25 Novembro 2015
Soa quase como o começo de uma piada infeliz: “Um pastor, um imã e um arcebispo decidem se encontrar”. Esta semana, no entanto, esta situação não serve para uma brincadeira, mas, pelo contrário, para uma explicação importante do porquê o Papa Francisco está determinado a pôr os pés em uma das áreas mais perigosas do mundo.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por The Boston Globe, 21-11-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na quarta-feira Francisco embarca para uma viagem de cinco dias na África, visita que, em princípio, o levará ao Quênia e a Uganda antes de terminar com uma escala, em 29 e 30 de novembro, na República Centro-Africana.
É preciso dizer “em princípio”, pois ainda não está certo que Francisco vai, de fato, visitar este último destino. Na quinta-feira o Vaticano informou que o papa pretende ir, mas também reconheceu que vem monitorando a situação na região quanto à questão da segurança.
Supondo que Francisco vá ao país, a sua presença irá marcar a primeira vez que um papa visitou uma região em guerra. A República Centro-Africana entrou numa fase de violência a dois anos e meio atrás quando rebeldes muçulmanos da coalizão Seleka tomaram o poder, apoiados por forças do Chade e do Sudão, dando início a assassinatos em represália –grande parte deles feitos por milícias cristãs.
Cerca de 5 mil civis morreram no conflito, e um quarto da população de 4.6 milhões teve que se deslocar. No começo deste mês, outras 22 pessoas foram mortas em tiroteios em vilarejos rurais.
Diante deste panorama, a vista de Francisco representa uma das coisas mais corajosas que um papa terá feito nos últimos tempos. Esta sua investida é ainda mais dramática, dado a intenção de visitar uma mesquita em uma vizinhança muçulmana considerada como uma região onde se deve evitar fazer visita, pois está sob o domínio de forças jihadistas.
Parte da decisão de ir ao país ou não se encontra do lado dos seus anfitriões, especialmente os “três santos de Bangui”.
Os três são o Rev. Nicolas Guerekoyame-Gbangou, presidente da Aliança Evangélica; o Imã Oumar Kobine Layama, presidente do Conselho Islâmico; e Dom Dieudonné Nzapalainga, de Bangui, presidente da Conferência Episcopal.
Eles representam as principais opções religiosas num país onde 50% da população é protestante, 30% católica e 15% muçulmana. Estes líderes eram grandes amigos já antes de o conflito irromper, e desde então os seus laços de amizade se aprofundaram.
Juntos, os três têm viajado pelo país visitando áreas assonadas pela violência, realizando encontros comunitários para a reconstrução da confiança entre os moradores. Os religiosos promovem uma série de “escolas da paz” onde crianças de todas as religiões podem estudar; eles mantêm centros de saúde abertos a todos os credos.
No ano passado, os religiosos viajaram ao exterior para pedir por intervenção a fim de deter o derramamento de sangue, ocasião em que se encontraram com o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon em Nova York e com o Papa Francisco em Roma. O trabalho de base deles levou ao destacamento de uma força de paz da ONU para o país em 2014.
Foi o jornal francês Le Monde quem apelidou os religiosos de “os três santos de Bangui”. A revista Time os incluiu entre as 100 pessoas mais influentes no mundo em 2014, e a ONU os reconheceu com o Prêmio Sergio Vieira de Mello 2015 para a paz.
Estamos diante de uma amizade real, não apenas para se tirar belas fotos de jornais e revistas.
Em dezembro de 2013, quando milícias cristãs atacaram a vizinhança muçulmana onde Layama vivia, Nzapalainga convidou o imã e sua família a se mudar para a sua residência pessoal na Paróquia de São Paulo. Eles ficaram aí por cinco meses.
“Quando a vida de um irmão está ameaçada, devemos fornecer ajuda”, disse Nzapalainga, acrescentando que a experiência “nos aproximou e muito”.
Para dar um outro exemplo: em agosto de 2013, Guerekoyame-Gbangou foi jogado na prisão após criticar o então presidente François Bozizé. Em resposta, Nzapalainga exigiu ser encarcerado junto com o amigo.
“Eu pedi um saco de dormir de forma que eu pudesse ficar com o Rev. Nicolas. Não importa quanto tempo iria durar, três dias ou [vários] meses, eu estava determinado a permanecer na prisão com ele”, disse o religioso ao World Watch Monitor.
Envergonhado, o ministro do Interior soltou Guerekoyame-Gbangou.
Por repetidas vezes os três colocaram suas vidas em risco. No último mês de fevereiro, por exemplo, eles visitaram uma igreja em Bangui para uma sessão de conversa. Quando chegaram, uma multidão indignada estava planejando um linchamento, após saber que um imã havia sido levado para o lugar por um ex-membro da Seleka. Os religiosos escoltaram o homem para dentro da igreja e se recusaram a entregá-lo. Ficaram cercados por um grupo furioso desde as 7h até as 16h, sem alimentos e sem água, até que alguns pacifistas vieram em seu resgate.
Estes riscos não são ocasionais, mas constantes.
No mês passado, Guerekoyame-Gbangou por pouco não morreu quando um atirador muçulmano invadiu a casa em que mora na capital Bangui. Ele havia saído uma hora e meia antes, mas duas outras pessoas tiveram as gargantas cortadas – tragicamente, eram pessoas deslocadas que haviam recebido moradia por inciativa do pastor.
A principal mensagem deles é que o conflito não é religioso ou sectário, mas sim por motivos econômicos e pelo autointeresse político. (Entre outras coisas, a República Centro-Africana é o 12º maior exportador de diamantes do mundo, e as suas minas a céu aberto são conhecidas pela qualidade de suas pedras preciosas. O controle das minas é um importante objetivo de todos os lados.)
Se a paz vier para a República Centro-Africana, a maioria dos analistas acredita que os três santos de Bangui vão merecer grande parte dos créditos. Numa região na qual a religião é, muitas vezes, vista como uma fonte de conflitos, estes líderes oferecem um contraexemplo de que ela pode ser parte da solução.
Parece que, para Francisco, lançar uma luz sobre esta amizade inter-religiosa notável faz valer a pena correr riscos.
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Sob risco pessoal, Francisco deverá destacar a amizade inter-religiosa na África - Instituto Humanitas Unisinos - IHU