21 Junho 2016
Em relatório sobre direitos humanos e atividades de empresas no Brasil, especialistas independentes da ONU alertaram que o financiamento privado de campanhas eleitorais exerce ‘influência indevida’ sobre fiscalização de projetos de infraestrutura.
A reportagem foi publicada por EcoDebate, 20-06-2016.
Especialistas detalharam falhas do governo e de corporações em episódios como as obras de Belo Monte, a preparação do Rio de Janeiro para as Olimpíadas e o desastre ambiental no Rio Doce, em Minas Gerais e no Espírito Santo.
Fiscalização inadequada, poluição do meio ambiente e destruição de comunidades afetadas por grandes projetos são alguns dos aspectos recorrentes das violações dos direitos humanos perpetradas pelo setor empresarial no Brasil. Em alguns casos, o financiamento privado de campanhas eleitorais seria responsável por exercer uma “influência indevida” sobre processos regulatórios do governo.
Essas são algumas das conclusões apresentadas pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, em um relatório final sobre o Brasil elaborado após visita oficial ao país entre os dias 7 e 16 de dezembro do ano passado.
“O Brasil tem uma legislação e instituições sólidas para a proteção contra abusos aos direitos humanos cometidos por empresas, e nós clamamos para que o país faça uso desses avanços para melhor proteger os direitos humanos na prática”, disse o especialista em direitos humanos e atual coordenador do Grupo de Trabalho, Dante Pesce, durante apresentação do relatório no Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta sexta-feira (17).
O documento alerta para um cenário generalizado de infrações onde indústrias extrativistas, o agronegócio, a construção civil e o setor de energia — no projeto do Grande Carajás no Pará, no Porto do Suape em Pernambuco, na Baía de Sepetiba no Rio de Janeiro, na Ponta da Madeira no Maranhão e outras partes do Brasil — estão envolvidos em casos de desmatamento, expropriação, liberação de resíduos tóxicos, violência e conflitos envolvendo comunidades afetadas por empreendimentos.
Pesce salientou que, para combater essas violações, “a participação da sociedade civil brasileira e dos corajosos defensores de direitos humanos é também essencial”.
“Nesse sentido, estamos extremamente preocupados com os riscos graves encarados por ativistas que levantam a sua voz contra abusos aos direitos humanos cometidos por empresas, e alarmados com o alto número de mortes de defensores de direitos humanos.”
O Grupo de Trabalho detalhou as violações de princípios de direitos humanos em casos específicos no Pará, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Espírito Santo.
Governo federal e Norte Energia acusados de ‘etnocídio’ em Belo Monte
Especialistas destacaram que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) concedeu, em novembro de 2015, uma licença operacional ao consórcio Norte Energia para a continuação das obras da usina de Belo Monte mesmo após o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) terem se posicionado contra a autorização.
A negativa dos dois organismos foi motivada pelo fato de as empresas envolvidas não terem satisfeito as condições necessárias para mitigar impactos ambientais e sociais da hidrelétrica — construída na bacia do rio Xingu e em uma região que abriga 11 terras e duas áreas indígenas.
Em dezembro do ano passado, o MPF deu início a um processo judicial em que acusa o governo federal e a Norte Energia de etnocídio devido à destruição da sociedade e da cultura indígenas durante as obras da barragem da usina.
Testemunhos apontam para um fracasso em considerar de forma plena os contextos social e cultural em torno de Belo Monte.
O Grupo de Trabalho da ONU ressalta ainda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) abriu um processo contra o Brasil em dezembro de 2015 por conta do projeto de Belo Monte.
No relatório, os especialistas lembram que, em 2011, o organismo regional já havia exigido a suspensão do licenciamento e da construção da usina, afirmando que “a vida e a integridade física das comunidades estavam em risco”.
Embora durante sua visita os relatores independentes da ONU tenham sido informados pela Norte Energia de que as empresas cumpriram as condições exigidas para prosseguir com as obras, implementando iniciativas voltadas para a população local, o Grupo de Trabalho alerta que o consórcio “não parece ter uma abordagem baseada em direitos humanos”.
Autoridades estatais em Belém relataram aos especialistas que o grupo empresarial construiu uma escola que “era apenas um contêiner temporário inadequado ao clima quente de Altamira”. O local agora é utilizado como um armazém. Populações ribeirinhas foram reassentadas em moradias longe do rio — sua principal fonte de subsistência — sem infraestrutura.
Em ambos os casos, parece ter havido poucas ou nenhuma consulta junto às comunidades afetadas. Em outras avaliações apresentadas ao Grupo de Trabalho, o Instituto Socioambiental enfatizou que o IBAMA realiza análises quantitativas e não considera se as habitações construídas para pessoas deslocadas são adequadas às condições locais culturais.
Caso isso seja verdade, a situação representaria uma deficiência do IBAMA em monitorar a obediência às exigências de licenciamento ambiental. “Testemunhos apontam para um fracasso em considerar de forma plena os contextos social e cultural em torno de Belo Monte”, alertaram os especialistas.
O relatório chama atenção ainda para o temor dos residentes do bairro Independente II — em Altamira — de que as promessas de reassentamento não sejam cumpridas. A região abriga 400 casas e será inundada quando o reservatório da represa for enchido.
A Norte Energia não havia planejado qualquer tipo de realocação para os moradores, mas foi obrigada após pressão da sociedade civil e uma subsequente decisão do IBAMA. O plano de reassentamento deverá ser apresentado até outubro.
Altamira também foi citada por sofrer as consequências da falta de planejamento para a recepção do grande fluxo de trabalhadores da construção civil que chegou à cidade. O crescimento populacional veio acompanhado de casos de violência, tráfico, exploração sexual de mulheres e crianças — conforme destacado pela Secretaria de Direitos Humanos — e uso abusivo de álcool.
Vila Autódromo: quem quer ficar enfrenta insegurança física e psicológica
Durante sua passagem pelo Brasil, o Grupo de Trabalho visitou a Vila Autódromo, no Rio de Janeiro. A comunidade — próxima a canteiros das grandes obras feitas para as Olimpíadas e Paralimpíadas de 2016 — abriga cerca de 100 pessoas que se recusam a deixar suas casas e a serem reassentadas em função dos projetos de construção civil vinculados às competições de agosto e setembro.
Os especialistas independentes das Nações Unidas foram informados de que, em junho de 2015, foram registrados confrontos violentos entre residentes e a Guarda Municipal — que tentou romper uma “corrente humana” formada por moradores em volta de duas casas que seriam demolidas.
O Grupo de Trabalho conheceu brasileiros que participaram desta manifestação, além de tomar conhecimento de imagens que retratam o tratamento violento dado pela Guarda a idosos da Vila, “resultando em rostos ensanguentados e ferimentos”.
Embora o prefeito Eduardo Paes tenha afirmado que indivíduos poderiam permanecer em seus lares e que ninguém seria forçado a sair da região, “a vida para os que permaneceram na Vila Autódromo estava sendo tornada física e psicologicamente insegura”, disseram os relatores da ONU.
Demolições continuaram desde dezembro e sem aviso prévio a moradores e o centro comunitário — onde os especialistas independentes realizaram algumas reuniões — foi destruído.
Ao visitar a comunidade, o Grupo observou ainda que os moradores vivem rodeados por canteiros e foi informado de que os residentes sofrem com cortes frequentes de eletricidade e água. Além dos destroços das casas demolidas, valões por onde circulam rejeitos aparentemente tóxicos podem ser encontrados no perímetro da Vila.
No documento, os relatores da ONU explicam que conversaram sobre a situação do local com o Comitê Organizador dos Jogos Rio 2016. Durante o encontro, o organismo foi encorajado a manifestar preocupação quanto à conjuntura em discussões com a Prefeitura e outras autoridades municipais, uma vez que as obras em torno da Vila Autódromo estão ocorrendo devido à realização das Olimpíadas.
Governo estadual e federal ‘podia ter feito mais’ pela população de Minas Gerais após desastre de Mariana
A respeito do desastre ambiental provocado pelo rompimento da barragem de Fundão em Minas Gerais, os especialistas concluíram que “houve uma falha no plano de contingenciamento da Samarco, uma vez que as pessoas não foram alertadas sobre o desastre, apesar do intervalo de dez horas entre a ruptura da represa e a enchente de Barra Longa”.
Avisos prévios teriam permitido à população salvar pertences e poderiam ter salvado vidas. A inundação levou à morte de 18 pessoas e à destruição das cidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, afetando outros 3,2 milhões de indivíduos que moram às margens do Rio Doce. A Samarco (Vale/BHP Billiton) também demorou quase duas semanas para anunciar que outras duas estruturas eram pouco seguras.
Ruptura da barragem provocou a liberação de volume de 55 milhões a 60 milhões de metro cúbicos de rejeitos de minério no Rio Doce. A lama percorreu mais de 600 quilômetros até chegar ao oceano, matando peixes, a flora, a fauna e disparando uma crise social e ambiental que afetou a subsistência e o acesso à água da população, incluindo indígenas Krenak e milhares de pescadores.
Após encontros com autoridades brasileiras, representantes do setor privado, incluindo da mineradora Samarco, da sociedade civil e de comunidades afetadas em Minas e no Espírito Santo, o Grupo de Trabalho concluiu ainda que os governos estadual e federal “podiam ter feito mais” após a tragédia.
“Embora a Samarco seja responsável pela reparação dos danos causados, o governo federal continua (sendo) o responsável primário do qual se exige a defesa dos direitos humanos das comunidades afetadas”, que expressaram sentir falta de mais informações sobre processos de reassentamento e compensação.
Moradores dos locais atingidos pela tragédia manifestaram preocupação quanto ao recebimento efetivo de ajuda para que consigam reconstruir suas vidas. Os residentes também se disseram preocupados a respeito da falta de informação sobre os riscos ao meio ambiente e à saúde representados pela contaminação do Rio Doce e do oceano.
Os especialistas independentes da ONU receberam relatos de que as informações fornecidas pela Samarco — como garantias de que os rejeitos não incluíam material tóxico e de que a água era própria ao consumo humano, após a criação de instalações provisórias de tratamento — não seriam confiáveis.
Embora a causa exata do rompimento da represa de Fundão ainda seja desconhecida, tais eventos não deveriam ocorrer jamais. O incidente assinala a importância de regras de licenciamento rígidas.
Em reunião com a Samarco, o Grupo de Trabalho encorajou a mineradora a ser transparente com as comunidades acerca das falhas na resposta ao desastre, além de realizar consultas junto às populações envolvidas e fornecer uma compensação justa. Os especialistas também aconselharam a companhia a criar um ambiente que indivíduos, incluindo seus empregados, possam manifestar preocupações sem medo de represálias.
“Embora a causa exata do rompimento da represa de Fundão ainda seja desconhecida, tais eventos não deveriam ocorrer jamais. O incidente assinala a importância de regras de licenciamento rígidas, de monitoramento regulatório adequado de planos de contingenciamento.”
Mecanismos legislativos, financiamento de campanha e falta de transparência preocupam especialistas
O Grupo de Trabalho elogiou a proposta de lei 3312/2016 do governo de Minas Gerais enviada em março desse ano à Assembleia Legislativa do estado. O projeto busca garantir os direitos humanos de populações afetadas pelo planejamento, implementação e operação de represas, barragens e outros projetos.
Capacidade do governo de monitorar operações de empresas pode, em alguns casos, ser afetada pelos processos de financiamento político.
Ao mesmo tempo, os especialistas independentes notaram, com preocupação, tendências que parecem ir na direção contrária. É o caso da aprovação — por uma comissão do Senado — do projeto de lei 654/2015, que pretende acelerar e reduzir o processo de licenciamento ambiental para obras de infraestrutura consideradas estratégicas e de interesse nacional.
O Grupo de Trabalho também destacou as propostas de emendas (5807/2013) ao Código de Mineração que incluem a eliminação de certas proteções ambientais. As alterações sugeridas dariam à companhia mineradora encarregada o direito de usar água para operar minas sem proteger esse recurso para o uso humano.
Os relatores da ONU expressaram preocupação ainda com a utilização crescente do mecanismo legal da “suspensão de segurança”. Essa intervenção permite ao presidente de um tribunal superior suspender, a pedido de uma entidade pública, decisões legais de uma instância jurídica inferior que interditem o prosseguimento um projeto de desenvolvimento.
A liberação do empreendimento é justificada “por se tratar de uma questão de interesse público”. O Grupo de Trabalho foi informado por promotores de que este é um “mecanismo atípico que não pode ser contestado uma vez que a decisão de instância superior é tomada e favorece o governo federal”.
“Este parece ser um instrumento desproporcional, cujo uso poderia lançar o poder do governo federal contra comunidades afetadas.”
Outro receio do Grupo de Trabalho é a “influência corporativa indevida sobre processos políticos e regulatórios”. A “capacidade do governo de monitorar operações de empresas pode, em alguns casos, ser afetada pelos processos de financiamento político e por lobby corporativo”.
De acordo com os especialistas, “tais percepções foram agravadas por uma série de escândalos de corrupção envolvendo grandes companhias e políticos eleitos”.
Segundo o Superior Tribunal Eleitoral, cerca de 76% dos mais de 3 bilhões de reais em doações feitas durante as campanhas eleitorais de 2014 para a Presidência, o Senado e o Congresso vieram de entidades corporativas. A proporção representa um aumento de 10% na comparação com 2006.
“Isso merece uma atenção cuidadosa não somente pelo problema da corrupção, mas porque essa influência indevida pode facilmente minar a proteção aos direitos humanos, por exemplo, por meio do enfraquecimento das leis e políticas públicas ou limitando a responsabilização nos casos de abusos cometidos por empresas”, disse Pesce no Conselho de Direitos Humanos.
O Grupo de Trabalho destacou a importância da aplicação de leis anticorrupção que têm garantido a responsabilização de funcionários públicos e de empresas privadas, de políticos e dirigentes de grandes companhias.
“O Brasil tem os instrumentos para tratar desses problemas”, acrescentou Pesce, recordando a decisão do Supremo Tribunal Federal — pela ação direta de inconstitucionalidade 4650 — que proibiu o financiamento empresarial de campanhas politicas. Os especialistas recomendaram ao país que elabore e implemente um plano nacional sobre direitos humanos e empresas.
“O processo de desenvolvimento de um plano desse tipo deve contribuir na identificação de áreas de risco elevado e na seleção de leis, regulações, políticas e mecanismos de controle que devem ser priorizados e reforçados e na determinação de formas para melhorar o acesso a reparações para vítimas do impacto adverso sobre os direitos humanos relacionados à ação de empresas”, concluiu Pesce.
O relatório ressalta ainda a falta de transparência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que não divulgou informações sobre avaliações que medem os impactos sociais e ambientais de projetos financiados no Brasil e em outros países.
O Grupo de Trabalho da ONU esperava que o organismo financeiro contasse com exigências mais explícitas em seus projetos de financiamento, que incluíssem garantias contra impactos sobre os direitos humanos.
Especialistas esperam liberação de ‘lista negra’ do trabalho escravo no Brasil
Os especialistas independentes descreveram como uma ferramenta eficaz na promoção dos direitos humanos no mercado o instrumento da “Lista Suja” — iniciativa do então Ministério do Trabalho e Emprego para expor companhias que usam trabalho escravo em suas cadeias de produção.
Empresas citadas foram proibidas de firmar contratos com o governo e ter acesso a crédito e financiamento público. Apesar de positiva, a Lista teve sua publicação proibida por determinação do Supremo Tribunal Federal. Organizações de direitos humanos têm contestado a decisão da corte.
Enquanto os processos não são concluídos, o Grupo de Trabalho manifesta seu apoio a medidas como pedidos de liberdade de informação— que garantiram a publicação no passado do nome de empresas envolvidas com trabalho escravo.
É o caso da solicitação feita pelo Repórter Brasil à pasta federal do trabalho, que teve de liberar nomes de companhias. O Grupo de Trabalho espera que suspensão da divulgação da Lista Suja seja anulada logo.
Acesse o relatório na íntegra aqui (em inglês).
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Brasil: Violações de direitos são recorrentes em projetos de desenvolvimento, dizem relatores da ONU - Instituto Humanitas Unisinos - IHU