10 Julho 2015
"Papa Francisco ensina que “existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra”. Sempre que uma destas relações se rompe, as demais se rompem também. Esta é a ideia da ecologia integral.", escreve Anthony Annett,trabalha no Earth Institute at Columbia University emembro do movimento Religions for Peace, em artigo publicado por Commonweal, 07-07-2015. A tradução de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, apresentou a primeira resposta oficial da Igreja às rápidas mudanças econômicas na sequência da revolução industrial. Leão interpretou os sinais dos tempos com grande clareza e condenou tanto o coletivismo socialista como o capitalismo selvagem, que levava a desigualdades escancaradas e graves injustiças contra as classes trabalhadoras e os pobres. A doutrina social da Igreja começou a se desenvolver sobre esta base, aplicando os princípios da tradição cristã às circunstâncias particulares da era industrial. Ela convidava a uma correção das disfunções que permeavam as economias modernas, em especial buscando uma relação mais equilibrada e equitativa entre o capital e o trabalho.
Na era do pós-guerra, a Igreja também começava a prestar mais atenção aos desequilíbrios gritantes entre os países mais ricos e os mais pobres, e não só entre os ricos e os pobres em um único país. Observando que o excesso e o superconsumo muitas vezes tinham, como contrapartida, a exclusão e o subdesenvolvimento, a Igreja pediu por uma maior solidariedade global entre o norte e o sul, e aos cidadãos dos países mais ricos ela instou que se afastassem de estilos de vida caracterizados pelo desperdício e pelo excesso.
É justo dizer que, até este momento, a maior parte do ensino social católico tem sido uma variação deste tema básico: a necessidade de as relações econômicas entre pessoas e nações estar orientada pela justiça e pela responsabilidade mútua. Este tema continua a ser muito pertinente em nosso mundo atual, com uma enorme desigualdade. Apenas 1% da população mundial controla metade da riqueza do mundo. Mais de 2 bilhões de pessoas estão atolados na pobreza extrema, e quase 1 bilhão passa fome. Em outros lugares, nem sempre muito distantes, vemos opulência e desperdício espantoso. O ensino social católico sinaliza um claro imperativo moral para se corrigir esses desequilíbrios.
O que faz encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco se destacar nesse ambiente é que, enquanto afirma fortemente este foco tradicional, ela também vai além. Isso é o que faz ser Laudato Si’ o mais significativo acréscimo ao corpus do ensino social católico desde Rerum Novarum. Em essência, esta nova encíclica sugere que as nossas responsabilidades se estendam ao longo do tempo bem como do espaço, e que estas responsabilidades incluem a totalidade da criação. Laudato Si’, portanto, desenvolve uma noção mais ampla de solidariedade: uma solidariedade não só no dentro das gerações, mas também entre as gerações, e uma solidariedade não só com os nossos companheiros seres humanos, mas também com toda a terra e suas criaturas.
Esta noção mais robusta de solidariedade não é uma inovação, mas Laudato Si’ a coloca bem no centro da doutrina social da Igreja, e fornece uma base teológica sólida para tal centralidade. Desde o título até a oração final, esta encíclica está impregnada com a espiritualidade de São Francisco de Assis, que afirma um parentesco próximo entre a humanidade e o mundo natural. Uma implicação disso é que todas as criaturas têm um valor inerente, e todos têm a sua própria finalidade, para além da sua utilidade para nós.
É claro que tal visão de mundo possui profundas implicações para o comportamento humano. Voltando ao livro de Gênesis, o Papa Francisco ensina que “existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra”. Sempre que uma destas relações se rompe, as demais se rompem também. Esta é a ideia da ecologia integral. É a mensagem central da encíclica, e não é apenas uma mensagem teológica; ela igualmente tem importantes implicações políticas.
O Papa Francisco é contundente – e convincente – quando trata da extensão da degradação ambiental. Ele escreve que “a terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo”. Baseando sua análise sobre as provas sólidas da ciência, ele argumenta que o nosso atual modelo econômico global se tornou imprudente e insustentável, extrapolando alguns limites planetários fundamentais.
Quando Rerum Novarum foi escrita, uma grande transformação econômica – impulsionada pela queima de combustíveis fósseis – ainda estava na adolescência. Os avanços tecnológicos trazidos pelos motores a vapor, pelas ferrovias e pela produção de aço já estavam bem estabelecidos, mas a eletrificação tinha apenas começado, e a era dos automóveis e produtos petroquímicos – sem precisar mencionar as tecnologias da informação – ainda estavam por vir. Os benefícios econômicos da revolução industrial se restringiam principalmente à Europa e à América do Norte.
Hoje, o cenário econômico difere dramaticamente. A economia mundial é, atualmente, mais de duzentas vezes maior do que era no início da revolução industrial. Mas esta rápida expansão veio à custa do planeta e do clima. Hoje, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera saltou para um nível não visto durante 3000 mil anos – e isso num período de pouco mais de 150 anos, um piscar de olhos na história planetária. A maioria esmagadora das publicações científicas nos diz que, se continuarmos a queimar combustíveis fósseis a este ritmo, poderemos esperar que as temperaturas globais aumentem de 4 a 6 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais até o final deste século. Isso terá implicações catastróficas para a vida como a conhecemos. Deveremos esperar testemunhar secas mais severas, inundações e eventos climáticos extremos. O rendimento das culturas cairia drasticamente. Alguns pequenos países insulares simplesmente deixariam de existir. E os menos responsáveis por estas mudanças climáticas serão os mais atingidos. O Papa Francisco pergunta por qual tipo de mundo queremos deixar a nossos filhos. Certamente qualquer outro, menos este.
Mesmo assim, as mudanças climáticas são não tudo: há também a acidificação dos oceanos, o esgotamento dos recursos de água doce, um rápido desmatamento, a poluição em grande escala causada por produtos químicos e combustíveis fósseis, além de uma degradação dramática dos ecossistemas e da perda de biodiversidade. É notável que Laudato Si’ toca diretamente em muitas destas questões, exibindo uma clara consciência da dimensão e complexidade da crise ambiental. Ela também coloca esta crise dentro de um contexto mais amplo. Como escreve Francisco: “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental”. Estamos causando um mal ao meio ambiente, que tem um valor em si mesmo, mas estamos também causando um mal à humanidade, especialmente aos pobres. Como Francisco repete vezes e mais vezes: tudo está interligado.
A solução, de acordo com Francisco, reside no desenvolvimento humano integral e sustentável. Isso significa priorizar o crescimento não apenas econômico, mas também a inclusão social e a sustentabilidade ambiental. Como o papa observa: ela [a solução] deve “combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”. E, embora o desenvolvimento sustentável seja compatível com o crescimento nos países em desenvolvimento, Laudato Si’ adverte que esses países talvez precisem reduzir o seu próprio “crescimento ganancioso e irresponsável”. O objetivo é restaurar o equilíbrio: entre ricos e pobres, entre a humanidade e o mundo natural.
Naturalmente, é mais fácil dizer do que fazer estas coisas. Será necessária uma transformação radical dos hábitos de consumo dos quais a economia mundial depende atualmente. Em conformidade com os ensinamentos anteriores, Laudato Si’ desconfia da ênfase liberal clássica na autonomia e na promoção do autointeresse como a força motivadora principal da interação econômica individual. Francisco entende que uma ideologia baseada no “egoísmo coletivo” e num “mercado divinizado” não pode trazer inclusão social ou sustentabilidade ambiental. Ela conduz, pelo contrário, a um foco exagerado sobre o lucro a curto prazo, e isso contribui para uma cultura do descarte, que despreza tanto a terra como os excluídos. Um exemplo claro dessa miopia pode ser encontrada no comportamento avarento do setor financeiro, a força por trás da crise econômica mundial de 2008.
O objetivo não é apenas o lucro, mas o poder também. A encíclica atribui parte da culpa pela degradação ambiental à nossa atitude acrítica diante da tecnologia: a promessa iluminista de que a ciência supre a humanidade com as ferramentas para dominar a natureza. O Papa insiste que a tecnologia jamais é neutra e que ela pode facilmente permitir que aqueles com conhecimento e recursos dominem os outros e arruínem o mundo natural. Este “antropocentrismo moderno” pode, até mesmo, derivar de uma forma distorcida de cristianismo que enfatiza o domínio em detrimento da administração. Como o Cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga – principal assessor e confidente do Papa Francisco – disse: “o homem se descobre um gigante técnico e um infante ético”.
O caminho daqui para frente, como disposto em Laudato Si’, envolverá a regulação e algumas mudanças na política econômica, porém começará com uma transformação nas atitudes e na cultura. Não será fácil, especialmente para aqueles nos países ricos, que hoje consomem muito mais do que a sua parte justa dos recursos do mundo. Não obstante, a gravidade da situação nos apresenta pouca escolha: ou mudamos os nossos modos ou nos preparamos para um futuro sombrio.
Há algumas boas notícias também. Não é por acaso que o Papa Francisco escolheu para lançar esta sua encíclica ecológica neste momento em particular. No mês de setembro, os líderes mundiais se reunirão em Nova York no intuito de subscrever os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Depois, em dezembro, eles se reunirão em Paris para uma conferência fundamental sobre as mudanças climáticas, que pode ser a última chance para que se chegue a um acordo vinculativo a respeito da redução das emissões de carbono antes que seja tarde demais. De forma encorajadora, os países do G7 concordaram recentemente em abandonar, por completo, a dependência dos combustíveis fósseis ainda neste século. Só este tipo de estratégia de “descarbonização” nos permitirá limitar o aumento das temperaturas médias globais a 2 graus Celsius. Essa estratégia precisa formar a base de um acordo global. Observando o fracasso em conseguir acordos desse tipo no passado, o Papa Francisco reza por um resultado positivo nos próximos debates. E se Laudato Si’ for amplamente lida e bem recebida, ela poderá ser de grande benefício para estes esforços.
Lamentavelmente, o país onde provavelmente esta encíclica vá ser menos bem acolhida é os Estados Unidos, onde a crença no poder libertador tanto da tecnologia como dos mercados é, especialmente, prevalente. Nas últimas décadas, um libertarianismo crasso ressurgiu, auxiliado e instigado por interesses financeiros poderosos. Essa visão de mundo não se coaduna com os princípios tradicionais do ensino social católico – ou com a mais recente ênfase na sustentabilidade, combinada com a necessidade de que os países mais ricos compensem os mais pobres pelo dano ambiental que causam. E, ainda assim, um influente grupo de católicos americanos vem insistindo há décadas que o ensino social católico é perfeitamente compatível com a prática moderna do capitalismo laissez-faire.
Isso ajuda a explicar a ansiedade demonstrada por alguns católicos americanos antes mesmo que encíclica estivesse lançada. Antecipando a crítica do capitalismo laissez-faire e tentando isolar-se dele, alguns críticos argumentaram que o Papa Francisco simplesmente não compreende a economia do mercado: o tipo virtuoso americano, mas sim apenas do tipo argentino, um tipo corrupto. Outros (e às vezes as mesmas pessoas) pediram que o papa não entrasse no debate científico acerca do assunto.
A crítica mais insidiosa de todas é, porém, a de que o desenvolvimento sustentável é apenas uma desculpa para o controle populacional: a redução do número de pobres. Como que antecipando essa linha de ataque, John Schellnhuber, um dos principais cientistas do clima no mundo, disse no lançamento da encíclica que “não é a massa de pessoas pobres que destrói o planeta, mas o consumo dos ricos”. O mesmo ponto é apresentado na própria encíclica. Laudato Si’ também relaciona o aborto a um conjunto mais amplo de preocupações relacionadas com a dignidade humana e com a proteção da terra. Segundo a compreensão da Igreja, o desenvolvimento sustentável é pró-vida: ele se baseia na dignidade de cada pessoa humana, e procura criar as condições para o florescimento humano.
Tal desenvolvimento é o grande desafio do nosso tempo, e vai exigir um empenho em todos os níveis: mundial, nacional, local, bem como pessoal. Ele irá envolver iniciativas políticas arrojadas, juntamente com o cultivo de diferentes hábitos entre os consumidores. O gênio desta encíclica é que ele fornece uma estrutura moral para este tipo de reforma abrangente. Quando este século se aproximar do fim, com certeza as pessoas vão olhar Laudato Si’ tanto quanto nós, neste momento, olhamos para Rerum Novarum, como um toque de clarim oportuno. Será que este toque vai ser ouvido em tempo?
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Como Laudato Si’ amplia o ensino social católico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU