29 Março 2012
“Com um terço do custo da transposição do rio São Francisco seria possível construir um grande sistema de abastecimento de água para toda a região Nordeste e abastecer todas as casas da região”, constata o engenheiro.
Confira a entrevista.
“A transposição do rio São Francisco se transformou em um grande atoleiro e eu não vejo nenhuma perspectiva de ela ser concluída, pois as obras estão praticamente paradas em vários trechos”, declara João Abner (foto abaixo) à IHU On-Line, na entrevista a seguir concedida por telefone. Engenheiro e filho de sertanejo, o professor conhece de perto a realidade do semiárido brasileiro e lamenta a falta de um projeto de reforma hídrica na região. “Enquanto a obra da transposição do rio São Francisco estiver sendo construída, não será possível discutir um projeto específico e alternativo para o Nordeste”, assinala.
Para ele, a elevação dos custos anunciados pelo governo para permitir a conclusão da obra demonstram que a indústria da seca não tem interesse em concluir a transposição do rio São Frarncisco. E alerta: “Temos que ter o maior cuidado com toda essa discussão que está sendo feita pela mídia, a qual é alimentada pelo próprio lobby da transposição do rio. A quem interessa aumentar em mais de 70% o orçamento da obra? Essa discussão do aumento surge justamente para esconder a inviabilidade da transposição do rio São Francisco e a fraude técnica deste projeto”. E dispara: “É preciso prestar atenção no discurso dos deputados que estão criticando a transposição do rio neste momento. Veja que eles não criticam a obra em si. Continuam dizendo que a transposição é importante para o Nordeste. Eles criticam o fato de o governo não estar conseguindo viabilizar a obra. Então, quer dizer, na verdade, eles defendem que os recursos da transposição sejam ampliados e acham que a obra não foi concluída por incompetência, porque os projetos foram mal feitos. Eles defendem a ampliação dos recursos financeiros porque defendem o grande lobby das indústrias que mandam neste país”.
Contrário ao projeto de transposição do rio São Francisco, Abner assegura que “nenhum agricultor que, hoje, recebe água do carro-pipa receberá água da transposição desse rio, porque a água vai escoar em grandes rios, vai para as maiores barragens do região e será utilizada pelo agronegócio”.
Doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento, João Abner Guimarães Júnior é professor nos cursos de Engenharia Sanitária e Engenharia Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sobre a transposição do rio São Francisco, publicou diversos artigos, tais como A transposição do rio São Francisco e o Rio Grande do Norte; O lobby da transposição; e O mito da transposição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a atual situação das obras da transposição do rio São Francisco? A obra está parada em alguns trechos? Que avaliação faz deste projeto desde que as obras começaram?
João Abner Guimarães Júnior – A transposição do rio São Francisco se transformou em um grande atoleiro e eu não vejo nenhuma perspectiva de ela ser concluída, pois as obras estão praticamente paradas em vários trechos. A parte mais visível das obras, que é o canal da transposição, está concluída, porque as empreiteiras agilizaram esse processo em função do dinheiro que receberam. Ainda falta construir a parte mais importante da obra, a qual dará viabilidade a ela.
Esses canais da transposição têm cerca de 600 quilômetros. Para que eles possam entrar em operação, é preciso abrir, nas suas extremidades, 30 quilômetros de túneis. Existe uma sequência de dois túneis para chegar à Paraíba: um tem cinco quilômetros e o outro tem 15 quilômetros. Para se ter uma ideia, 15 quilômetros é a extensão de um dos maiores túneis da Europa. O maior túnel da América Latina tem seis quilômetros. A construção desses dois túneis pode demorar uma década. O governo fala que é possível, durante a construção, avançar nove metros por dia, em condições normais. Isso quer dizer que a construção de um túnel de 30 quilômetros levará de sete a nove anos para ser concluída. Por enquanto, a obra conseguiu avançar pouco mais de 900 metros em um ano e meio. Em 2010 houve desmoronamento e pessoas morreram. O governo estava escondendo a dimensão dessa obra para facilitar o andamento dela. Nós sabíamos que ela não iria ser concluída com 10 bilhões de reais, como está sendo mostrado agora.
IHU On-Line – A que o senhor atribui o aumento de 77,8% no custo da transposição deste rio? De que outra maneira esses recursos poderiam ser utilizados para garantir a gestão da água no semiárido?
João Abner Guimarães Júnior – Antes de tudo, temos que entender qual é a lógica dessa obra. A transposição do rio São Francisco é a reprodução da indústria da seca na maior escala que se possa imaginar. Seu projeto já estava, como uma espécie de vírus, inoculado no Estado brasileiro e foi se replicando, até que o governo Lula o encampou. Na época, havia um discurso de que a obra seria realizada e teria um cunho social. Nós já sabíamos que ela seria feita para atender à indústria da seca e que não teria nenhum compromisso com a economicidade.
Hoje, temos que ter o maior cuidado com toda essa discussão que está sendo feita pela mídia, a qual é alimentada pelo próprio lobby da transposição do rio São Francisco. A quem interessa aumentar em mais de 70% o orçamento da obra? Essa discussão do aumento surge justamente para esconder a inviabilidade da transposição do rio e a fraude técnica deste projeto. É preciso prestar atenção no discurso dos deputados que estão criticando tal transposição nesse momento. Veja que eles não criticam a obra em si. Continuam dizendo que a transposição é importante para o Nordeste. Eles criticam o fato de o governo não estar conseguindo viabilizar a obra. Então, na verdade, eles defendem que os recursos da transposição sejam ampliados e acham que a obra não foi concluída por incompetência, porque os projetos foram mal feitos. Eles defendem a ampliação dos recursos financeiros porque defendem o grande lobby das indústrias que mandam neste país, entre elas, a indústria da seca.
O mal menor seria terminar logo a transposição do rio para mostrar que a obra não tem nada a ver com o desenvolvimento do Nordeste, que não foi feita para acabar com o carro-pipa, que não vai servir para nada. Assim, ao menos ela ficaria exposta como um monumento para denunciar a indústria da seca. O problema é que, enquanto a obra estiver sendo construída, não será possível discutir um projeto específico e alternativo para o Nordeste.
IHU On-Line – A que o senhor se refere quando fala em indústria da seca?
João Abner Guimarães Júnior – A indústria da seca é uma espécie de colonialismo que predomina no Nordeste há séculos. Quer dizer, os projetos para distribuir água no Nordeste são pensados fora da região e têm a intenção de capturar recursos públicos. O Programa de Açudagem do Nordeste mostra isso. As obras pensadas para o Nordeste são descoladas de um plano de desenvolvimento e têm um fim em si mesmas.
A transposição do rio São Francisco segue essa mesma lógica. O governo e as empresas querem construir o maior açude possível no Nordeste e depois pensar o que será possível fazer com ele. Para funcionar, a transposição do rio precisa de mais investimento. Além disso, durante o período em que a obra ficou parada, os canais construídos se arrebentaram e terão de ser refeitos. Portanto, essa é a estratégia das elites do Norteste: criam um projeto de desenvolvimento para se apropriarem de recursos públicos.
Transposição para subsidiar a agricultura
Mas a transposição também tem outra conotação. Atualmente o Nordeste consegue armazenar 35 bilhões de metros cúbicos de água em grandes açudes. O problema é que grande parte dessas águas não consegue ser apropriada, porque não existem condições econômicas para utilizá-la, pois o mercado é globalizado e não há condições de competir com ele.
O Ceará está fazendo hoje uma experiência de apropriação da água, porque a irrigação está sendo subsidiada fortemente pelo setor urbano do estado. Por enquanto, esse modelo está sendo testado em escala menor. O grande perigo que tem por trás da transposição do rio São Francisco é o fato de ela ser usada, mais tarde, para justificar a criação desse modelo implantado no Ceará em escala regional. Quer dizer, as águas, que hoje são pouco utilizadas nesses açudes poderão ser utilizadas para a irrigação, apesar de serem subsidiadas pelo setor urbano. O preço desse subsídio é o preço da segurança hídrica. Quer dizer, o setor urbano vai bancar a água da irrigação, mas não a água da transposição.
IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, o custo da água a ser fornecida pelo projeto da transposição do rio São Francisco foi estimado em R$ 0,15 o metro cúbico e custará mais do que em outras regiões do país. O que esse valor representa?
João Abner Guimarães Júnior – Comparando com o preço da água utilizada para o consumo humano, pode-se dizer que esse valor é baixo, porque nós trabalhamos com valores de três ou quatro reais por metro cúbico. É por isso que está se vinculando a notícia de que a transposição do rio São Francisco é necessária para atender ao abastecimento humano. O governo diz que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas com a transposição, mas, na verdade, essa informação é falsa. Onde estão essas pessoas? A maioria delas mora no litoral e nas regiões metropolitanas. Então, essa água não vai chegar a essas pessoas. Na verdade, 12 milhões de pessoas pagarão pela água oriunda da transposição do rio São Francisco. Essa é a grande questão. Quer dizer, informa-se que a transposição vai ser paga pelo consumidor urbano das grandes cidades, só que a água oriunda da transposição não será utilizada pelo setor urbano; ela será incorporada às águas dos açudes, que serão utilizadas intensivamente para a irrigação. Portanto, o subsídio que está sendo pago para a transposição do rio São Francisco subsidiará a produção agrícola com irrigação em larga escala.
Exportação de água
O Rio Grande do Norte exporta água para Europa via melão, via camarão. O Ceará se transformou também em um grande exportador de frutas a partir do momento em que o governo do estado começou a entregar água de graça para os produtores daquela região. Então, esse é o grande projeto para o Nordeste: exportar as águas do rio São Francisco via o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará. E aí eu pergunto: Como os agricultores do Vale do São Francisco, que não terão acesso a esse subsídio, irão concorrer com os produtores do Ceará, do Rio Grande do Norte e da Paraíba? Portanto, além de se apropriarem da obra em si, as elites irão se apropriar da água.
IHU On-Line – Quando o governo autorizou a transposição do rio São Francisco, o projeto já previa que a água seria utilizada para o consumo industrial e para a agricultura, ou falava-se apenas que seria destinada ao consumo humano? O governo está mudando o discurso em relação aos benefícios da transposição para justificar a obra?
João Abner Guimarães Júnior – Existem dois discursos: de que a água seria usada para consumo humano e para uso econômico. Mas a primeira fraude diz respeito ao beneficiamento de 12 milhões de pessoas. Nós fizemos um levantamento das populações que possivelmente serão atendidas pelos sistemas adutores, que captam a água das bacias que receberão a água da transposição do rio São Francisco, e contabilizamos três milhões de pessoas. A outra mentira é que essa água não irá perenizar rios secos. Essa água só será despejada na cabeceira dos dois maiores rios do Nordeste, ou seja, será despejada fora do rio São Francisco e do Parnaíba, que é onde se concentram 70% das reservas típicas da região.
Então, essa história de associar a transposição com a seca é a maior fraude que existe. Nenhum agricultor que hoje recebe água do carro-pipa receberá água da transposição do rio São Francisco, porque a água vai escoar em grandes rios, vai para as maiores barragens do Nordeste e será utilizada pelo agronegócio. Sempre foi esse o projeto, só que na época da discussão da transposição o comitê proibiu a utilização da água da bacia do rio São Francisco para uso econômico. A partir daí, o governo usou a estratégia de associar esse projeto ao consumo humano. Mas, na verdade, a água da transposição será utilizada para consumo industrial (na região litoral e metropolitana) e para consumo agrícola.
IHU On-Line – É possível estimar qual será o custo da manutenção das obras após a transposição?
João Abner Guimarães Júnior – O custo será de 100 milhões de reais por ano. Quer dizer, estão previstos 100 milhões. Mas, da mesma forma que a obra da transposição foi orçada em 2 bilhões de reais, depois o orçamento mudou para 4 bilhões e, mais tarde, para 10 bilhões, não há como saber qual será o custo final da manutenção.
É prematuro falarmos disso agora, considerando que a obra será finalizada daqui algumas décadas. Neste momento, temos que retomar a luta e a resistência, porque nós temos um projeto alternativo para o Nordeste. A minha preocupação é que a transposição se transforme em um grande atoleiro e paralise todas as ações do governo federal na região. Devemos evitar esse debate sobre a conclusão da obra, porque ele fortalece a indústria da seca, no sentido de que o que eles realmente querem é aumentar o custo desse empreendimento.
Está provado que a transposição do rio São Francisco é uma obra que não serve para o Nordeste. Quer dizer, tudo o que se falou anteriormente está sendo comprovado na prática. A indústria da seca não tem interesse que essa obra seja concluída, porque, quando ela for concluída, a indústria da seca será desmascarada.
IHU On-Line – Como vê a proposta do governo de investir na construção de novas hidrelétricas em áreas florestais? Qual o impacto desses empreendimentos para os rios?
João Abner Guimarães Júnior – Esse é outro problema e, nesse sentido, o governo Lula foi um grande facilitador desses empreendimentos. O que aconteceu na prática foi uma desmobilização dos movimentos sociais. Percebemos isso no Vale do São Francisco: enquanto havia oposição nos estados da Bahia, Sergipe e Minas Gerais, havia resistência. Então, trata-se de um problema político. Todos os projetos que estavam na gaveta se fortaleceram. Portanto, a lógica da transposição do rio São Francisco e da hidrelétrica de Belo Monte é mesma.
Se formos fazer uma comparação entre o aproveitamento do projeto hidrelétrico dos rios Xingu e São Francisco, perceberemos que os projetos são inviáveis, porque a barragem do primeiro funciona como uma caixa de passagem para outro, ou seja, produz energia proporcional ao fluxo da água do São Francisco. Então, quando a vazão do rio está baixa, a produção de energia é baixa, e quando a vazão do rio é alta, a produção de energia é alta. Como o rio São Francisco tem oscilações de vazões, foi a hidrelétrica de Sobradinho que assegurou vazões próximas da média. Ela é o grande pulmão do rio.
Barragens: pulmões de grandes hidrelétricas
Então, o projeto de aproveitamento do rio Xingu é um complexo de grandes barragens que terá como função regularizar a sua vazão, porque ele oscila mais do que o rio São Francisco. Portanto, o projeto do Xingu implica na construção de grandes barragens, que atingirão as áreas indígenas. Está cada vez mais difícil viabilizar a construção dessas barragens. Por isso o governo Lula decidiu construir Belo Monte. Quer dizer, construirão uma hidrelétrica caríssima e que irá produzir energia durante três ou quatro meses ao ano. Quando a usina estiver pronta e o governo descobrir que ela é inviável – porque energia não se acumula –, haverá uma pressão para construir grandes lagos, os quais servirão de pulmão para regularizar o funcionamento de Belo Monte. O mesmo acontece com a transposição do rio São Francisco. Se a obra ficar pronta, verão que ela não irá servir para nada e buscarão alternativas para fazer novas transposições. Primeiramente, fazem a obra e depois decidem o que farão com ela. Quer dizer, não existe compromisso. A marca desses projetos do PT é a falta de compromisso com a economicidade e a racionalidade.
IHU On-Line – No início do ano houve uma polêmica em torno das cisternas porque o governo federal queria substituir aquelas feitas de placa por outras feitas de plástico. Como vê essa questão e qual a importância das cisternas no semiárido?
João Abner Guimarães Júnior – Essa é outra contradição. Enxergar a cisterna apenas como um reservatório de água é um absurdo, porque ela é um elemento que faz parte de um processo de mobilização social. Hoje, é um desafio manter um homem ou uma família no semiárido; não é possível conviver em um ambiente sem acesso à internet, energia e água.
Temos que pensar a questão do semiárido além das cisternas. Precisamos pensar um programa de desenvolvimento sustentável de reforma hídrica no Nordeste. É um absurdo, em pleno século XXI, o fato de muitas comunidades serem abastecidas com carro-pipa. Esse é o sistema mais caro de abastecimento de água. O custo da água é de 20 reais o metro cúbico. Com um abdutor, mesmo numa distância de 50 quilômetros, é possível entregar água com um custo de um real. O grande problema do Nordeste é a distribuição da água, pois, com a quantidade de açudes que existem, seria possível criar uma grande rede de abastecimento de água.
Com um terço do custo da transposição do rio São Francisco seria possível construir um grande sistema de abastecimento de água para atender a todo o Nordeste e abastecer todas as casas da região. A cisterna em si tem seus limites: é um equipamento ótimo para épocas de chuvas. Mas, na época de seca, a cisterna serve de reservatório para receber água dos carros-pipas. Então, é preciso combinar cisternas com abdutores, com chafariz e pensar um modelo de desenvolvimento regional. É claro que, com a transposição do rio São Francisco, jamais esse programa será feito.
IHU On-Line – Qual sua expectativa quanto à questão da sustentabilidade dos recursos hídricos ser abordada na Rio+20?
João Abner Guimarães Júnior – Talvez o governo irá levar o debate da transposição do rio São Francisco para a Rio+20. O grande desafio é descontaminar o debate dos interesses da indústria da seca. Nós tínhamos que ocupar o espaço desta Conferência para discutir um projeto de reforma hídrica, e para denunciar a transposição deste rio na grande mídia nacional. A imprensa se omitiu e em momento algum ofereceu espaço para quem quisesse questionar a inviabilidade técnica desta obra. O único momento em que essa questão apareceu foi na ocasião da greve de D. Luís Flávio Cappio. Todas as matérias que criticam a transposição do rio demonstram, de outro lado, que a obra é importante para o Nordeste porque 12 milhões de pessoas serão beneficiadas com o empreendimento. Isso é uma grande fraude. Como denunciá-la se não há espaço?
IHU On-Line – Não existe a possibilidade de debater...
João Abner Guimarães Júnior – O debate não existe porque se trata de dois projetos: o projeto real e o projeto imaginário. Quando participo dos debates, uns defendem o projeto imaginário e outros, embora critiquem o projeto real, são favoráveis à transposição. Eu sou engenheiro, mas, quando falo sobre essa temática do semiárido, não falo como engenheiro e, sim, como um filho de sertanejo que teve a oportunidade de estudar. O que prevalece na minha análise é a minha memória, a experiência de ver que ainda existem pessoas que vivem com dificuldades no sertão.
A grande questão é como o governo federal poderá desenvolver um projeto de desenvolvimento para o Nordeste que esteja descolado do interesse dos grandes lobbys que contaminam o Estado. Fico preocupado quando vejo pessoas que eram referência nesse debate e que hoje apoiam o outro lado. Quando vejo o discurso de Tânia Bacelar, de Otamar de Carvalho, fico angustiado. Eles criticavam esse modelo de desenvolvimento do Nordeste e hoje estão, no mínimo, omissos nesse processo. Tenho a esperança de que Dilma perceba o “atoleiro” em que o governo se meteu quando comprou o projeto da transposição do rio São Francisco. O governo não tem como, por si só, enfrentar o lobby da indústria da seca. Somente com a participação da população é possível enfrentar essa questão.
Fico impressionado ao ver como o lobby conseguiu influenciar as campanhas eleitorais regionais. No meu estado (Rio Grande do Norte), todos os políticos estão a favor das empreiteiras. Não tem ninguém com quem você possa dialogar para mudar essa situação.
Oportunidades
Os temas que serão debatidos na Rio+20 terão repercussão mundial. Na época da greve de fome de D. Cappio, acompanhei a repercussão das notícias internacionais sobre a transposição do rio São Francisco. Li matérias na França, na Espanha e nos EUA, que tinham uma visão mais crítica do que as publicadas no Brasil. Elas abordavam todos os pontos do projeto e mostravam suas fraudes e o cunho político que está por trás da obra. Aí eu pergunto: por que a grande mídia não incorporou essa crítica também?
Com a Rio+20, essas questões poderão ser discutidas novamente. A transposição do rio São Francisco é uma grande mentira a ser exibida como verdade e serviu para decidir uma campanha política para a presidência da República.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
João Abner Guimarães Júnior – O mérito da obra de transposição do rio São Francisco ainda não foi julgado no Supremo Tribunal Federal – STF. Todos os novos ministros do STF passaram a ser relatores no sentido de evitar que o processo seja julgado. Se o processo ainda não foi julgado, quer dizer que o governo não tem argumentos para se contrapor às denúncias.
As principais denúncias que constam no processo contra a transposição dizem respeito à fraude do projeto, à manipulação de dados feita à época do licenciamento hídrico. Esperávamos que o projeto fosse barrado durante o licenciamento hídrico, porque a Agência Nacional de Águas – ANA não poderia desconhecer os números que existiam. O plano de recursos hídricos do Ceará, por exemplo, mostrava um quadro de superabundância de água no estado e este era um argumento forte para evitar a transposição.
Fraude
Para barrar a obra, bastava a ANA consultar os planos do Ceará e do Rio Grande do Norte e averiguar que não era necessária essa construção. No entanto, a Agência encaminhou um ofício aos governadores, solicitando que atestassem a real necessidade da água para seus estados. Fizeram um balanço hídrico nos estados por decreto. Isso é um absurdo. Todo mundo engoliu esse projeto e rasgamos toda a teoria de recursos hídricos.
Essa fraude foi denunciada no Ministério Público Federal – MPF e foi encaminhada para o STF, mas nunca foi analisada; está aguardando julgamento. A transposição do rio São Francisco só aconteceu porque houve um conluio em que muita gente se beneficiou direta ou indiretamente. Agora querem ampliar o custo da obra para 8 bilhões. Onde está o Tribunal de Contas da União? Ninguém se manifesta. Isso é um escândalo. Por que os movimentos sociais não vão para a rua? Por que não denunciam? Nunca na história desse país passamos por um nível de corrupção desse tipo.
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Transposição do rio São Francisco: ''Onde está o Tribunal de Contas da União? Ninguém se manifesta. Isso é um escândalo''. Entrevista especial com João Abner Guimarães Júnior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU