínimo de competência técnica de julgamento.
IHU On-Line — Quais as propostas dos demais candidatos para retomada do crescimento econômico?
Amir Khair — Eles apostam muito em privatizações, como se a privatização fosse a saída mágica para os problemas do Brasil. Ou seja, o que Fernando Henrique Cardoso fez no seu governo foi privatizar. Ele privatizou com a justificativa de que era necessário reduzir a dívida que o país tinha. Da mesma forma, Paulo Guedes, que é o guru de Bolsonaro, diz que vai privatizar e arrecadar 700 bilhões de reais. Ocorre que essas pessoas são de uma tremenda incompetência e não percebem que a dívida do Brasil não tem nada a ver com 700 bilhões de reais; ela está praticamente atingindo seis trilhões de reais. É preciso fazer um crescimento econômico forte, baixar muito mais a taxa de juros, que ainda é alta — no mundo todo ela está no nível da inflação —, e é preciso vender ativos tóxicos que prejudicam as contas públicas. Além disso, temos reservas internacionais que custam os “olhos da cara”, cerca de 300 bilhões de reais de juros todos os anos.
Fernando Henrique fez as privatizações, começou com uma dívida no país de 30% do PIB e quando saiu deixou para o Lula uma dívida de 60% do PIB, ou seja, o maior fiasco fiscal que este país já teve; isso, estranhamente, não aparece na mídia. Isto é, privatizar depende: é possível privatizar coisas que não interessam à sociedade, ao país ou simplesmente trabalhar as estatais de forma pública, de modo que elas sejam uma empresa pública, e não um cabide de empregos ou uma fonte de corrupção, como muitas estatais no Brasil são trabalhadas numa aliança entre o poder político e o poder econômico.
IHU On-Line — Na sua opinião é melhor manter as empresas estatais?
Amir Khair — Do ponto de vista do Estado, a melhor coisa a ser feita não é a privatização. Paulo Guedes foi questionado em um programa da Globo News no qual se falou que ele estava enganado ao falar em 700 bilhões. Foi mostrado que ele está completamente fora da realidade, porque atingir 400 bilhões com as privatizações já seria uma façanha. Então, não é aí que se resolve a questão fiscal. A questão fiscal é resolvida, principalmente, pela retomada do crescimento econômico, pois quando se retoma o crescimento econômico é gerada uma arrecadação forte. Não precisa aumentar impostos, porque ao retomar a atividade econômica a geração de receita pública é maravilhosa e dá conta de todo o problema fiscal ao longo de poucos anos. Além disso, tem que baixar a taxa de juros, porque não se deve trabalhar com taxa de juros acima da inflação. No resto do mundo, desde a crise de 2008, todos os países, quase sem exceção, fizeram isto: baixaram suas taxas de juros para o nível da inflação.
IHU On-Line — Considerando que a retomada do crescimento é fundamental para resolver o problema fiscal, o próximo governo precisaria realizar alguma reforma antes da retomada do crescimento econômico, ou reformas devem ser feitas depois de o país voltar a crescer?
Amir Khair — É preciso ter gestão, não reformas. Gestão significa saber trabalhar tanto as receitas quanto as despesas públicas, e deixar o mercado reagir tirando o “freio do consumo” que, como eu disse, é o crediário. Mas também temos “freio do consumo” nos impostos, porque no Brasil a carga tributária sobre o consumo é o dobro da média internacional, ou seja, é muito alta. Todos os preços no Brasil sofrem um sobrepreço de 40% em média sobre os preços sem impostos. Nossos preços ficam altos porque tributamos demais o consumo e o principal imposto sobre o consumo é o ICMS, que pertence aos estados. Esse imposto é o pior do sistema tributário, e dificilmente será possível mudá-lo, porque 80% da arrecadação dos estados depende do ICMS.
Se tiver que fazer algo de bom para o país, é saber administrar com boa gestão. Existe um espaço de economia de despesas muito grande com gestão. Fazendo uma boa gestão conseguimos ter uma economia da ordem de 20% a 30% das despesas, para evitar que dinheiro seja jogado fora. O principal dinheiro que é jogado fora, cerca de meio trilhão de reais por ano, é com os juros. No resto do mundo ninguém gasta de 7% a 8% do PIB com juros; é da ordem de 1%. Então, nós estamos rasgando dinheiro, e a discussão séria, correta e competente sobre a questão fiscal passa por estes dois vetores principais: retomar a arrecadação através do crescimento econômico e baixar a conta de juros que hoje responde por 82% do déficit público; essa é a realidade que tem que ser enfrentada.
HU On-Line — Qual a possibilidade de se fazer isso num próximo governo?
Amir Khair — Eu vejo com facilidade, porque nenhuma dessas propostas de que estou falando dependem do Congresso. Por exemplo, é possível tirar o Banco do Brasil e a Caixa do cartel. Além de não precisar de nenhuma autorização do Congresso, o presidente não se expõe a ter o Supremo Tribunal Federal pregando alguma iniciativa. Se, por exemplo, quiserem fazer uma legislação para reduzir a taxa de juros — como Haddad propôs —, será preciso rever essa situação de fazer uma taxação sobre o spread bancário. Mas isso dependeria do Congresso e tudo o que depende do Congresso eu não vejo com bons olhos, porque os representantes do povo são muito mais representantes de si mesmos e de interesses de grandes grupos econômicos do que da própria sociedade.
Então, tanto retirar o governo do cartel, que é o primeiro passo importante para tirar o “freio do crédito”, que é a mola mestra do crescimento econômico e do consumo, quanto ter uma gestão econômica competente de receitas e despesas públicas, economizaria uma barbaridade de recursos. Para termos uma ideia, a Previdência Social tem uma inadimplência e uma sonegação que supera 30% da arrecadação dela. Logo, tem um espaço de atuação muito importante para melhorar a arrecadação da Previdência, combatendo as fraudes e os desvios que existem e tendo um mercado de trabalho mais aquecido, que é o que está faltando no Brasil.
Existem 13 milhões de pessoas desempregadas e 14 milhões em desalento, ou seja, pessoas que já desistiram de procurar emprego ou vivem de bicos eventuais. Ou seja, 27 milhões estão afastados do mercado de trabalho e 64 milhões de pessoas estão no Serasa. Portanto, o país não cresce, não vai para a frente. Quando falo dessas propostas que não dependem do Congresso, é porque elas podem ser feitas de forma imediata e com reflexo muito rápido na sociedade. Com esse reflexo rápido, o presidente eleito ganha força como governo perante a opinião pública e não fica tão dependente do Congresso. Nessa situação o Congresso passa a querer apoiar o presidente porque ele tem sucesso, porque está fazendo aquilo que faz o país crescer.
A chave do sucesso político reside no sucesso econômico e o sucesso econômico vem por medidas muito simples e que não dependem de nenhuma legislação nova para tocar a economia. A gestão é fundamental — e é isso que a sociedade tem que cobrar dos governos: gestão competente, sabendo usar o dinheiro público como se usasse o próprio dinheiro; isso é o mais importante em um governante.
HU On-Line — Qual é o papel do Estado para recuperar a economia? Acerca dessa temática, alguns economistas avaliam que o Estado precisa ser o principal motor da economia, enquanto outros argumentam que isso deve ser feito pelo próprio mercado. O que seria melhor para o Brasil nesse momento em que é preciso recuperar a economia?
Amir Khair — Cada um exercendo corretamente aquilo que é atribuído pela Constituição. O mercado é fundamental porque é nele que se gera riqueza e o Estado é fundamental quando distribui melhor a riqueza, que é muito concentrada no Brasil, e ele pode ajudar muito nisso. Cito, por exemplo, a questão do salário mínimo. Os conservadores e o mercado financeiro são contra o salário mínimo. Nos jornais todos dizem que o salário mínimo irá afundar a Previdência e é exatamente o contrário, porque o salário mínimo gera muita arrecadação para a Previdência e para os governos federal, estaduais e o municipais.
Portanto, o que precisamos é de um Estado muito eficiente, um Estado que procure compensar a má distribuição de renda, fazendo programas de distribuição de renda mais forte dos que os que existem hoje. O Bolsa Família, que é o principal programa de renda do governo, consome apenas 28 bilhões de reais por ano e isso é cerca de 20 vezes inferior à despesa com juros. Existe um espaço enorme a ser percorrido pelo Estado na direção da sociedade e não de costas para ela. Quando o Estado está de costas para a sociedade, as reformas que ele defende, que quer implantar, são reformas que retiram direitos. Por exemplo, a reforma trabalhista retira direitos e precariza a mão de obra, com isso há uma queda da massa salarial e, consequentemente, há menos consumo, menos faturamento das empresas, menos lucros e, por fim, menos arrecadação pública. Ou seja, toda vez que se agride o dinheiro que se destina para a população da classe média para baixo, se cria um problema do mesmo porte para quem tem empresas e precisa do setor público para arrecadar e prestar serviços.
IHU On-Line — Hoje praticamente todos os estados da federação enfrentam uma situação de déficit fiscal. Como o senhor avalia esse cenário e que medidas poderiam contribuir para resolver essa situação dos estados a partir do próximo ano? Uma reforma tributária contribuiria para resolver essa situação que se arrasta há muitos anos?
Amir Khair — Não vejo nenhuma possibilidade de passar no Congresso qualquer reforma tributária. Isso vem sendo tentado desde a Constituição de 1988 e até hoje não foi aprovada, e não foi por falta de boas propostas. Toda vez que entra um presidente da República, ele reúne uma equipe e faz uma proposta de reforma tributária, manda essa proposta para o Congresso e três meses depois ela é engavetada e morre; isso é uma constante. Por quê? Porque a principal mudança de um sistema tributário reside nas propostas de mexer no ICMS. Ora, como o ICMS responde por 80% das arrecadações dos estados, qualquer mexida gera no estado uma preocupação muito grande. Então, os governadores chamam as suas bancadas no estado e propõem mudanças nas propostas apresentadas pelo governo federal. Todos os governadores fazem isso por meio dos seus secretários de Fazenda e pelo Conselho Nacional de Política Fazendária - Confaz, que é o órgão que congrega os secretários de Fazenda, e nunca chegam a um acordo; se chegarem a um acordo, coloquem as mãos no bolso, porque vai aumentar — e muito — a carga tributária. Esse é um risco que o país sempre corre.
Não vejo a solução pelo lado da reforma tributária, que deveria, sim, pensar e propor coisas que aliviassem o excesso de despesas sobre o consumo, porque faz com que quem ganha até dois salários mínimos pague até 50% do que ganha em impostos, e quem ganha acima de 30 salários mínimos paga 29% do seu ganho em impostos. Essa é uma característica básica do sistema tributário brasileiro, que é altamente regressivo. Nenhuma proposta que tenho acompanhado mexe nisso; só mexe na questão do ICMS, mas não para reduzir a carga.
O que é fundamental nos estados é olhar com muito cuidado a questão previdenciária, porque os estados não fizeram a reforma da Previdência, ao contrário do que foi feito pelo Lula, em 2003, no governo federal. Mas os estados não fizeram, na sua maioria, nenhuma reforma da Previdência, assim estão enfrentando um problema grave. Do meu ponto de vista, essa discussão tem que ser muito clara, muito transparente, mas provavelmente será necessário que os servidores públicos dos estados tenham uma contribuição maior do seu ganho para a Previdência para não quebrar a Previdência dos estados. Sei que é uma questão delicada e, portanto, precisa de uma discussão mais intensa, porque alguma solução tem que ser dada; essa situação não pode ser “empurrada com a barriga” e não será o governo federal, que já tem déficit elevado nas suas contas, que conseguirá salvar os estados. Assim, os estados terão que ter um controle rígido nas suas despesas de pessoal, que extrapolaram os limites; eles precisam tomar cuidado e olhar se os salários dos servidores estão compatíveis ou não com o mercado e ajustá-los para isso. Não é possível fazer reajuste de salário para aquelas categorias que ganham muito acima do mercado. Isso precisa ficar claro em uma discussão ampla com a sociedade, porque quem paga o salário dos servidores é a sociedade e não o governador.
Na medida em que tivermos governadores e prefeitos honestos, que tratem o dinheiro público com muito cuidado, atenção e ética, aí sim economizaremos muito. Essa será uma das maneiras que teremos de atenuar o problema fiscal nos estados. Os estados na sua maioria pagam 13% das arrecadações todo mês ao governo federal para amortizar a dívida de renegociação que foi feita em 1997, onde o governo federal assumiu as dívidas em títulos dos estados — hoje os estados não têm dívidas em títulos, mas devem ao governo federal, que foi quem assumiu essa dívida. Esses 13% podem ser negociados na medida em que o governo federal reduzir seu déficit com juros. Eu vejo algumas possibilidades de mexer na questão fiscal dos estados, mas isso passa por uma discussão mais ampla na sociedade.
IHU On-Line — Até que essa discussão seja realizada, que medidas podem ser tomadas no curto prazo, já que os governadores alegam que precisam cortar gastos, mas falta dinheiro para as questões sociais?
Amir Khair — Não vejo nenhuma medida de maior impacto que não seja a gestão. Toda vez que o governante chega, ele toma uma série de medidas para melhorar a gestão. Às vezes encontra a máquina pública inchada de despesas que não precisariam estar lá. Por exemplo, é muito comum ter uma frota de veículos enorme, com um monte de pessoas trabalhando, com um custo enorme de manutenção. O que eles fazem? Normalmente, terceirizam o serviço. A possibilidade de terceirizar alguns serviços que custam muito é uma forma direta de reduzir custos. Existem inúmeros exemplos de iniciativas exitosas na administração pública que precisam ser adotadas de forma geral. Isto é, tem um espaço de gestão fantástica para ser trabalhado, o que deveria ser a questão imediata.
Por outro lado, para outros problemas mais estruturais, como a dívida de despesa de pessoal, que ainda está em um nível muito elevado, recomenda-se cautela, como não dar aumento salarial para categorias que estão com salários muito acima do mercado. Isso teria que ser negociado, mas dentro de um ambiente de muita transparência e de muita participação da sociedade. Em geral os governantes se fecham para a sociedade e não fornecem as informações. Com isso, a sociedade exige saúde, educação e segurança com toda razão, mas é preciso ver o limite do estado em termos de condições para prestar adequadamente esse serviço. Este é um diálogo importante que deve ser feito, porque não se tranca um governo entre quatro paredes.
IHU On-Line — O senhor declarou recentemente que o imposto sobre grandes fortunas renderia 100 bilhões por ano. Qual é o peso desse valor, considerando tanto a receita do Estado quanto seu gasto?
Amir Khair — Seria positiva na medida em que toca a questão tributária: reduzir o ICMS, por exemplo, para o mesmo montante do imposto sobre grandes fortunas ou, supondo que se destine uma parte ao governo federal, uma parte ao estadual e outra ao municipal, reduz-se impostos sobre o consumo. Em vez de ter 40% de sobrepreço em tudo aquilo que se compra, passaria a ter 30%, o que melhora toda a atividade econômica. O imposto sobre grandes fortunas foi feito para isto: para reduzir a alta carga tributária sobre o consumo, permitindo que a população não seja tão onerada como é hoje. Mas isso dificilmente passará no Congresso, porque nossos congressistas, no geral, são pessoas muitíssimo ricas e não legislam naquilo que irá prejudicar seus ganhos ou suas riquezas.
IHU On-Line — Além do desafio do crescimento econômico, quais são os demais desafios do próximo presidente da República?
Amir Khair — O eixo central é devolver à sociedade um sistema educacional que retire o Brasil dessa situação lamentável que ele vive hoje, na qual os alunos brasileiros são muito mal avaliados no ensino e nos exames internacionais; esse é um dos grandes desafios. O outro desafio é a questão da saúde, uma questão fundamental que o Estado está devendo à sociedade. É preciso melhorar muito nos três níveis de ataque — federal, estadual e municipal — através do Sistema Único de Saúde - SUS, que deve ter mais recursos orçamentários para que se consiga melhorar a atenção à saúde, e, principalmente, na área ligada à saúde, é preciso melhorar o saneamento básico, o qual é importantíssimo para evitar problemas de saúde, especialmente em populações que vivem em locais onde têm esgoto a céu aberto ou outras condições que pioram a própria situação da saúde da população. A principal questão é devolver à sociedade, sob a forma de educação, saúde e segurança pública, aquilo que ela mais deseja, e tocar a economia para a frente, retirando o Banco do Brasil e a Caixa do cartel dos bancos que agridem a sociedade. Esse seria um primeiro passo para a retomada do crescimento econômico.
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O fim do cartel financeiro, a redução da taxa de juros e o equilíbrio das contas públicas. Desafios do próximo presidente. Entrevista especial com Amir Khair - Instituto Humanitas Unisinos - IHU