19 Mai 2015
"Se não abraçarmos o erro positivista, devemos nos perguntar: pode existir um direito não justo ou uma norma válida, embora injusta? Tal dicotomia não pode ocorrer em uma visão realista do direito!"
Sandro Magister, em seu blog, Settimo Cielo, 16-05-2015, publica algumas "especificações" de Giovanni Parise, canonista da Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma, em resposta às críticas levantadas pelo advogado Antonio Caragliu a respeito do seu artigo sobre o Sínodo de outubro de 2015.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Após a louvável intervenção do advogado Antonio Caragliu, é meu dever fazer algumas especificações a propósito da minha reflexão anterior.
Acima de tudo, devo salientar que a minha nota concernia à temática do matrimônio e da família, marcadamente à sua verdade ontológica, que os torna "Evangelho" válido e necessário sempre.
Para entender o fundamento disso, é necessário notar como eles têm uma identidade própria, que não deriva a eles de fora, mas que lhes é essencial, interna, íntima. Só nesse contexto, de passagem, é que eu citava Kelsen, lembrando que, para ele – expoente eminentíssimo do positivismo jurídico, a ponto de teorizar a chamada Grundnorm, verdadeira "fictio iuridica" –, o direito é entendido como um realidade extrínseca em relação à pessoa humana e às suas relações.
Isto é, tratava-se de um exemplo comparativo. É boa para a nossa reflexão a análise lúcida e precisa que Carlos J. Errázuriz M. desenvolve no seu Corso fondamentale sul diritto nella Chiesa [Curso fundamental sobre o direito na Igreja] (Ed. Giuffrè, Milão, 2009).
Por outro lado, se não abraçarmos o erro positivista, devemos nos perguntar: pode existir um direito não justo ou uma norma válida, embora injusta? Tal dicotomia não pode ocorrer em uma visão realista do direito!
O positivismo jurídico – e não estou falando especificamente de Kelsen agora –, embora em uma variedade de formas, tende a ver o direito como mera técnica de regulação da vida social, compatível com qualquer conteúdo, e o valor jurídico depende da capacidade – concretamente – de se impor.
Portanto, a regulação jurídica não dependeria das exigências de justiça inerentes à própria realidade social e ao ser ôntico do homem na sua verdade mais íntima, porque tais exigências seriam relativas, e a sua tradução em normas jurídicas só se apoiaria no consenso social ou na força daqueles que impõem tais normas.
Esses pontos de vista impedem tanto de aceitar o direito natural e os direitos humanos objetivos (cf. São João Paulo II, encíclica Redemptor hominis, 4 de março de 1979, n. 17), quanto de captar o verdadeiro sentido da realidade jurídica, que, assim, levando à extrema consequência essas posições, se tornaria manipulável em função de qualquer interesse, até mesmo contra os mais fundamentais bens da pessoa e da sociedade.
Para dar um exemplo concreto da perniciosidade e da falácia de tal sistema, basta ver as normas estatais atuais em favor do aborto, da eutanásia, do divórcio, das uniões homossexuais, das convivências de fato, mas também as leis de prevaricação em relação aos últimos, aos mais pobres e indefesos.
É verdade que a realidade jurídica nunca é puramente natural e requer intervenções humanas para reconhecer o que é próprio, conforme e adequado à natureza humana, no entanto, o direito humano ou positivo é inseparável do natural, e ambos compõem uma única realidade: não pode existir, portanto, uma norma de direito injusta. Não se trataria aqui de direito, mas de perversão do direito.
O direito como o que é justo é sempre algo concreto, não uma abstração; nele, os aspectos positivos e os naturais se entrelaçam inextricavelmente e se remetem mutuamente. Destacar o direito positivo do natural, como faz o positivismo jurídico, deixa a realidade jurídica desprovida de qualquer verdadeiro fundamento antropológico e, até mesmo, corre o risco de se transformar em uma arma contra a verdade do homem!
Nesse ponto de vista, esquece-se que o sistema jurídico e a profissão do jurista remetem-se a uma realidade subjacente e prioritária: as relações de justiça entre as pessoas e entre elas e os conjuntos sociais.
Portanto, o direito não é algo meramente instrumental, mas é essencialmente o que é justo. O que é instrumental é o sistema ou a técnica que se emprega para tornar operativos direitos e deveres; enquanto existe um direito anterior ao sistema jurídico, que precede normas e procedimentos humanos, assim como o matrimônio e a família têm uma verdade própria em si mesmos, que impede qualquer caracterização humana que se queria conferir-lhes "ab extrinseco".
Essa é a verdade do matrimônio e da família, que, assim, é indiscutível, é um dado natural, que não provém de fora e que só podemos conservar e proteger.
No fim, devemos nos remeter ao grande ensinamento de Bento XVI, que analisava bem a questão no seu monumental discurso ao Parlamento federal alemão, em Berlim, no dia 22 de setembro de 2011, que explica como a posição do realismo jurídico não é "religiosa" ou "católica", assim como reconhecer a verdade do matrimônio e da família não é uma questão de cultura ou de fé, mas é abraçar uma realidade que se dá e se mostra, um ser do qual, inequivocamente, deve derivar o unívoco dever-ser.
Bento XVI, nas seguintes linhas, esclarece também aquele mal-entendido funcionalista de que eu falava na minha nota anterior, mal-entendido em relação ao qual corremos o risco de curvar até mesmo a instituição primária do matrimônio e da família.
Cito:
"Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado da parte da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. [...]
"No último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação. Hoje, considera-se a ideia do direito natural uma doutrina católica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo só de mencionar o termo.
"Queria brevemente indicar como se veio a criar esta situação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qual haveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser não poderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitos absolutamente diversos.
"A base de tal opinião é a concepção positivista, quase geralmente adotada hoje, de natureza. Se se considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen - 'um agregado de dados objetivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos', então realmente dela não pode derivar qualquer indicação que seja de algum modo de caráter ético. Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais.
"Entretanto o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso, a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjetivo, caindo fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo.
"Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso. […]
"Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, reduzindo todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura ao estado de uma subcultura. […]
"A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. […]
"É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo. […] Existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.
"Voltemos aos conceitos fundamentais de natureza e razão, donde partíramos. O grande teórico do positivismo jurídico, Kelsen, em 1965 – com a idade de 84 anos (consola-me o facto de ver que, aos 84 anos, ainda se é capaz de pensar algo de razoável) –, abandonou o dualismo entre ser e dever ser. Antes, ele tinha dito que as normas só podem derivar da vontade. Consequentemente – acrescenta ele – a natureza só poderia conter em si mesma normas, se uma vontade tivesse colocado nela estas normas. Mas isto – diz ele – pressuporia um Deus criador, cuja vontade se inseriu na natureza. 'Discutir sobre a verdade desta fé é absolutamente vão' – observa ele a tal propósito. É assim verdadeiramente? – gostaria de perguntar. É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?
"Aqui deveria vir em nossa ajuda o patrimônio cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e iria privá-la da sua integralidade. […] Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico."
Relida essa página capital de Bento XVI, portanto, o desejo que temos é de que – também graças ao próximo Sínodo e à reflexão sobre ele – a Igreja se faça ainda instrumento que leve o homem a escancarar as janelas sobre a vastíssima beleza de verdade do seu ser, também sobre o "Evangelho" do matrimônio e da família, propondo-se como alternativa válida para os cada vez mais numerosos e iminentes edifícios de cimento armado, sem portas e sem janelas, que pretendem se dar a luz e o ar sozinhos.
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Tréplica sobre Kelsen. A opinião de Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU