30 Abril 2020
"Será que vamos aprender algo com essa situação? Quantos irão associar as condições nas quais estamos vivendo ao uso insustentável do planeta? Será que vamos apenas adiar nossos compromissos e retomar tudo como era antes?", escreve Rafael Loyola, Diretor Científico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), professor da Universidade Federal de Goiás e membro da Academia Brasileira de Ciências em artigo publicado por ((o))eco, 27-04-2020.
“Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.”
– Alberto Caeiro.
Desde o início da pandemia causada pela Covid-19, estou com esse poema do Alberto Caeiro na cabeça. Ele diz muito, não só sobre a sabedoria da vida simples do autor (um dos pseudônimos de Fernando Pessoa), mas sobre o nosso lugar no mundo. O novo coronavírus tem nos mostrado como somos frágeis. Um organismo microscópico foi capaz de desacelerar a economia dos países, nos prender em casa, desestabilizar instituições.
Na coluna anterior, mencionei que a chave para evitarmos pandemias desse tipo – e outras mazelas como a crise climática – é ter uma agenda global sustentável, exatamente como propõem os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Pensar na sustentabilidade como elemento transversal a todas nossas atividades e setores da sociedade é imperativo e acho que essa pandemia tem mostrado as consequências de não se pensar assim.
No entanto, também acho que o buraco é mais embaixo. Tenho visto muita gente comentar que essa doença vai aumentar nossa percepção sobre o papel da natureza. Que vai nos fazer repensar nosso impacto no mundo. Será?
Infelizmente, não ando tão otimista. Pode ser efeito do isolamento social, mas minha impressão é que vamos sair piores, pelo menos do ponto de vista ambiental. Isso porque imagino que os países vão querer “tirar o atraso” de uma economia estagnada ou em retrocesso. Uma busca desenfreada pelo aumento do PIB, entre outros indicadores, vai criar uma pressão ainda maior sobre os recursos naturais, aumentando nosso impacto e gerando ainda mais desigualdade social – um dos grandes problemas no enfrentamento da Covid-19.
‘Mas Rafael, e a diminuição da poluição atmosférica? E os peixes e águas vivas nos canais de Veneza? E os golfinhos aqui e acolá? E as cabras nas ruas?’ Bom, primeiro, tudo isso é muito interessante, mas vai desaparecer novamente quando retomarmos o ritmo frenético do avanço econômico. Em segundo lugar, para mim, o que temos visto é nada mais, nada menos que a prova de que o grande problema do mundo somos nós mesmos. É difícil constatar isso, mas precisamos sair de nossa visão antropocêntrica. A natureza não precisa de nós. Ao contrário, somos nós que precisamos dela.
O que o Alberto Caeiro diz é exatamente isso. Se desaparecermos do planeta, a primavera virá da mesma maneira. O Ailton Krenak escreveu que o novo coronavírus discrimina a humanidade e que o pé de melão-de-são-caetano continua crescendo ao lado da casa dele. Fato. Essa nossa ideia de que a natureza precisa de nós para não desaparecer é tão desatinada quanto aquela um homem que ateia fogo em sua casa, para depois se dizer herói por ter controlado o incêndio.
Esse contrassenso não nos exime, entretanto, da responsabilidade moral de conservar e reparar os estragos que fizemos na natureza. Até porque, quando se ateia fogo em casa, mas não se vive sozinho, você pode ser responsabilizado pelas mortes que se sucedem antes do controle do incêndio. O próprio Ailton diz que somos piores que a Covid-19. É difícil discordar. Portanto, é preciso retomar nosso lugar no mundo como parte da natureza e não como seres acima dela. Sem essa percepção, não há ODS que resolva, não há pandemia que nos faça refletir, não há ambientalismo que seja suficiente.
Será que vamos aprender algo com essa situação? Quantos irão associar as condições nas quais estamos vivendo ao uso insustentável do planeta? Será que vamos apenas adiar nossos compromissos e retomar tudo como era antes? São muitas perguntas para refletir durante esses dias. Se ignorarmos tudo o que vem acontecendo, seguiremos o pensamento indutivista de que tudo é como sempre foi e viveremos no (e do) passado.
Olhar para o futuro requer repensar nossas escolhas e definir novos caminhos. As economias fragilizadas precisarão de planos para sua retomada. Que momento será melhor que esse para desenvolver um plano “verde”? Um plano que considere o desenvolvimento sustentável, a primazia dos serviços ecossistêmicos e a manutenção da natureza como componente essencial à nossa sobrevivência? Assim como no século passado, precisamos (agora o mundo inteiro) de um “New Deal” do século 21.
Esse plano deveria incluir programas que prevejam investimentos maciços em obras públicas, mas com matéria-prima, processos e tecnologia sustentáveis; que garantam a ampliação de uma agricultura sustentável e de baixo carbono e o controle das cadeias de valor e produção para que sejam justas e ambientalmente amigáveis; que tenha como objetivo a valorização do trabalho à distância (incluindo home office), visando abrir novos postos e, finalmente, que traga um apelo à diversidade, a fim de integrar em nossa sociedade minorias produtivas, mas atualmente (e tradicionalmente) marginalizadas. Vejam, mais uma vez, que essa ideia já faz parte dos ODS e da agenda 2030 da ONU.
Finalmente, retomo minha ideia inicial: tudo isso seria para que nós mesmos pudéssemos sobreviver em meio à natureza. Se nos formos, o mundo continuará igual. É na crise que as decisões mais importantes são tomadas. Torço agora para que essas decisões – que já foram sugeridas há décadas – sejam, finalmente, entendidas como corretas.
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A natureza no mundo pós-Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU