23 Abril 2020
É preciso se perguntar se a pandemia pode justificar medidas de limitação da liberdade que nunca haviam sido tomadas na história da Itália, nem mesmo durante as duas guerras mundiais. Nasce a legítima dúvida de que, ao espalhar o pânico e ao isolar as pessoas nas suas casas, se quis jogar sobre a população as gravíssimas responsabilidades dos governos que, primeiro, tinham desmantelado o serviço nacional de saúde e, depois, cometeram uma série de erros não menos graves ao enfrentar a epidemia.
A opinião é do filósofo italiano Giorgio Agamben, em entrevista publicada em Quodlibet, 22-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estamos vivendo, com esta reclusão forçada, um novo totalitarismo?
Em muitas partes, vai se formulando agora a hipótese de que, na realidade, nós estamos vivendo o fim de um mundo, o das democracias burguesas, fundadas nos direitos, nos parlamentos e na divisão de poderes, que está dando lugar a um novo despotismo, que, no que diz respeito à pervasividade dos controles e à cessação de toda atividade política, será pior do que os totalitarismos que conhecemos até agora. Os cientistas políticos estadunidenses o chamam de “Security State”, ou seja, um estado em que, “por razões de segurança” (neste caso de “saúde pública”, termo que leva a pensar nos famigerados “comitês de saúde pública” durante o Terror), pode-se impor qualquer limite às liberdades individuais.
Além disso, na Itália, estamos acostumados há muito tempo com uma legislação por decretos de urgência por parte do Poder Executivo, que, desse modo, substitui o Poder Legislativo e, de fato, abole o princípio da divisão dos poderes no qual se fundamenta a democracia. E o controle que é exercido por meio das câmeras de vídeo e agora, como foi proposto, por meio dos telefones celulares excede em muito toda forma de controle exercida sob regimes totalitários como o fascismo ou o nazismo.
Por falar em dados, além dos que serão coletados por meios dos celulares, também se deveria fazer uma reflexão sobre os dados divulgados nas inúmeras coletivas de imprensa, muitas vezes incompletos ou mal interpretados.
Esse é um ponto importante, porque toca a raiz do fenômeno. Qualquer pessoa com algum conhecimento de epistemologia não pode deixar de se surpreender com o fato de que a mídia, durante todos estes meses, divulgou números sem qualquer critério de cientificidade, não apenas sem relacioná-los com a mortalidade anual no mesmo período, mas sem sequer especificar a causa do óbito. Não sou virologista nem médico, mas me limito a citar textualmente fontes oficiais confiáveis. Vinte e um mil mortos por Covid-19 parecem e certamente são um dado impressionante.
Mas, se os relacionarmos com os dados estatísticos anuais, as coisas, como é justo, assumem um aspecto diferente. O presidente do Instituto Nacional de Pesquisa da Itália (Istat), Dr. Gian Carlo Blangiardo, comunicou há algumas semanas os números da mortalidade do ano passado: 647.000 mortes (portanto, 1.772 óbitos por dia). Se analisarmos as causas nos detalhes, veremos que os últimos dados disponíveis relativos a 2017 registram 230.000 mortes por doenças cardiovasculares, 180.000 mortes por câncer, pelo menos 53.000 mortes por doenças respiratórias. Mas um ponto é particularmente importante e nos diz respeito de perto.
Qual?
Cito as palavras do Dr. Blangiardo: “Em março de 2019, os óbitos por doenças respiratórias foram 15.189 e, no ano anterior, foram 16.220. Incidentalmente, nota-se que são mais do que o número correspondente de óbitos por Covid (12.352) declarados em março de 2020”. Mas, se isso for verdade, e não temos razão para duvidar disso, sem querer minimizar a importância da epidemia, porém, é preciso se perguntar se ela pode justificar medidas de limitação da liberdade que nunca haviam sido tomadas na história do nosso país, nem mesmo durante as duas guerras mundiais. Nasce a legítima dúvida de que, ao espalhar o pânico e ao isolar as pessoas nas suas casas, se quis jogar sobre a população as gravíssimas responsabilidades dos governos que, primeiro, tinham desmantelado o serviço nacional de saúde e, depois, na Lombardia, cometeram uma série de erros não menos graves ao enfrentar a epidemia.
Os cientistas, na realidade, também não ofereceram um bom espetáculo. Parece que eles não foram capazes de fornecer as respostas que esperávamos deles. O que pensa?
É sempre perigoso confiar aos médicos e aos cientistas decisões que, em última análise, são éticas e políticas. Veja, os cientistas, correta ou incorretamente, perseguem de boa-fé as suas razões, que se identificam com o interesse da ciência e em nome das quais – a história demonstra isso amplamente –estão dispostos a sacrificar qualquer escrúpulo de ordem moral. Não preciso lembrar que, sob o nazismo, cientistas muito estimados lideraram a política eugênica e não hesitaram em se aproveitar dos campos de concentração para realizar experimentos letais que eles consideravam úteis para o progresso da ciência e para o cuidado dos soldados alemães.
No caso presente, o espetáculo é particularmente desconcertante, porque, na realidade, mesmo que a mídia o esconda, não há acordo entre os cientistas, e alguns dos mais ilustres entre eles, como Didier Raoult, talvez o maior virologista francês, tem opiniões diferentes sobre a importância da epidemia e sobre a eficácia das medidas de isolamento, que, em uma entrevista, eu defini como um superstição medieval. Eu escrevi em outro lugar que a ciência se tornou a religião do nosso tempo. A analogia com a religião deve ser tomada ao pé da letra: os teólogos declaravam que não podiam definir com clareza o que Deus é, mas, em seu nome, ditavam regras de conduta aos homens e mulheres e não hesitavam em queimar os hereges. Os virologistas admitem que não sabem exatamente o que é um vírus, mas, em seu nome, pretendem decidir como os seres humanos devem viver.
Dizem-nos – como muitas vezes ocorreu no passado – que nada será mais como antes e que a nossa vida deve mudar. Na sua opinião, o que ocorrerá?
Eu já tentei descrever a forma de despotismo que devemos esperar e contra o qual não devemos nos cansar de nos pôr em guarda. Mas, se, por uma vez, abandonarmos o âmbito da atualidade e tentarmos considerar as coisas do ponto de vista do destino da espécie humana sobre a Terra, vêm-me à mente as considerações de um grande cientista holandês, Ludwig Bolk.
Segundo Bolk, a espécie humana é caracterizada por uma progressiva inibição dos processos vitais naturais de adaptação ao ambiente, que são substituídos por um crescimento hipertrófico de dispositivos tecnológicos para adaptar o ambiente ao ser humano. Quando esse processo ultrapassa um certo limite, ele chega a um ponto em que se torna contraproducente e se transforma em autodestruição da espécie. Fenômenos como o que estamos vivendo me parecem mostrar que esse ponto foi alcançado, e que o remédio que devia curar os nossos males corre o risco de produzir um mal ainda maior. Contra esse risco, também devemos resistir com todos os meios.
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Pandemia, novas reflexões. Entrevista com Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU