Por: André | 24 Fevereiro 2015
“A nossa esquerda, que desde o golpe de Estado até o momento provavelmente nunca foi uma opção real de poder, tem diante de si muito para aprender e crescer. Particularmente, no plano da comunicação de massas e na disputa pelos imaginários, terreno no qual a experiência do Podemos pode ajudar. Somos uma esquerda rápida para os adjetivos e as desqualificações (que são reformistas, que estão correndo para o centro); mais útil, porém, é a compreensão do fenômeno em sua complexidade. Necessitam-se menos fórmulas herdadas e mais análises sobre as atuais coordenadas históricas tanto materiais como simbólicas.” A reflexão é de Rodrigo Alonso, em artigo publicado no sítio Rebelión, 23-02-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
A dinâmica política do Estado espanhol das últimas décadas foi, para muitos, um modelo exemplar de gestão política de longo prazo e de êxito na consolidação da democracia liberal. A alternância eleitoral entre um partido de direita e um de centroesquerda ou socialdemocrata parecia ser um jogo de fantoches perfeito para combinar uma mudança nas formas com a continuidade do conteúdo. Um bem aceito bipartidarismo monoclassista.
Mas esse “pacto de cavalheiros’ defrontou-se com dois obstáculos. Por um lado, a crise econômica (hoje o desemprego está perto dos 24%) e a paulatina “periferização” da Espanha. O S de PIGS refere-se a Spain e se disse de forma ocorrente que se trata de um país em “desenvolvimento”. A crise é uma base material necessária. Nunca se alterou uma ordem no marco da satisfação geral, mas não suficiente.
O outro elemento que confluiu foi a emergência de uma arriscada aposta político-eleitoral que soube ler o momento e em menos de um ano de existência chutou o tabuleiro político espanhol. Trata-se do Podemos, o partido liderado pelo cientista político e jornalista televisivo de 36 anos Pablo Iglesias, que, em maio de 2014, após quatro meses de fundação, apresentou-se às eleições europeias onde obteve um pouco mais de 1.250.000 votos e fez cinco eurodeputados e hoje é colocado em várias pesquisas de opinião como a maior força em intenção de votos para as próximas eleições gerais no final deste ano. [1]
Como fez uma força política com menos de um ano criada para redefinir um cenário político que parecia sólido e posicionar-se seriamente como opção de poder eleitoral? Mesmo sabendo das enormes diferenças entre o curso histórico espanhol e o uruguaio, que ensinamentos podemos extrair do fenômeno Podemos para alimentar a ação política da “nossa esquerda”? [2]
Seguindo as contribuições de Iñigo Errejón em seu breve e interessante artigo “O Podemos para leitores latino-americanos” [3], assinalam-se ao menos três pontos que podem nos ajudar a problematizar a nossa ação política daqui para frente.
Um. Propostas eleitorais e lideranças podem dinamizar organicidade popular e abrir novos cenários políticos.
Há um velho axioma em parte da nossa esquerda que diz que o acúmulo de forças se dá primeiro “abaixo” (tomada de consciência, organização de base) e depois, eventualmente, pode seguir uma expressão “por cima”, isto é, uma aposta eleitoral. A experiência do Podemos sugere que se pode dar o processo inverso. Quando as condições são propícias, a construção de uma opção eleitoral, seu posicionamento público em termos de massas e determinadas lideranças, podem catalisar grandes segmentos de descontentamento acumulado, unir forças dispersas e dinamizar processos organizativos de “abaixo” promovendo a construção de poder popular (assembleias locais, círculos políticos em nível de bases, incorporação de grandes contingentes à militância ativa). Talvez a Venezuela seja outro exemplo desta dinâmica invertida, onde um catalisador como Hugo Chávez acaba ganhando a eleição de 1998, partindo em duas a história venezuelana e abrindo um novo cenário assinalado por um processo de construção de poder de base em grande medida impulsionado pelo próprio Estado.
Dois. O assalto do senso comum.
O discurso do Podemos, mesmo sendo de esquerda e crítico das políticas de austeridade impulsionadas por sucessivos governos na Espanha, inovou nas formas. Em um elemento básico como é a delimitação do “nós” e o “eles” esquivaram a clássica polarização esquerda versus direita e a substituíram por “acima” versus “abaixo” ou a “casta” versus a “população”. Nessa nova demarcação da fronteira foi possível acrescentar uma maior quantidade de identidades.
Outro elemento chave é o uso no discurso de “significantes vazios” (democracia, país, bem-estar, mudança, população, justiça). Trata-se de conceitos universais de uso corrente e legitimados no senso comum, que ao mesmo tempo são tão amplos que a priori não dizem nada e, portanto, incluem a todos. Aqui a disputa não passa pelas palavras, mas pelo seu conteúdo. É possível falar com palavras “normais” e que, além disso, fazem parte do instrumental simbólico da ordem, sempre e quando as ressignificarmos e as politizemos em um sentido emancipador. Por exemplo, se as identidades de classe não identificam e, atualmente, o mais arquetípico dos operários com seu macacão de trabalho azul, provavelmente se reconhece antes como morador de algum bairro, torcedor do Peñarol ou membro da classe média do que como classe operária, então é preciso ter flexibilidade tática para apoiar-se em outros elementos simbólicos que, sim, identifiquem (“população”, “povo”, “maioria”), embora isto não implique necessariamente deixar de fazer uma política com conteúdo de classe. Na hora da disputa dos imaginários e da construção do discurso importa menos o que objetivamente é um sujeito e mais como este se reconhece a si mesmo.
Qualquer força que parta de uma situação de minoria e, portanto, precise crescer e abrir-se a si mesma o espaço político para existir, não pode começar o caminho entrando em colisão direta com o senso comum de seu tempo. É preciso conectar-se com ele, assentar-se nele e a partir daí ressignificá-lo. Se, pelo contrário, a estratégia passa por afirmar-se nas características identitárias mais específicas e, portanto, mais diferenciadoras, então o resultado mais provável será a marginalidade política.
Três. A importância do midiático.
Finalmente, o fenômeno Podemos nos fala também da importância da presença midiática para a disputa pela hegemonia. Pichações, adesivos e panfletos são fundamentais, mas atualmente a maior campanha de propaganda de rua talvez não alcance o impacto de poucos minutos em um meio de comunicação massivo. Os meios comunitários, por sua vez, podem ser chaves em etapas de defensiva e resistência, mas provavelmente sejam insuficientes para a disputa de sentido em termos de massa.
É claro que a presença nos meios não é uma mera opção; trata-se de um espaço a priori vedado para quem se propõe a alterar uma determinada ordem e, além disso, tem possibilidades reais de fazê-lo (que não é o caso da nossa esquerda no curto prazo). Se não houver uma definição e uma estratégia clara para ganhar um lugar no terreno midiático, os poucos segundos com possibilidades para emitir uma mensagem a ser recebida por massas será quando algum programa matinal convidar um militante como quem convida uma pessoa que diz ter avistado um óvni em Lavalleja, ou seja, como uma curiosidade ou uma extravagância pitoresca.
Queiramos ou não, atualmente, grande parte da política transcorre na base da existência midiática, fazer de conta que esse terreno não existe ou é inexoravelmente hostil é deixá-lo inteiramente ao adversário e, portanto, renunciar à disputa pelo poder.
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Não sabemos o que, finalmente, acontecerá com o Podemos. Em princípio, abriu uma interessante fenda em um sistema político que parecia sólido, mas nada garante que não acabe sendo mais que uma nova bomba de fumaça eleitoral ou uma nova peça de reposição para a sobrevivência do poder de classe em uma Espanha com um bipartidarismo em crise. Mais além da sorte que possa correr, com sua curta existência e audácia concedeu-nos diversos elementos para pensarmos em nossos processos.
A nossa esquerda, que desde o golpe de Estado até o momento provavelmente nunca foi uma opção real de poder, tem diante de si muito para aprender e crescer. Particularmente, no plano da comunicação de massas e na disputa pelos imaginários, terreno no qual a experiência do Podemos pode ajudar. Somos uma esquerda rápida para os adjetivos e as desqualificações (que são reformistas, que estão correndo para o centro); mais útil, porém, é a compreensão do fenômeno em sua complexidade. Necessitam-se menos fórmulas herdadas e mais análises sobre as atuais coordenadas históricas tanto materiais como simbólicas. Talvez desta maneira possamos ir dando forma a um discurso próprio, que sendo simples, forte, emotivo, politizador e agregador de identidades, vá abrindo passagem no imaginário comum, condição necessária embora não suficiente, para a disputa pela hegemonia.
Notas:
[1] Ao menos três dos principais dirigentes do Podemos – Pablo Iglesias, Iñigo Errejón e Juan Carlos Monedero – colaboraram com os governos do Equador, Bolívia ou Venezuela e grande parte de suas teses políticas foram construídas sobre a base do que aprenderam em sua passagem por estes países latino-americanos.
[2] Suponhamos que existe em nosso país, transversalmente aos partidos e às organizações, uma força social que se propõe a aumentar a soberania sobre os espaços econômicos estratégicos e o excedente social, ao mesmo tempo que se aumenta a participação na renda nacional dos setores trabalhadores, se abre espaços no exercício do poder político em chave de democracia protagônica (assalto plebeu à institucionalidade) e se segue aprofundando a agenda de direitos para continuar desmantelando o Uruguai conservador. A algo assim se poderia chamar de “nossa esquerda”.
[3] Errejón, Iñigo (2014). “Podemos” para leitores latino-americanos. www.rebelion.org (acesso 03-02-2015).
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Do Uruguai. O Podemos e nós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU