16 Dezembro 2014
A República Centro-Africana está sendo dilacerada pela violência que coloca cristãos contra muçulmanos, mas três líderes religiosos representando comunidades protestantes, muçulmanas e católicas estão trabalhando juntos para trazer uma reconciliação ao país por meio do diálogo inter-religioso.
A reportagem é de Thomas Reese, publicada pelo National Catholic Reporter, 12-12-2014. Tradução de Isaque Gomes Correa.
O Rev. Nicolas Guérékoyame Gbangou, o Imã Omar Kabine Layama e Dom Dieudonné Nzapalainga eram amigos envolvidos no diálogo inter-religioso antes mesmo de o conflito ter começado, porém o trabalho deles se tornou uma questão de vida ou morte quando rebeldes muçulmanos do grupo Seleka sitiaram a capital sulista Bangui, em março de 2013. Os rebeldes depuseram o presidente François Bozizé e instalaram o seu líder, Michel Djotodia, que foi forçado a deixar o poder depois que uma pressão internacional pavimentou o caminho para a atual governo de transição.
Enquanto isso, os confrontos entre os selekas e a milícia anti-balaka composta de maioria cristã e animistas resultaram em um desconhecido número de vítimas, 200 mil deslocados internos e milhares de muçulmanos abandonando o país. Neste momento, forças de paz francesas e das Nações Unidas estão no país, embora ainda ocorram combates.
Os três líderes religiosos “estão trabalhando juntos, falando uma mesma linguagem no sentido de promover a liberdade religiosa, proteger os direitos humanos e combater o extremismo”, explicou o Imã Layama, representante da comunidade islâmica da República Centro-Africana, numa reunião junto à Comissão para a Liberdade Religiosa Internacional estadunidense no mês passado. “Já estamos trabalhando desde 15 de dezembro de 2012, denunciando os atos do grupo Seleka, a matança, os saques e as violações dos direitos humanos. Estamos trabalhando para sermos ouvidos e dizer não a esta violência”. (Para constar: faço parte desta comissão.)
Os três líderes defendem que o conflito no país, que tem 80% de cristãos e 15% de muçulmanos, não é um conflito religioso, mas sim político e militar.
“Nós nos reunimos para colocar, lado a lado, estes grupos militares/políticos – o grupo Seleka e o governo – e mostrar que esta não era uma crise religiosa”, disse o Imã Layama. “[Quisemos mostrar] que não era ‘todos os muçulmanos contra todos os cristãos’. Definitivamente, esta guerra não é religiosa”.
O arcebispo de Bangui, Dom Nzapalainga, concorda. “Temos muitos jornalistas que vieram ao país. Eles tendem a ver esta situação de uma forma bastante simplista. Muitos estão retratando-a como sendo uma guerra religiosa: os anti-balakas como sendo os cristãos e os selekas como sendo os muçulmanos”, declarou. “Trata-se um ponto de vista muito limitado”.
O Imã Layama ressaltou que o grupo “Seleka compõe-se de 80% de muçulmanos e 20% de cristãos”.
Dom Nzapalainga vê uma série de fatores por detrás da crise, em sua maioria relacionados à injustiça.
“Os selekas se levantaram porque alegavam que sua região tinha sido abandonada, que não tinham voz no governo, que seus recursos ou diamantes estavam sendo roubados e que eram vítimas da falta de atenção do governo”, explicou o arcebispo.
“Em nosso país, os cristãos e muçulmanos sempre viveram juntos e em paz”, falou. “As pessoas não estão lutando por razões religiosas. Elas não dizem: ‘Estamos lutando pela Bíblia’, ‘Estamos lutando pelo Alcorão’, ou por causa do modo muçulmano ou cristão de se vestir. Elas estão lutando por causa de riquezas. Estão lutando por ouro, diamantes, e porque querem ter o poder. São estas as razões do conflito. Estas pessoas não estão dizendo lutar por causa da religião”.
“Quando se tem uma população muito pobre e em que as crianças não têm condições de irem para a escola”, explicou Dom Nzapalainga, “e quando estes grupos armados vêm e propõem outras perspectivas, elas [as crianças] irão segui-los. É isso o que está acontecendo em nosso país”.
O Imã Layama concorda. No começo, os anti-balakas “estavam atacando o governo e buscavam reconquistar o poder. Foi quando vieram para Bangui, quando não conseguiram tomar o poder, que começaram a se virar contra a comunidade muçulmana para aplacarem sua ira. Quando ouviram que as famílias do povoado estavam sendo mortas, vilarejos inteiros foram queimados pelos selekas”.
Quando algumas igrejas e mesquitas foram atacadas, disse Dom Nzapalainga, “eram apenas bandidos, criminosos que estavam querendo opor as duas comunidades uma contra a outra. Não havia líderes religiosos liderando os selekas ou os anti-balakas”.
Em resposta a esta violência, os líderes religiosos viajaram por todo o país, inclusive nos vilarejos ocupados pelo grupo Seleka, pedindo às pessoas para manterem a ordem e não destruir a coesão social no país.
“Reunimos as diferentes comunidades religiosas e líderes religiosos: imãs, pastores e padres”, disse o Imã Layama, e “encorajamos eles a continuarem trabalhando unidos para que pudessem não ser instrumentalizados pela política, porque é isso o que está na base de todo este conflito: a religião estava sendo manipulada por razões políticas”.
Dom Nzapalainga percebeu que o primeiro passo para a reconciliação precisava acontecer no nível dos bairros, vilarejos, onde as pessoas “podem se reunir e conversar sobre o que está acontecendo; elas podem escutar umas às outras e serem ouvidas. É uma forma de terapia. Quem fez o quê? Quem matou quem? É preciso falar sobre estas coisas, para que possa haver uma certa responsabilização e responsabilidade dentro dos vilarejos”.
“Se as pessoas tiverem a oportunidade de falarem umas com as outras e suas preocupações serem ouvidas”, disse, “então estarão mais propensas a se aproximarem do próximo e poderem trabalhar juntas, começando a construir um futuro novo para o nosso país”.
“O segundo passo é que deve haver justiça para as vítimas”, acrescentou o arcebispo. “Muitas pessoas que são vistas pegando em armas e cometendo atos violentos deste tipo recebem cargos nos ministérios e outras funções políticas. É preciso fazer justiça para que as pessoas possam ver que estes criminosos não estarão imunes para realizarem os seus atos”.
Com a ajuda de organizações não governamentais como o Catholic Relief Services e Search For Common Ground, os três religiosos organizaram oficinas para formar líderes religiosos sobre coesão social e resolução de conflitos.
“Nós também realizamos oficinas para políticos, membros do governo de transição e para membros dos grupos Seleka e anti-Balaka, de forma que todos pudessem ter esta formação e se educarem sobre a importância da coesão social e a vida em harmonia”, disse o Imã Layama.
Os líderes religiosos também formaram duas comissões: um composto por jovens e outro por mulheres, onde participam protestantes, católicos e muçulmanos, para “levarem a mensagem às suas comunidades e trabalham em união no sentido de promover uma coesão social, a paz e a fraternidade”, declarou o imã.
O governo de transição e a comunidade internacional estão pressionando por eleições rápidas, mas os três líderes religiosos dizem que isto seria um erro.
“Precisamos ir mais devagar na organização das eleições”, disse o Rev. Gbangou.
“Se organizarmos as eleições nacionais de forma rápida demais, pensando que isso irá resolver o problema”, explicou Dom Nzapalainga, “estaremos cometendo um erro. Os problemas continuarão a existir e a situação irá se explodir, tornando tudo pior do que está”.
É necessário um desarmamento antes das eleições. “Não se pode fazer uma eleição num país onde há uma tal proliferação de armas. Então, temos primeiro que olhar para o desarmamento destes grupos”, disse o arcebispo. “Não se pode ir às urnas e votar quando existem muitas armas circulando. Portanto, precisamos desarmá-los a fim de dar voz à democracia”.
O Rev. Gbangou destacou a importância de um envolvimento formal da plataforma religiosa de cada um deles no diálogo nacional e no processo de reconciliação. “Estamos aí, trabalhando e pondo ações em marcha, assumindo posturas”, disse, “mas nem sempre elas são levadas em consideração”.
Com todos os problemas do mundo, pouca atenção é dada pelos americanos à crise em curso na República Centro-Africana. Porém, estes três sábios da África nos lembram de que a reconciliação e a paz são possíveis se as pessoas de fé trabalharem juntas.
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Três sábios africanos promovem reconciliação através do diálogo inter-religioso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU