30 Março 2016
"A análise da crise que o papa emérito, e a maioria dos bispos, apresenta não consegue reconhecer um fato simples: que a nossa 'história' cristã faz cada vez menos sentido às pessoas dos nossos tempos", constata Robert Mickens, editor-chefe da revista Global Pulse, teólogo, trabalhou por 11 anos na Rádio Vaticano e como correspondente do jornal The Tablet, de Londres, em artigo publicado por National Catholic Report, 28-03-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Nos últimos dias, os cristãos viveram a época da Páscoa e entoaram “Aleluia!” uma vez mais.
Isso, porém, não é verdade para todos nós. Nem mesmo entre nós os católicos.
Os fiéis das tradições bizantinas ou orientais – juntamente com os irmãos e irmãs ortodoxos – estão ainda a cinco semanas longe da Páscoa.
É uma das incongruências mais estranhas e perturbadoras do cristianismo global o fato de que os crentes em Jesus Cristo celebram, em grande parte, as duas festas mais importantes de seu credo – o Natal e a Páscoa – em datas bem diferentes.
Somente seis vezes nos últimos 16 anos é que os cristãos do Ocidente e do Oriente celebraram a Páscoa no mesmo domingo. E, felizmente, isso vai acontecer de novo no próximo ano.
Líderes de várias denominações cristãs estão de pleno acordo em que as nossas divisões causam escândalo aos não fiéis e minam os nossos esforços de difundir o Evangelho e levar Cristo a todas as pessoas.
Porém estas divisões são somente uma parte do motivo por que, cada vez mais, aqueles que foram batizados na comunidade cristã – incluindo, e talvez mesmo especialmente, os católicos romanos – estão abandonando suas igrejas ou deixando de lado a religião como um todo. E por que os não batizados não estão sequer interessados em se juntar a elas.
Não. Existe algo mais fundamental e preocupante em jogo.
Isso me veio à mente enquanto lia uma entrevista de Bento XVI recentemente publicada.
A certa altura o Bispo Emérito de Roma lamentou que, desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), tornou-se lugar-comum as pessoas não crerem mais que o batismo é necessário para a sua salvação.
“Por que se deveria tentar convencer as pessoas a aceitarem a fé cristã quando elas podem se salvar mesmo sem ela?”, perguntou-se retoricamente.
Segundo Bento, isso faz parte da “crise” pós-Vaticano II que teve um efeito devastador até mesmo sobre as pessoas que já eram cristãs.
“Tornou-se incerta e problemática a obrigatoriedade da fé e da sua forma de vida. Se há quem pode se salvar mesmo de outras maneiras, não é mais evidente, no fim das contas, por que o próprio cristão está ligado às exigências da fé cristã e à sua moral”, disse o papa emérito.
“Mas se fé e salvação não são mais interdependentes, mesmo a fé se torna imotivada”, observou.
Estas suas palavras me chamaram a atenção imediatamente.
E o que me veio à mente foi a conclusão natural para o que ele falou: qual a moral de ser católico ou de seguir as regras e preceitos da Igreja se, no final das contas, nós não estamos indo para o inferno? (Minhas palavras, e não do papa teólogo aposentado.)
Em outras palavras, o medo do inferno não está mais trazendo os católicos à igreja nos domingos como quiçá os trazia antes do Vaticano II.
Certamente esta afirmação é verdadeira nos países industrializados e desenvolvidos tecnologicamente, onde as pessoas alcançaram um grau maior de segurança e formação em comparação com os que vivem nos países em desenvolvimento ou mais pobres.
Medo de Deus. Medo da condenação eterna. Medo de ir para o inferno.
Sim, estes eram (e, para alguns, provavelmente ainda são) fatores motivadores fortes para se “ter fé”. Mas poder-se-ia argumentar que uma religião baseada no medo tem pouco a ver com ter fé ou se esforçar para ser um discípulo de Jesus Cristo.
Essa é uma conclusão a que muitas pessoas dos nossos países desenvolvidos parecem ter chegado.
Quando finalmente libertam suas supostas crenças (ou, pelo menos, da lealdade delas para com uma comunidade eclesial) das conexões com o medo, o que estas pessoas encontram? Uma Igreja grandemente irrelevante para as suas vidas, à parte de ser um grupo social ou rede de amigos (isso para os que têm sorte).
Quando ele ainda era o papa, Bento XVI por vezes culpou o declínio do número de fiéis que vão às missas, a diminuição das vocações ao sacerdócio e praticamente toda e qualquer crise na comunidade eclesial com base na “falta de fé”.
Em sua mensagem de Natal à Cúria Romana em 2011, ele falou extensamente sobre isso, descrevendo uma “lassidão da fé” e sustentando que um “remédio” estava surgindo entre as gerações mais novas, conforme evidenciado nos encontros da Jornada Mundial da Juventude.
Com certeza, pode-se testemunhar alguns sinais muito positivos e esperançosos nestes eventos. Mas há poucos indícios de que algo além de um minúsculo número de jovens que participam das Jornadas Mundiais da Juventude são participantes regulares na Igreja.
A análise da crise que o papa emérito, e a maioria dos bispos, apresenta não consegue reconhecer um fato simples: que a nossa “história” cristã faz cada vez menos sentido às pessoas dos nossos tempos.
Infelizmente, o nosso mito – não como um “fazer crer”, mas como uma narrativa do significado da vida – não é mais necessário ou inspirador para inúmeras pessoas atualmente.
A ciência e a tecnologia têm dado respostas indiscutíveis às perguntas que eram um mistério. A sociologia e a psicologia são vistas oferecendo uma assistência mais digna às pessoas que convivem com a dor, doenças terminais, distúrbios do comportamento, etc., do que o Sacramento da Penitência ou a Orientação Espiritual.
Além disso, as igrejas e as comunidades de fé que continuam a excluir as mulheres dos cargos de decisão e ministeriais, tratando-as como cidadãs de segunda classe, são vistas como anacrônicas e injustas por um número constantemente crescente de mulheres e homens dos nossos dias.
Estas são apenas algumas das coisas que transformaram a maior história já contada – a história do plano e do cuidado amoroso de Deus para com a humanidade, manifesto e modelado por Jesus de Nazaré – numa história chata e mal contada.
Haverá uma forma de a narrativa cristã se tornar cativante e relativamente nova?
Talvez uma maneira seja considerando mais seriamente a antiga máxima: “lex orandi, lex credendi”; ou seja, que o nosso culto e os nossos rituais devam refletir fielmente e dar expressão àquilo que acreditamos e como compreendemos a nossa fé.
“Precisamos redescobrir o que é essencial ao modo de vida cristão, reinventar maneiras de ritualizar este modo e reformular aquilo que tais rituais querem dizer em termos que sejam fiéis tanto aos ensinamentos de Jesus quanto à experiência de viver de acordo com eles”, diz Joseph Martos em um artigo interessante publicado há algumas semanas pelo National Catholic Reporter. [1]
“As doutrinas tradicionais não mais se combinam com a experiência contemporânea de pertença a uma comunidade eclesial, ao matrimônio e ao ministério, sem mencionar o sentido de pecado e a experiência da doença” vivenciados pelas pessoas observa Martos.
O autor chama isso de a desintegração da “unidade da prática e da teologia”. Sustenta que as nossas teologias pós-Vaticano II não conseguiram consertar essa ruptura porque as ideias que aí foram expressas “não mais correspondem ao mundo habitado pela maioria dos católicos”.
Infelizmente, nem a grande narrativa do cristianismo parece fazer sentido para a maioria das pessoas que vivem nas regiões mais desenvolvidas do mundo – pelo menos, não na forma como as nossas igrejas a contam.
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A maior história alguma vez contada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU