05 Março 2008
Defender a vida é o principal objetivo da Campanha da Fraternidade 2008, que tem como tema "Fraternidade e Defesa da Vida" e como lema "Escolhe, pois, a vida (Dt 30,19)". Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, a doutora em sociologia Lúcia Ribeiro fala sobre a defesa da vida e as questões que problematizam esta questão. “Talvez o maior problema para lidar com esta questão, hoje, no interior da Igreja, esteja na imposição de um pensamento único, que não admite nenhum tipo de discussão e que impede a compreensão de sua complexidade”, afirmou.
Lúcia Ribeiro é doutora em Sociologia, pela Universidade do México. É também assessora de movimentos sociais, particularmente vinculada às CEBs. É autora de Entre (in)certezas e contradições: práticas reprodutivas entre mulheres das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica (Rio de Janeiro: NAU, 1997) e Sexualidade e reprodução: o que os padres dizem e o que deixam de dizer (Petrópolis: Vozes, 2001). Em parceria com Leonardo Boff, acaba de lançar Masculino/Feminino: experiências vividas (Rio de Janeiro: Record, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a análise que você faz do atual governo para garantir o direito básico do ser humano, que é a vida?
Lúcia Ribeiro – Lula se elegeu com um programa centrado na justiça social e na necessidade de mudar o atual sistema, intrinsecamente injusto; colocava-se, portanto, numa perspectiva de defesa da vida, em seu sentido amplo. Ao assumir o poder, entretanto, deparou-se com uma série de obstáculos, tanto externos como internos ao seu próprio grupo, que limitaram parcialmente a realização deste projeto. Apesar disto, vem conseguindo alguns resultados, entre os quais gostaria de ressaltar o fato de ter conseguido estabilizar a economia, aumentar o salário mínimo, e criar e expandir programas sociais – como o Bolsa Família –, proporcionando condições básicas de sobrevivência para os setores populares. Além disso, vem lutando por controlar o desmatamento na Amazônia, preocupado com o meio ambiente. Neste sentido, continua defendendo o direito à vida, dentro do âmbito limitado imposto pelas opções políticas que fez.
IHU On-Line – Você escreveu recentemente um artigo em que fala sobre o aborto. No início do mês, um grupo de cientistas italianos propôs que fetos com vida passem a contar com assistência médica necessária para que consigam viver. Isso inclui também os casos de aborto provocado. Qual é a sua opinião sobre tal fato?
Lúcia Ribeiro – Reanimar e dar assistência a um feto prematuro, que nasce com menos de 26 semanas – incluindo os casos de fetos abortados – se justifica, na opinião destes cientistas italianos, pela possibilidade de “dar o tempo necessário para uma avaliação das condições clínicas, da resposta à terapia intensiva e das possibilidades de sobrevivência e por permitir discutir o caso com os médicos e os genitores”.
Creio que poder fazer uma avaliação das condições de um feto super-prematuro – levando em conta que, neste caso, os riscos de que tenham déficit cerebral ou de outro tipo são muito altos – pode ser uma medida positiva, para países que já resolveram problemas básicos de saúde e que têm condições de fazê-lo; mas não me parece ser uma prioridade, em lugares onde a mortalidade infantil ainda é muito alta. É preciso examinar cada contexto e ter em vista as possibilidades concretas em que tais cuidados podem ser tomados.
Por outro lado, também é preciso prestar atenção na possibilidade de que, sob a bandeira de defesa da vida, exista interesse em fazer experimentos com fetos. Tal interesse pode ser perfeitamente legítimo, sempre e quando explicitado e sujeito às exigências dos códigos de ética na pesquisa. Aqui também é fundamental analisar cada contexto específico.
IHU On-Line – Você defende ferozmente a vida e parece ser contra a interrupção voluntária da gravidez. Quando se trata de uma gravidez indesejada, gerada a partir de violência, qual é a sua opinião sobre a interrupção nestes casos?
Lúcia Ribeiro – Creio que a vida, tomada em seu sentido integral, incluindo não só a vida humana, mas também a de todos os seres vivos e a do próprio planeta, é o maior dom de Deus e por isto mesmo precisa ser cuidada e preservada com carinho (mais do que ferozmente...). Nesta defesa ampla da vida, inclui-se também a defesa da vida do embrião, que, com oito semanas se transforma em feto, para finalmente, com o nascimento, tornar-se um bebê.
IHU On-Line – Em que momento deste processo é possível falar de uma pessoa humana?
Lúcia Ribeiro – Embora esta questão se encontre em aberto, e seja motivo de debate não só entre cientista e filósofos, mas também entre teólogos/as, parece haver consenso que se trata de uma vida humana em potencial e que, portanto, merece ser defendida, como princípio básico.
Entretanto, o direito à vida do embrião ou do feto não é o único: em alguns casos, pode colidir com o direito à vida, física e/ou emocional da mãe, em cujo corpo se dá este processo; e, em caso de conflito de direitos, é lícito – de acordo com o princípio ético do “mal menor”, que já vem sendo defendido desde Aristóteles – escolher o “bem maior” ou o “mal menor”, que, no caso, tanto pode ser a vida da mãe como a vida do embrião/feto. O princípio básico é sempre a defesa da vida, mas as formas em que se concretiza dependem do contexto em que se dá: não se pode estabelecer uma norma absoluta e fixista. Assim, no caso de uma gravidez indesejada, gerada a partir de um ato de violência, é preciso analisar as condições: se quem o cometeu foi ou não um membro da família, se a mulher é ou não uma menor de idade, se tem ou não condições de saúde para enfrentar uma gravidez – que pode ser de alto risco –, se tem equilíbrio emocional para levar a gravidez a termo, se tem ou não condições para cuidar e educar um filho etc. Só uma análise cuidadosa do contexto pode ajudar a definir qual o direito que deve prevalecer e de que forma se defende realmente a vida, neste caso.
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre a forma como a Igreja está conduzindo esse problema?
Lúcia Ribeiro – Se pensarmos a Igreja como povo de Deus – de acordo com o Concílio Vaticano II –, há certamente unanimidade no que se refere ao valor fundamental da vida; isto não significa, entretanto, que as formas específicas que a defesa deste valor assume sejam sempre e necessariamente as mesmas. Assim, diante do dilema concreto que coloca uma interrupção voluntária da gravidez, a posição dos cristãos e cristãs, embora em princípio seja contrária à mesma, não é, na prática, unânime: muitos admitem, em casos extremamente graves, que é possível optar pelo “mal menor”. Aliás, pesquisas realizadas entre mulheres católicas e entre sacerdotes demonstram que o aborto é uma realidade, também no interior da Igreja.
Talvez o maior problema para lidar com esta questão, hoje, no interior da Igreja, esteja na imposição de um pensamento único, que não admite nenhum tipo de discussão e que impede a compreensão de sua complexidade. É importante lembrar que nem sempre foi assim: a discussão sobre o momento em que era insuflada a alma no feto (para Sto. Agostinho e Sto. Tomás só depois de 40 dias) e que permitia distinguir entre “fetos animados” e “inanimados” persistiu até o século XVII; só então definiu-se oficialmente que este momento se daria no momento da concepção. Por outro lado, no século XX, introduziu-se mais uma modificação, ao estabelecer-se, no discurso do Magistério, a distinção entre aborto direto e indireto, sendo este último considerado lícito (sem falar na contracepção, anteriormente proibida, e a partir de 1952, admitida por Pio XII, embora com a restrição de métodos). Todas estas mudanças demonstram que, longe de ser uma norma intocável – pois não se trata de um dogma –, a doutrina moral da Igreja é passível de transformações e pode mudar no futuro.
Para tanto, é indispensável um espaço onde se possam debater aberta e honestamente as diversas facetas que a temática levanta; sua ausência tem levado a uma posição ambígua, na qual a proibição radical do aborto, no discurso oficial, convive com sua aceitação, na prática, diante de casos extremos. Nestes casos, a opção de interromper a gravidez – sempre dolorosa, gerando angústia e culpa – torna-se duplamente difícil, pela proibição eclesial , somada à criminalização legal, que cerca esta prática.
IHU On-Line - Como a senhora mesmo explicita, a Igreja está focando esta Campanha da Fraternidade, que é em defesa da vida, em torno da problemática do aborto. No entanto, a vida deve ser defendida sobre diversos âmbitos. Em sua opinião, qual é o papel da mulher na defesa total da vida?
Lúcia Ribeiro – Na realidade, é a própria Campanha da Fraternidade – sobre a qual, até aqui, não tomei nenhuma posição – que explicita a importância de compreender a Vida em seu sentido integral: “Há que defender e promover a vida humana, (...) compreendida como dom de Deus (...) a partir do sentido da vida em todas as circunstâncias". (Texto-base, p.31). Infelizmente, em sua realização, houve uma redução simplificadora do conceito, com uma centralização excessiva na questão do aborto, que, embora importante, não é sua única faceta.
Este sentido integral da vida é facilmente compreensível para a mulher, a quem cabe culturalmente, na sociedade atual, cuidar da reprodução da vida. Não se trata apenas do processo de gestação, mas de tudo o que implica a criação e educação dos filhos, assim como o cuidado dos doentes e dos idosos. Ao estar existencialmente conectada às diversas facetas do cotidiano, a mulher pode contribuir, com sua experiência concreta, para uma visão mais ampla e multidimensional da vida.
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Em defesa da vida: a Igreja e a questão do aborto. Entrevista especial com Lúcia Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU