05 Agosto 2015
"Talvez não deva nos surpreender que esses grupos estão abraçando a mensagem do pontífice. Não deve causar estranhamento também que a mensagem de Francisco tenha ressoado tão fortemente entre os povos da América Latina", escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado pelo National Catholic Reporter, 31-07-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Os que estão à procura de pistas sobre o que esperar do Papa Francisco quando ele visitar Cuba e os Estados Unidos no final de setembro deveriam analisar a sua viagem à América Latina.
A viagem de oito dias do pontífice a Equador, Bolívia e Paraguai, feita entre os dias 5 e 12 de julho ressaltou quase todos os temas deste pontificado. Em uma penitenciária na Bolívia, disse ele aos detentos: “Não podia deixar a Bolívia sem vir aqui vê-los”. Francisco foi a um bairro ribeirinho no Paraguai, e aí pareceu estar mais animado do que quando se encontrava entre as cerimônias formais, diplomáticas de boas-vindas nos aeroportos dos três países que visitou. No Equador, ele reiterou alguns dos temas centrais de sua encíclica sobre o meio ambiente e, em outra marca registrada sua, quando se dirigia ao clero e aos religiosos, deixou de lado o seu texto previamente preparado e falou sem tomar notas por 30 minutos.
Até mesmo o assunto aparentemente remoto da reforma curial se evidenciou nesta viagem: a sua comitiva foi reduzida e ele esteve acompanhado por apenas um cardeal do Vaticano.
O discurso principal da viagem, quando Francisco se encontrou com líderes comunitários de todo o mundo em Santa Cruz, na Bolívia, no dia 9 de julho, já está até sendo chamado de “miniencíclica”. Francisco foi implacável em sua crítica do capitalismo contemporâneo. Depois de listar muitos dos males da sociedade moderna, declarou: “E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia – um dos primeiros teólogos da Igreja – chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. É este o esterco do diabo”.
Eis é uma linguagem dura que os críticos americanos do papa não podem simplesmente ignorar.
Francisco desafiou os cristãos a fazerem mais do que “mera filantropia” ao abordar a desigualdade social. “A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia”, disse ele à multidão. “É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento”.
Nada disto é um rompimento dramático de que lemos em Evangelii Gaudium, exortação apostólica que Francisco lançou em novembro de 2013. A novidade, no entanto, foi que ele especificamente convidou os líderes comunitários a se ocuparem com a luta pela justiça e para trabalhar para a mudança estrutural.
“Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos nós que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?”, perguntou. “Se isso é assim – insisto – digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos. (...) E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”.
Joseph McKellar, da organização comunitária fundada por um jesuíta e chamada PICO, esteve entre os quatro líderes comunitários filiados a tal organização que participaram do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, onde Francisco proferiu este seu discurso escaldante. “Está claro que as organizações de base estão no coração do Papa Francisco e que ele considera o trabalho pela mudança estrutural uma dimensão fundamental da nossa fé católica”, disse McKellar ao National Catholic Reporter.
Os tempos estão mudando. A alguns anos atrás, não estava claro se a Campanha Católica para o Desenvolvimento Humano – ação de base da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos – iria sequer sobreviver aos ataques lançados sobre ela pelos católicos conservadores que estavam angustiados pelo fato de que alguns dos grupos com os quais a Campanha estava colaborando não compartilhavam de todos os artigos que compõem os ensinamentos da Igreja sobre a moralidade sexual.
Hoje, temos o papa não só se dirigindo aos líderes comunitários, mas também se identificando com o seu trabalho.
Anthony Annett, que trabalha no Earth Institute, da Universidade de Columbia, acha que o papa não estava somente falando para as pessoas presentes naquele encontro com os movimentos sociais, mas também a seus críticos, muitos dos quais vivem aqui nos EUA e que estão receosos de que o papa diga coisas semelhantes quando estiver em visita no mês setembro próximo.
“Este discurso não pretende ser uma resposta aos críticos do papa, mas bem poderia ser”, diz Annett. “Os críticos americanos do papa frequentemente distinguem o capitalismo americano virtuoso de seu tipo vicioso argentino. Francisco diz que, no intuito de evitar qualquer mal-entendido, os problemas gerados pelo atual sistema econômico – exclusão, desigualdade, destruição do meio ambiente – são de natureza global e afetam a humanidade como um todo. Se isso não bastasse, ele identifica um novo colonialismo sob a influência de Mamon [o “Senhor do dinheiro”], que agora restringe a liberdade e soberania”.
O presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, John Boehner, que receberá o papa quando este discursar ao Congresso em setembro, deverá estar se perguntando se foi, ou não, uma boa ideia convidá-lo, em primeiro lugar.
“Uma outra posição comum dos críticos é que a economia de mercado global simplesmente precisa de um pouco mais de honestidade e de um Estado de Direito forte para que se alcancem resultados virtuosos”, Annett acrescenta. “Francisco pensa diferente. Por repetidas vezes, ele denuncia todo este sistema que – a partir de sua ‘servidão ao individualismo’ e da ‘mentalidade de lucro a qualquer preço’ – fere a Terra e nega os direitos básicos a milhões dos nossos irmãos e irmãs. Este sistema corre na contramão do plano de Jesus, diz Francisco. E porque o problema é um problema com o sistema, uma mudança de verdade deve ser uma mudança estrutural. O sistema está podre. É uma economia que mata. E, assim, a mudança se faz urgente”.
As palavras do papa foram além do universo católico também. Damon Silvers é diretor de política e assessor especial da AFL-CIO [1] e não é católico. Assim ele diz ao National Catholic Reporter: “O que o papa tem falado é, simplesmente, espantoso. Eu não consigo me lembrar de algum líder religioso que falasse tão abertamente sobre justiça econômica e de como isso está no cerne daquilo que nós, como seres humanos, devemos ser uns com os outros”.
PICO, Earth Institute e AFL-CIO. Talvez não deva nos surpreender que esses grupos estão abraçando a mensagem do pontífice. Não deve causar estranhamento também que a mensagem de Francisco tenha ressoado tão fortemente entre os povos da América Latina. Mas como os americanos mais conservadores reagirão se o papa trouxer uma mensagem semelhante em sua viagem ao país?
Se o papa for simplesmente recitar palavras parecidas às que ele proferiu na Bolívia a líderes comunitários, ele com certeza não atrairá o tipo de elogio amplo que ganhou na América Latina. Mas a viagem de Francisco não se reduz apenas às suas palavras; ela conta também com os seus gestos.
Vê-lo abraçar tantas pessoas carentes e crianças quanto possível, ver a maneira como ele fica animado ao caminhar através de bairros pobres, e mesmo os olhares nos rostos das pessoas que o encontram... constituem imagens poderosas, evocativas que ressoarão no Brooklyn e em Peoria, tanto quanto ressoaram na Bolívia e no Paraguai.
As pessoas percebem que o papa está pegando duro, e não com uma crítica econômica em si, mas com o Espírito Santo, e que a sua crítica econômica não decorre de horas gastas lendo compêndios sobre o tema, mas de tempo empregue em oração. O seu abraço alegre aos pobres pode ser um reproche para alguns, mas certamente coloca todos aqueles que o vê comunhão com Jesus de Nazaré, de uma forma que não víamos em um papa há tempos. Não são apenas as palavras do papa, mas sua evocação da Palavra que testemunhamos na América Latina.
Em setembro, veremos como esta evocação se apresentará nos Estados Unidos.
Nota:
[1] Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais.
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Será que a mensagem do Papa Francisco encontrará resistência nos EUA? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU