30 Outubro 2017
Ensaio sobre a cegueira
70.000 idiotas assinam lista para impedir palestra de uma das intelectuais mais respeitadas e influentes do mundo. Nenhum desses idiotas jamais leu uma frase escrita por ela, nem sequer sabem do que trata seu trabalho.
Bem-vindos a São Paulo, Brasil.
Mais que episódios de violência de grupos sectários que se espalham pelo Brasil e ameaçam a liberdade de expressão em teatros, museus, eventos acadêmicos e na própria existência de organizações, para mim o que mais preocupa é que tenhamos caído na armadilha da captura da Internet por essa rede social e sua lógica, promovendo uma individuação sociotécnica baseada nas regras desse dispositivo. A Internet das coisas projeta a rede social sobre a política.
Com isso, tudo fica sujeito à quantificação de curtidas e acessos, o diálogo desaparece em nome da profusão tribal de hordas linchadoras e há um nivelamento pela mais superficial película imagética, sem sobreviver ao mínimo teste de racionalidade.
A aglutinação por pressão, ou seja, a violência, torna-se o próprio modus operandi da política. A indiferenciação em torno ao público e privado, com exposição de fotos e dados da vida pessoal das pessoas, potencializa essa máquina. A irrelevância das razões, com uma interpretação literal e caricata, prolifera por todos os lados. Somos abalroados por uma nova lógica de poder de massa, no qual memes têm força viral para derrubar qualquer complexidade, uma vez que a pressão emerge, como já disse, da quantidade.
O risco que vivemos é disso aqui se transformar numa nova modalidade de totalitarismo: o totalitarismo distribuído, que pode emergir em qualquer canto da web, se conecta por nós variados e atua para destruir seus inimigos potenciais. Em relação à Internet da década passada, tenho certeza que essas redes fizeram proliferar - talvez até contra a intenção (pois o botão é de "curtida") - a língua do linchamento como forma primordial da fazer política.
Na UERJ, um grupo de direita invade uma aula sobre a Revolução Russa gritando slogans de ode a Bolsonaro e querendo bater nos alunos. Na UFPE, um grupo de esquerda faz piquete para tentar a exibição de um filme e ameaça os interessados com violência física. Práticas idênticas, espelhos perfeitos uma da outra e retratos de uma situação preocupante.
Que cada um assuma as bobagens que faz e assine o B.O. pelos próprios atos, claro, mas não custa lembrar que essa prática de arregimentar turbas para impedir um ato de fala de outrem em nome de uma causa é, na história recente brasileira, uma prática de esquerda. O fato presente de que a faca e o queijo estejam agora nas mãos da direita não muda esse fato passado.
Faltou no Brasil gente em número, coragem e autoridade intelectual suficiente na esquerda, entre 2014 e 2016, para dizer que certas práticas são INTOLERÁVEIS, não importa qual seja a causa em nome da qual falam e o pretexto que escolheram na vez.
Em 2015, quando alguns ativistas do movimento negro - não O movimento, mas alguns ativistas dele - conseguiram fechar uma peça de teatro antes mesmo de que os espectadores pudessem vê-la, houve silêncio ou apoio. Em 2016, quando alguns pouquíssimos ativistas impediram a realização de uma palestra de ninguém menos que José de Souza Martins, professor emérito da USP, houve silêncio, apoio ou condescendência. Em 2016, quando a surrealidade chegou a seu ponto máximo e alguns ativistas invadiram a exposição de anti-souvenirs da Copa do artista (independente e antirracista) Rafucko, tentando impedir sua realização, também faltou gente na esquerda com peso e coragem para protestar e dizer que aquilo era intolerável.
Os exemplos são legião, e vão desde linchamentos morais covardes contra indivíduos até campanhas de boicote com denúncia à polícia de séries globais (que portanto tinham peso e dinheiro para se defender) como "O sexo e as negas". Os exemplos são diferentes em foco, dimensão e odiosidade, mas compartilham o mesmo padrão - um grupo de sujeitos, minoritários mas barulhentos, se auto-intitula porta-voz de uma comunidade oprimida e designa o seu pretexto da vez como opressor que deve ser silenciado.
Ao compactuar com práticas assim, a esquerda não apenas abraçou um autoritarismo inaceitável. A esquerda também abriu a porteira para um jogo que a direita maneja muito melhor, arregimentar turbas em torno a uma indignação. O resultado é essa merda aí na qual nos encontramos, em que interessados da UFPE não têm sossego para ver um filme sobre um ensaísta de direita, os interessados da UERJ não têm sossego para assistir a uma aula sobre uma Revolução de esquerda, e gente vê um patético abaixo-assinado exigindo cancelamento da palestra da grande filósofa Judith Butler, e por um momento não consegue nem identificar se a tentativa de silenciamento está vindo da direita ou da esquerda.
Começo a ler cada vez mais, horrorizado, aqui e ali, textos em defesa de Stalin. "Em nome do proletariado". Com direito a muitas curtidas e compartilhamentos. Os stalinistas estão aí - convictos. E em plena campanha.
Muito embora isso signifique a mesma coisa que defender Hitler. São dois genocidas. (E qualquer tentativa de atenuação constitui, em si, mais um sintoma de profunda indiferença em relação a genocídios.)
Não pode ser apenas ignorância. Difícil imaginar alguém de esquerda que não tenha ouvido falar do massacre de milhões de camponeses, ou da execução daqueles que apenas pensavam de forma diferente do ditador.
Portanto essas pessoas compactuam com tudo isso. Com esses métodos. Com argumentos na linha do "vale tudo". Maquiavélicos.
E devemos temê-las tanto quanto deploramos a movimentação dos neonazistas.
*
Talvez falte a muita gente coragem de repudiar essa movimentação com todas as letras. Porque conviveu com tais e tais stalinistas no movimento estudantil, porque não quer perder amigos no Facebook etc.
Como se os crimes contra a humanidade que girem em torno do comunismo se tornem menos abomináveis por causa disso, por estarem associados à "esquerda". Como se a esquerda não abrigasse psicopatas e outras pessoas sem escrúpulos.
Identificar os horrores do capitalismo não significa aderir a qualquer alternativa igualmente associada a horrores. Defender o stalinismo significa um tiro no pé. Uma munição a mais para quem defende o sistema atual e suas brutalidades.
Essa deveria ser uma discussão antiga, datada. Mas se perdem os pudores e se perde a memória. Com ela, a própria necessidade de contundência que devemos ter contra quem não tenha apreço por direitos elementares.
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A serpente no ovo não deixará de ser serpente caso pintemos o ovo de vermelho.
Comissário NAZISTA sobre arte, 1937:
“Vivemos a loucura, do descaramento, da incompetência e da degeneração”.
Alguém pode me ajudar a perguntar à prefeitura de SP se é humano o RAPA e a GCM tirarem tudo dos irmãos de rua. PM. junto!
A rede social é o reino da bravata. Nele o sujeito pode escrever invocando o "estado democrático de direito" em sua defesa e meses depois bravatear à vontade sobre como enfrentar o fascismo quebrando braços e pernas e mandando gente para o hospital e o cemitério.
Leio que o assassino do coronel da PM estava preso até quatro meses atrás por porte de drogas, radiotransmissor e armas em uma favela do Lins. Foi solto sem ter cumprido pena, por decisão de uma juíza. Saiu, pegou um fuzil de guerra e foi fazer um arrastão, disposto a matar.
No exercício da minha função atual tenho conhecido inúmeros casos semelhantes. Bandidos perigosos, que lideram grupos fortemente armados, têm sido soltos, sistematicamente e por qualquer pretexto, bem antes de cumprirem suas penas. Às vezes para visitarem as mãezinhas no dia delas.
Em todos os casos, retornam imediatamente aos seus lugares anteriores. E a Justiça reitera esse tipo de decisão, impunemente.
A sociedade precisa cobrar seriedade aos juízes. Alguma margem de erro sempre haverá em qualquer decisão de libertar criminosos antes do cumprimento da pena, mas as decisões judiciais sobre isso têm que ser exaustivamente fundamentadas.
Não é o que acontece hoje. Os juízes limitam-se a dizer que aplicam dispositivos previstos em lei. Ou seja, não avaliam as consequências de suas decisões, não julgam. Decidem no piloto automático. São relapsos.
O nome disso, na melhor das hipóteses, é irresponsabilidade. Na pior, é corrupção.
A Amazônia pegou fogo de novo e já deram a culpa 100% pro Temer de novo. Ninguém parece se lembrar, mas a mesma Humaitá piromaníaca que botou fogo nos prédios e equipamentos do MMA na sexta, tava incendiando barcos, sede e centros de saúde indígena da Funai no natal de 2013 e réveillon de 2014, após o sumiço de 3 "brancos".
O que aconteceu nesse episódio, o que aconteceu mês passado com guarda parques no Piauí, o que aconteceu mês retrasado com a cegonheira do Ibama em Novo Progresso/PA (adoro esse nome) ou o que rolou quando da expulsão da PM da cidade de Açailândia/MA, em um dia de fúria da população local, que um amigo presenciou uns anos atrás, não são nenhuma novidade. Não podem ser explicados da forma simplista que os neoambientalistas pós impeachment adoram, culpando "a política ambiental inconsequente do Temer". Da mesma forma, são apenas parcialmente explicadas pela decisão do governo de Dilma com o mesmo Temer de desativar as bases do Ibama no interior da Amazônia no começo desta década.
A justificativa de Dilma era que a fiscalização deveria ser feita pelos governos regional e local. Pois os garimpeiros de Humaitá celebraram a noite de glória fazendo churrasco na casa de um vereador, depois de marchar contra o Ibama lado a lado com o Prefeito. E os senadores de esquerda e direita do Amazonas passaram 2017 pedindo pro governo Temer derrubar logo as unidades de conservação que impediam que Humaitá expandisse sua pecuária mais pra dentro da Amazônia. Aliás, já até contei aqui como essas UCs de Humaitá e região foram uma pegadinha de Dilma pra trollar o recém empossado Temer e denunciar que seu ex-cumpanheiro queria acabar com a Amazônia: Veja aqui.
Então, pelo amor de São Victor, parem de tentar fazer Humaitá, a Amazônia e a fronteira agropecuária desse curralzão infinito chamado Brasil caberem no binarismo maniqueísta de vossa política. Michel Temer é pequeno demais, pálido demais, insignificante demais pra explicar um lugar tão grande, nuançado, pulsante e tropical como a Amazônia. Não é a política ambiental escrota desse governo que nos trouxe aqui (e tampouco podemos reduzir esse momento a uma luta dos fiscais do bem contra os garimpeiros do mal).
Humaitá é apenas mais uma cidade situada no arco do desmatamento e abandonada pelo poder público. Quem já passou um par de noites à beira da rodovia transamazônica sabe o que é o vai e vem de caminhões sem identificação assim que o sol se põe. É o lugar onde se reúnem muitos dos homens mais valentes e mais resilientes do planeta, madeireiros, garimpeiros, grileiros, pecuaristas, traficantes, contrabandistas de qualquer coisa e toda sorte de nômades aventureiros. Homens sem perspectiva de vida, sem nenhuma instrução, profundos conhecedores da mata e grandes ignorantes da importância da floresta, sonhando em ficar ricos do dia pra noite ou ao menos arrancar algum pra beber nas incursões à floresta mais rica e inexplorada do mundo.
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