13 Novembro 2010
“Convencido de que, evangelicamente, outro mundo era possível e desejável, mas com resistências contra a análise marxista muito além de intelectual, procurou ‘concretizar’ a Doutrina Social da Igreja num projeto de economia e sociedade que não saiu tão ‘concreto’ quanto sonhava. No fundo, convencido de que as mudanças se dariam de cima para baixo, protagonizadas por gente lúcida de boa vontade, não colocou a questão do poder e da hegemonia”. É desta forma que o padre jesuíta Antônio Abreu recorda do amigo e coirmão, como o chama, Fernando Bastos de Ávila, falecido no último dia 06-11-2010.
Sobre as assessorias que padre Ávila prestava à CNBB, na época do regime militar, Antônio de Abreu destaca que “ajuntar conhecimento seguro e amplo da Doutrina Social da Igreja, informação sempre atualizada da conjuntura nacional e capacidade comunicativa de síntese” (que eram características de padre Ávila, segundo Abreu), “ajudou a aceitação das análises pelos bispos, porque a leitura dos fatos era fermentada pela valoração baseada na Doutrina Social da Igreja”. A entrevista que segue foi concedida por e-mail à IHU On-Line.
Antônio José Maria de Abreu é o superior religioso no CIAS-Ibrades (Centro de Investigação e Ação Social – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento), de Brasília-DF, onde também é pesquisador e professor. É mestre em Economia pela University of Michigan e licenciado em Teologia pela Universidade de Innsbruck. É coordenador de ministérios em meio popular.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que o senhor guarda de mais significativo do tempo em que conviveu com o padre Ávila?
Antônio de Abreu - O papel que desempenhou junto à CNBB, em assessorias, análises da conjuntura, mesmo através do curso longo do Ibrades. Mais pessoalmente, a relação dialética - que nos transcendia um pouco - como um coirmão que me acolhia (nem sempre o modo de proceder dos bem pensantes da Província), mas de quem muito divergi. Há mesmo aspectos de sua (muita) estima por mim, em que divergíamos. Minha pastoral supletiva no meio popular, por exemplo, que ele via como edificante abnegação, quando para mim interagia dinamicamente com meu trabalho no Ibrades e era recarga de bateria.
IHU On-Line - O que o senhor destaca na trajetória intelectual do padre Ávila?
Antônio de Abreu - Foi um intelectual orgânico da Igreja caminheira. Inseria-se espontaneamente numa tradição intelectual acadêmica que valorizava o conhecimento e o estudo sério por si mesmo. O reconhecimento dos pares era para ele termômetro de que seu estudo era pertinente e acurado. Após a odisseia brilhante pelos mares greco-latinos como professor dos juniores em Nova Friburgo, RJ, e da destinação para a Pedagogia, nas últimas horas da Terceira Provação, recebeu a carta provincial destinando-o para a Sociologia e a matrícula em Lovaina. Depois marcou seu tempo e seu meio como sociólogo.
IHU On-Line - Qual a importância do solidarismo na história dele?
Antônio de Abreu - Convencido de que, evangelicamente, outro mundo era possível e desejável, mas com resistências contra a análise marxista muito além de intelectual, procurou “concretizar” a Doutrina Social da Igreja num projeto de economia e sociedade que não saiu tão “concreto” quanto sonhava. No fundo, convencido de que as mudanças se dariam de cima para baixo, protagonizadas por gente lúcida de boa vontade, não colocou a questão do poder e da hegemonia.
IHU On-Line - Como foi o processo da fundação da revista Síntese? Qual a participação de padre Ávila?
Antônio de Abreu - O nome original da revista era Síntese Política, Econômica e Social, dando a sigla “SPES”, “esperança” em latim. Queria ser a revista da Escola de Sociologia e Política da PUC-Rio. Brotava da convicção de que a realidade social se entendia interdisciplinarmente. Daí o nome “Síntese”; ideia assumida como prioridade no projeto da Escola por amigos e colaboradores, como o economista Kerstenetzy e o politólogo Hélio Jaguaribe. Como diretor da ESP/PUC, Ávila foi o primeiro diretor da revista e depois a continuou. Embora fosse uma empreitada coletiva, Síntese era, sobretudo, tarefa dele.
IHU On-Line - O que o senhor pode falar sobre a amizade de padre Ávila com padre Henrique de Lima Vaz, inclusive sobre a divergência dos dois em relação ao regime militar?
Antônio de Abreu - Os dois receberam na Companhia uma formação elitista, que não é culpa deles. Quando estudantes, ouviram repetidamente o provincial bater com os dedos na mesa em exortações, dizendo “a Companhia de Jesus é uma ordem aristocrática”. Vaz por um tempo vislumbrou hegelianamente que a História tem um sentido, que Teilhard (de Chardin) enriqueceu para ele. Daí seu papel fundamental no repensamento da JUC, com reflexos para a Ação Católica Universitária (de formados). No nível intelectual, queria ardentemente a omelete, mas existencialmente se assustou com a violência da quebra dos ovos. Pior: discípulos seus da véspera, incompreendidos pela Igreja institucional (como ele mesmo tinha sido), abandonaram a fé católica. Como reação, adernou para a direita em termos sociais, políticos e de posição na Igreja. Nos anos 1970, reagia menos contra a ditadura do que Ávila. Defendia o fechamento do Ibrades, não só por causa da invasão da Polícia do Exército em 1970, mas por lhe parecer que a formação de agentes sociais de transformação estrutural não cabia à Companhia. Sua influência, neste sentido, complicou-me a relação com um provincial que me estimava, mas ouvindo muito Vaz não via sentido no Ibrades (e mais tarde se laicizou, mas não por isto). Ávila se manteve sempre quase na mesma linha, com um pouco mais de crítica social (e da Igreja). O temperamento hamletiano e necessitado de reconhecimento e a estratégia para ser eficaz sobre o auditório musicaram seu discurso à Igreja uma terça abaixo do que falava em confiança. O balé ideológico dos dois não lhes afetou a amizade pessoal, posso testemunhar.
IHU On-Line - Qual o papel do padre Ávila na fundação do Ibrades?
Antônio de Abreu - O Ibrades nasceu rio de vários córregos. Bispos desejavam um “centro para o Brasil como o Ilades na América Latina” (circunlóquio que Dom Helder moldou em “Ibrades”). Pe. Pierre Bigo e Pe. Pedro Velloso insistiam para isto junto ao Pe. Geral e aos provinciais. O apreço do Pe. Velloso (provincial) pelo Pe. Ávila o fez considerá-lo o homem certo para implementar o projeto. Pe. Ávila mesmo pensava o Ibrades como inserido na PUC-Rio. Disto ainda se falava em 1967, 1968. Terá pesado a ligação à CNBB, mas sinto que o Ibrades não ficou na PUC em 1968 como a nascente Igreja cristã não ficou na sinagoga. Inspirador, expressivo, bem relacionado, Pe. Ávila se qualificava por este lado para liderar o Ibrades. Mas via os muitos aspectos duma questão, não conseguia com clareza priorizá-los, sua decisão emperrava se não era empurrada de fora ou por afeto. Outubro de 1976: altura na qual em anos anteriores a turma estava basicamente selecionada, tínhamos dez a doze candidatos ao curso longo de 1977; porém, mais de trinta pedidos de cursos breves locais. Foi duro vencer sua hesitação para cancelarmos o curso longo e assumirmos mais cursos breves: 17, que nos deram vários candidatos excelentes para 1978.
IHU On-Line - Como eram as assessorias de padre Ávila à CNBB durante o regime militar?
Antônio de Abreu - O regime militar coincide em parte com frutos das nomeações episcopais de João XXIII e Paulo VI. Antes, se buscavam canonistas e administradores. Agora (em parte, graças às informações do núncio Lombardi), era a hora de pastores sensíveis aos sinais dos tempos. Assim mesmo, o episcopado era um colegiado piedoso e unido, mais para conservador, no qual dava o tom uma minoria articulada, aberta ao novo e à ação de conjunto (segundo Dom Helder). A amizade pessoal de Ávila com Dom Ivo Lorscheiter dos tempos de Roma ajudou; não creio que fosse decisiva. Em suas assessorias, Ávila buscava o “ponto ótimo”, que não é o mesmo que “máximo”. A nós, mais jovens, podia parecer cauteloso demais, Deus o sabe. Mas conseguia ser ouvido, receber atenção, o que era positivo. Às vezes (em confiança) observava com humor as redações finais dos seus rascunhos: “acupuntura episcopal, espeta um pouco aqui, fura um pouco ali”. Ajuntar conhecimento seguro e amplo da Doutrina Social da Igreja, informação sempre atualizada da conjuntura nacional e capacidade comunicativa de síntese, ajudou a aceitação das análises (e da orientação que sugeriam) pelos bispos, porque a leitura dos fatos era fermentada pela valoração baseada na Doutrina Social da Igreja.
IHU On-Line - Qual sua avaliação do livro A alma de um Padre. Testemunho de uma vida (Edusc e Academia Brasileira de Letras, 2005)? O que levou padre Ávila a escrevê-lo, quando companheiros jesuítas e leigos acharam que o livro não deveria ter sido publicado?
Antônio de Abreu - Li-o e me incomodou, embora menos do que esperava dos comentários ouvidos. Pareceu-me mais amargo do que o coirmão amigo que conheci. A gente nunca conhece bem o outro – nem a si mesmo. Não fui consultado, mas se tivesse sido, diria: “o senhor tem o direito humano de se expressar. Mas não o faça. O que o senhor diz envolve a Companhia, que é algo maior. Toda decisão é um limite, a gente é livre de fazer os votos, mas eles nos tornam membros de um corpo apostólico; tudo que fazemos e dizemos compromete mais ou menos este corpo. Hoje em dia me preocupa gente boa que não se dá conta disto”.
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Padre Ávila: um intelectual orgânico da Igreja caminheira. Entrevista especial com Antonio Abreu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU