14 Mai 2010
“Com exceção das denominações que priorizam o evangelismo de massas e realizam cultos em grandes catedrais (...), as igrejas pentecostais tendem a formar comunidades religiosas relativamente estáveis e pequenas. Isto é, elas são compostas por congregações e pequenos templos em que todos se conhecem, residem no mesmo bairro e compartilham coletivamente crenças, saberes, práticas, emoções, valores, os mesmos modos e estilos de vida, moralidade e posição de classe. (...) São laços gerados por meio do contato pessoal, de relações face a face, estabelecidas em frequentes e sistemáticas reuniões coletivas realizadas semanalmente, ano após ano. Eles tendem, assim, a formar relações fraternais de amizade, de confiança mútua e também de solidariedade com os ‘irmãos necessitados’”. A definição é do sociólogo Ricardo Mariano. Na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, ele entende que “depois de um século de presença no país, o pentecostalismo prossegue crescendo majoritariamente na base da pirâmide social, isto é, na pobreza”. Na sua visão, o baixo prestígio social do pentecostalismo deriva “de seu relativo sectarismo e de sua crença na posse exclusiva do monopólio dos bens de salvação ou da verdade divina. Modos de ser e de pensar que se chocam com traços básicos da modernidade”.
Ricardo Mariano é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, onde também realizou o mestrado e doutorado em Sociologia. Hoje, é professor na PUCRS. Entre suas obras, citamos Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (São Paulo: Edições Loyola, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais as principais transformações que o pentecostalismo promoveu no cenário religioso e social brasileiro?
Ricardo Mariano - Ao longo dos últimos cem anos, a expansão pentecostal no país contribuiu para transformar o campo religioso brasileiro, para consolidar o pluralismo religioso e para constituir um mercado religioso competitivo no país. O avanço pentecostal no Brasil contribuiu para intensificar o declínio numérico da Igreja Católica e da Umbanda e para “pentecostalizar” parte do protestantismo histórico e do próprio catolicismo. O chamado “avanço das seitas” pentecostais, nos termos do papa João Paulo II, e a formação do pluralismo religioso levaram a religião hegemônica a rever sua prédica e suas estratégias institucionais e a reavaliar sua relação com as demais religiões presentes em solo nacional, em detrimento do ecumenismo. O crescente evangelismo eletrônico pentecostal tem tido significativo impacto no mercado de comunicação de massa, sobretudo em função das iniciativas empresariais nessa área por parte da Igreja Universal e, em menor grau, da Internacional da Graça de Deus e da Renascer em Cristo, entre outras. Sua atuação tem se ampliado igualmente nos mercados editorial e fonográfico. O ativismo pentecostal na política partidária, por sua vez, tornou-se um elemento constitutivo da democracia brasileira nas últimas três décadas. A cada eleição, seus líderes pastorais, com raras exceções, procuram transformar seus rebanhos religiosos em rebanhos eleitorais, visando ampliar seu poder político, defender valores cristãos tradicionalistas e seus interesses institucionais na esfera pública stricto sensu. Tratam, portanto, de instrumentalizar a política partidária, justificando o ativismo político como recurso para defender suas bandeiras religiosas e corporativas. Por consequência, a cada eleição, esses religiosos se veem mais e mais instrumentalizados eleitoralmente por partidos e candidatos de todas as colorações ideológicas. Suas miríades de templos e pequenas congregações passaram a integrar o cenário urbano das cidades brasileiras, sobretudo de suas periferias.
IHU On-Line - Quais os maiores limites e desafios do pentecostalismo hoje, cem anos após seu surgimento no país?
Ricardo Mariano - Depois de um século de presença no país, o pentecostalismo prossegue crescendo majoritariamente na base da pirâmide social, isto é, na pobreza. Embora contenha um contingente de classe média, recruta a maioria de seus adeptos entre os pobres das periferias urbanas. Um de seus principais desafios, portanto, consiste em tornar-se atraente para as classes médias e mais escolarizadas. Nesse terreno, porém, enfrenta uma série de adversários religiosos mais bem-sucedidos, uma vez que as preferências religiosas das classes médias recaem sobre o catolicismo, o kardecismo, o protestantismo histórico, o esoterismo, entre outras. Sua estreita base social circunscrita às classes populares faz com que o pentecostalismo, não obstante sua vertiginosa expansão numérica e seu crescente poder político e midiático, mantenha-se numa posição claramente subordinada no campo religioso brasileiro. Seu baixo prestígio social deriva igualmente de seu relativo sectarismo e de sua crença na posse exclusiva do monopólio dos bens de salvação ou da verdade divina. Modos de ser e de pensar que se chocam com traços básicos da modernidade.
IHU On-Line - Qual é a igreja que melhor representa hoje a proposta pentecostal?
Ricardo Mariano - O pentecostalismo é um movimento religioso muito diversificado internamente, marcado por grande pluralidade teológica, litúrgica, estética, organizacional (modelos de governo eclesiástico distintos) e comportamental. Pode-se afirmar que há, na verdade, múltiplos pentecostalismos. Portanto, não há uma igreja representativa de seu conjunto. Por outro lado, em termos de sua amplitude demográfica, a Assembleia de Deus ocupa uma posição privilegiada, uma vez que concentrava 47,5% dos pentecostais brasileiros em 2000, segundo os dados do Censo Demográfico do IBGE. Mas, dividida em duas grandes convenções nacionais, a Assembleia de Deus apresenta grande variação interna nos planos doutrinário, eclesiástico, dos usos e costumes, da relação com os meios de comunicação de massa e com a política partidária. Isso se deve, em parte, à sua ampla distribuição geográfica pelo país, à sua composição em diferentes ministérios dotados de relativa autonomia e às idiossincrasias de suas lideranças pastorais locais. Em suma, a própria Assembleia de Deus contém enorme diversidade interna, variando dos que se mantêm apegados aos velhos usos e costumes de santidade pentecostal e se opõem à instrumentalização política da igreja e dos fiéis aos novos defensores da Teologia da Prosperidade, e daí por diante.
IHU On-Line - Como a Igreja Universal do Reino de Deus se posiciona em relação ao pentecostalismo?
Ricardo Mariano - Publicamente, os dirigentes da Universal classificam sua igreja como uma denominação neopentecostal e enfatizam que ela prega a Teologia da Prosperidade. Reconhecem, portanto, que a Universal faz parte de uma determinada vertente pentecostal no país. De modo geral, eles mantêm uma relação estritamente concorrencial com as demais igrejas pentecostais. E criticam abertamente as concorrentes por pregarem um “Evangelho água com açúcar”. O principal episódio de aproximação deliberada por parte da cúpula da Universal com igrejas e líderes pentecostais ocorreu imediatamente após a prisão de Edir Macedo, em 1992. Temendo punições maiores por parte da Justiça, a liderança da Universal e da Rede Record abriu espaço da programação de sua tevê para os pastores e televangelistas assembleianos Silas Malafaia e Jabes de Alencar. E, em 1993, participou da criação do Conselho Nacional de Pastores do Brasil (CNPB), comandado pelo bispo Manoel Ferreira, líder da Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil, que também ganhou um programa de tevê na Record. Tal aproximação foi curta e, de lado a lado, fortemente instrumental. Desde então, da parte da Igreja Universal tende a prevalecer uma relação de caráter concorrencial com as outras igrejas evangélicas.
IHU On-Line - Como a realidade social brasileira contribui para o Brasil ter se tornado o maior país pentecostal do mundo?
Ricardo Mariano - Vários fenômenos têm contribuído, em maior ou menor medida, para o crescimento pentecostal desde meados do século passado. No plano jurídico, a separação entre Estado e igreja e a garantia de liberdade religiosa permitiram a inserção e criação de novos grupos religiosos no país, bem como sua expansão e legitimação. O que, por sua vez, possibilitou a formação e consolidação do pluralismo e de um mercado religioso. Nos planos social e econômico, a enorme desigualdade social, a explosão da violência e da criminalidade urbana, as altas taxas de pobreza, a elevada proporção de lares monoparentais, chefiados por mulheres pobres, a precariedade da situação de grande parte dos trabalhadores no mercado de trabalho, sobretudo no informal, favorecem uma religião que tende a direcionar sua missão de salvação aos sofredores e desprivilegiados. Não é à toa que o lema proselitista da Igreja Universal é “Pare de sofrer: Nós temos a solução”. Nos planos cultural e religioso, a disseminada religiosidade popular, marcada por crenças e práticas de cunho mágico e taumatúrgico de matriz cristã, o elevado contingente de católicos não praticantes e a relativa fragilidade institucional da Igreja Católica, caracterizada pelo baixo número de vocações sacerdotais e de padres, facilitam o trânsito religioso e o trabalho evangelístico dos pentecostais. E, no campo político, os pentecostais têm sido demandados a participar da política partidária e influir na esfera pública por candidatos, partidos e governantes.
IHU On-Line - Como definir as redes de sociabilidade tecidas pelas igrejas pentecostais?
Ricardo Mariano - Com exceção das denominações que priorizam o evangelismo de massas e realizam cultos em grandes catedrais, que costumeiramente contam com a presença de clientelas flutuantes, as igrejas pentecostais tendem a formar comunidades religiosas relativamente estáveis e pequenas. Isto é, elas são compostas por congregações e pequenos templos em que todos se conhecem, residem no mesmo bairro e compartilham coletivamente crenças, saberes, práticas, emoções, valores, os mesmos modos e estilos de vida, moralidade e posição de classe. Portanto, não se tratam de redes de sociabilidade virtuais (que, aliás, estão crescendo nesse meio religioso com a expansão de redes religiosas e de relacionamento na Internet) nem compostas por laços impessoais, típicos das organizações burocráticas. São laços gerados por meio do contato pessoal, de relações face a face, estabelecidas em frequentes e sistemáticas reuniões coletivas, realizadas semanalmente ano após ano. Eles tendem, assim, a formar relações fraternais de amizade, de confiança mútua e também de solidariedade com os “irmãos necessitados”. Isso não significa a ausência de conflitos interpessoais, disputas, fofocas. Pelo contrário, a intimidade também gera suas tiranias e problemas, que podem ser desencadeados igualmente por decisões arbitrárias de lideranças autoritárias.
IHU On-Line - Qual a contribuição do pentecostalismo para o diálogo entre as religiões?
Ricardo Mariano - Até o momento, pode-se afirmar que as igrejas pentecostais brasileiras não prestaram serviços relevantes para ampliar o diálogo religioso para além das fronteiras de seu movimento religioso. De modo geral, o propósito sectário de salvar os “ímpios” ou de evangelizar as pessoas de outras religiões em nada contribui para o diálogo inter-religioso. Nas últimas décadas, a demonização pentecostal dos cultos afro-brasileiros tem redundado em diversas manifestações de intolerância religiosa pelo país afora. Além disso, seu proselitismo provavelmente é um dos responsáveis pela queda numérica da Umbanda desde a década de 80, o que contribui, em alguma medida, para a diminuição da diversidade religiosa no país.
IHU On-Line - Quais os rumos que as igrejas pentecostais tendem a tomar nos próximos anos?
Ricardo Mariano - Sem incorrer em futurologia, pode-se afirmar que elas tendem a se acomodar crescentemente ao “mundo” que, retoricamente, tanto combatem, mas mantendo sempre certa defasagem, por conta de suas inclinações sectárias ancoradas no velho literalismo bíblico e numa moralidade sexual cristã de caráter tradicionalista. Tal adaptação, aliás, vem ocorrendo de forma acelerada desde os anos 50. Evidências disso existem aos montes, tais como a adoção proselitista dos meios de comunicação de massa, que antes eram considerados demoníacos, o paulatino abandono dos usos e costumes de santidade (antes biblicamente fundamentados e, por isso, sagrados), a incorporação dos ritmos e estilos musicais da moda, o ingresso na política partidária (proibido atualmente por poucas igrejas), a valorização positiva dos bens e riquezas materiais, como demonstra soberbamente a Teologia da Prosperidade, que vem se disseminando por boa parte do campo evangélico. O aumento da escolaridade dos fiéis e das novas lideranças pastorais, por exemplo, tenderá a promover modificações nas relações entre o rebanho e seus pastores, de modo a reduzir as distâncias hierárquicas, e a incitar cada vez mais a busca por melhor formação teológica. Um dos caminhos prováveis que várias igrejas pentecostais deverão percorrer é o de diminuição do fervor missionário em favor da qualificação pastoral e de sua prédica, mais ao gosto das classes médias, tendendo, com isso, a assemelhar-se, um pouco, com denominações protestantes tradicionais. Tal opção, porém, tende a gerar cismas diversas, justificadas com o propósito de resgatar o fervor primitivo, romper com a erudição teológica, ou com um Evangelho de “muito saber”, mas “frio” e de “pouco poder”. Cismas que são importantes para tentar manter seu extenso recrutamento entre os mais pobres. Por várias razões, é provável também que seu crescimento diminua nas próximas décadas. Por enquanto, o terreno brasileiro para sua expansão é dos mais férteis.
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O pentecostalimo no Brasil, cem anos depois. Uma religião dos pobres. Entrevista especial com Ricardo Mariano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU