18 Novembro 2015
"Francisco demonstra alegria e esperança pelos grandes avanços alcançados pela Comissão de Diálogo luterano-católico. Mas o que nos chamou a atenção foi a afirmação para que a “Igreja Católica leve adiante corajosamente a apreciação cuidadosa e honesta das intenções da Reforma e da figura de Martinho Lutero, no sentido de ‘Ecclesia semper reformanda’", escreve Sérgio Ricardo Coutinho, professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de Brasília e de “Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais” no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.
Eis o artigo.
Chamou-nos a atenção, mais uma vez, o intenso desejo ecumênico do papa Francisco. Desta vez, no último dia 15/11, Francisco visitou a Igreja luterana de Roma. Há quatro meses tinha feito também uma visita histórica à Igreja valdense na mesma cidade.
Durante a visita, alguns fiéis (duas senhoras e uma criança) fizeram perguntas ao papa e que as respondeu de forma muito livre. Uma destas tocava na questão ainda não solucionada para a Eucaristia, o “sacramento da unidade”:
“Meu nome é Anke de Bernardinis e, como muitas mulheres da nossa comunidade, sou casada com um italiano, que é um cristão católico romano. Vivemos felizes juntos por muitos anos, partilhando alegrias e tristezas. Mas nós lamentamos muito estarmos divididos pela fé e não sermos capazes de participar, juntos, da Ceia do Senhor. O que podemos fazer para conseguir, finalmente, a comunhão neste ponto?”
É sem dúvida um tema fundamental no diálogo ecumênico. Com os ortodoxos a questão sempre foi o primado, com os luteranos a questão é a justificação pela fé e o sacerdócio comum dos fiéis. Mas aqui, a questão formulada, além de envolver a Eucaristia, toca em um dos temas do último Sínodo das Famílias: os matrimônios interconfessionais.
A resposta que Francisco pronuncia segue seu projeto pastoral de misericórdia, mas com um forte sabor “luterano”. E aqui podemos talvez lançar algumas luzes sobre qual será seu encaminhamento sobre o tema do acesso à Eucaristia aos casais em segunda união.
O papa revela que prefere que os teólogos discutam o tema, pois ele mesmo não tem as condições para isso: “A questão sobre partilhar a Ceia do Senhor não é fácil para eu responder a você, especialmente na frente de um teólogo como o Cardeal Kasper! Eu tenho medo! (risos) (...) Deixo a questão para os teólogos, para aqueles que entendem”[1].
Apesar disso, ele quer enfrentar a questão seguindo outro caminho: “Eu penso no que o Senhor nos disse quando ele deu esta ordem: ‘Fazei isto em memória de mim’. E quando compartilhamos a Ceia do Senhor, lembramos e imitamos, fazemos a mesma coisa que fez o Senhor Jesus. E a Ceia do Senhor será o banquete final, será na Nova Jerusalém, mas esta será a última. Em vez disso, eu me pergunto – e eu não sei como responder, mas sua questão eu também me faço – eu me pergunto: partilhar a Ceia do Senhor é o fim de uma jornada ou é o viático para caminhar juntos?”.
Ao longo da resposta percebe-se que Francisco quer trazer um “remédio” (o viático) que possa manter vivos outros dois sacramentos, o Batismo e o Matrimônio. Para isso, recorre aos mesmos argumentos de Lutero: sola Scriptura, solus Christus, sola fide, bem como o sacerdócio universal. O papa assim argumenta:
“É verdade que em certo sentido há diferenças entre nós, mas temos a mesma doutrina (...) mas eu me pergunto: mas nós temos o mesmo batismo!? (...) Remédios são para manter vivo o Batismo. Quando você ora juntos, o Batismo cresce, torna-se mais forte (...). Há perguntas que só se é honesto consigo mesmo e com as poucas ‘luzes’ teológicas, como eu tenho, você tem que responder a mesma coisa, você vê. ‘Este é o meu corpo, este é o meu sangue’, disse o Senhor: ‘Fazei isto em memória de mim’, e isso é um incentivo que nos ajuda a caminhar. (...) A vida é maior do que as explicações e interpretações. Consulte sempre o Batismo: ‘uma só fé, um só batismo, um só Senhor’, por isso Paulo nos diz, e de lá você assumi as consequências. (...) Um batismo, um só Senhor, uma só fé. Fale com o Senhor e prossiga em frente”.
Diria que ele deu uma resposta tipicamente luterana para a questão, uma reposta centrada na fé, nas palavras de Jesus e de Paulo contidas na Escritura e, por fim, na relação direta de cada crente com Deus.
Mas no fim da resposta, Francisco solta uma frase enigmática: “Eu nunca me atreveria a dar permissão para fazer isso, porque não é minha responsabilidade. (...) Não me atrevo a dizer mais”. De fato, a responsabilidade seria de cada fiel para participar da Ceia em vista da unidade matrimonial e batismal. Não seria ele a dar autorização para uma luterana acompanhar seu marido na Ceia do Senhor. No entanto, em nossa opinião, há aqui fortes indícios de como ele pensa sobre a Eucaristia enquanto “viático” para manter vivo o Batismo. Uma fórmula que poderá muito bem ser apresentada para o acesso à Eucaristia de casais em segunda união.
Além das respostas que deu às perguntas feitas pelos fiéis, Francisco também deixou de lado sua homilia escrita e a fez de improviso. Na home-page da Santa Sé, foi publicada a homilia que tinha escrito. E lá encontramos outro elemento de proximidade entre Francisco e Lutero.
Francisco demonstra alegria e esperança pelos grandes avanços alcançados pela Comissão de Diálogo luterano-católico. Mas o que nos chamou a atenção foi a afirmação para que a “Igreja Católica leve adiante corajosamente a apreciação cuidadosa e honesta das intenções da Reforma e da figura de Martinho Lutero, no sentido de ‘Ecclesia semper reformanda’”.
A nosso ver, aqui pode estar um outro sinal ecumênico forte: a possível retirada da ex-comunhão de Lutero durante as comemorações dos 500 anos da Reforma em 2017. Diferentemente de Bento XVI, que retirou a ex-comunhão dos Lefebvreanos cismáticos que não aceitam as inovações do Vaticano II, Francisco vê justamente neste Concílio, e também em Lutero, elementos inspiradores fortes para levar adiante seu projeto de Reforma fortalecendo o sentido de “Ecclesia semper reformanda”.
Se o acesso à eucaristia aos casais em segunda união e a retirada da ex-comunhão de Lutero acontecerem de fato, não haverá mais dúvidas dos “sinais dos tempos” que estamos vivendo.
Notas:
[1] Estavam presentes o anterior e o atual prefeito para o Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, os cardeais Walter Kasper e Kürt Koch, respectivamente.
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Francisco e a inspiração em Lutero por uma Ecclesia semper reformanda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU