19 Fevereiro 2015
As três cruzes ficam entre uma estrada de chão e campos de milho no município de Paisnal, localidade que uma vez foi uma fortaleza da guerrilha de esquerda nos redutos rurais de El Salvador. É fácil passar sem perceber o pequeno santuário, mas ele marca o local de uma atrocidade acontecida em 1977 que ajudou a transformar Oscar Romero, arcebispo do país, em uma das figuras mais polêmicas e controversas da história moderna do catolicismo romano.
A reportagem é de Philip Sherwell, publicada no sítio do jornal britânico The Telegraph, 17-02-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
O Papa Francisco, um companheiro clérigo latino-americano que defende os pobres, anunciou este mês que o Vaticano reconheceu Dom Romero, tardiamente, como um mártir, depois de ele ter sido morto por um esquadrão da morte de direita enquanto celebrava a Santa Missa, em 1980.
Esse processo coloca-o em um caminho rápido para a beatificação e uma canonização possível, algo que foi longamente deixado de lado na política do Vaticano. Para figuras poderosas com o ouvido ligado em pontífices anteriores, a oposição aconteceu porque o arcebispo era um herói da teologia da libertação, a doutrina de esquerda que promove a justiça social.
Abatido por uma única bala enquanto se preparava para a Comunhão, seu santo sangue molhou o pão que estava em suas mãos no altar. Sua morte foi o mais notório e simbólico evento das sangrentas guerras civis da América Central.
Ele foi assassinado apenas um dia depois que implorou aos soldados, em nome de Deus, para deterem a matança de civis, em uma poderosa homilia feita na catedral da capital.
No entanto, quando Romero foi nomeado arcebispo em 1977, ele foi aclamado pela hierarquia conservadora católica tradicional que apoiava a oligarquia dominante do país e os militares.
Menos de um mês depois, vieram os acontecimentos sanguinários em Paisnal. Padre Rutilio Grande, um sacerdote local e defensor proeminente da população rural pobre, estava dirigindo seu carro juntamente com um paroquiano idoso e um coroinha adolescente quando assaltantes os atacaram.
Eles metralharam o veículo com tiros, matando todos os três. O jesuíta progressista, amigo de Romero, foi o primeiro sacerdote assassinado do país que deslizava rumo a um conflito brutal, com suas selvas e montanhas agindo como um campo de batalha da Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos.
A indignação estimulou uma conversão na própria visão de Romero sobre a vida. "Quando eu olhei para Rutilio caído morto, eu pensei: 'Se eles o mataram por aquilo que ele estava fazendo, então eu também tenho que trilhar o mesmo caminho'", teria dito ele mais tarde.
Ele assumiu uma posição cada vez mais radical contra os militares, a pobreza e a injustiça social e em prol dos direitos humanos.
"Dom Romero não tinha acreditado em todas as histórias prévias acerca dos excessos dos militares", disse Yesenia Alfaro, funcionária do município de Paisnal, onde as bandeiras vermelhas dos ex-guerrilheiros da FMLN estão por toda parte antes das eleições parlamentares. "Foi o assassinato do padre Rutilio que abriu os seus olhos".
A Santa Sé fez o mesmo ponto esse mês. "É impossível conhecer Romero sem conhecer Rutilio Grande", disse o arcebispo Vincenzo Paglia, uma autoridade do Vaticano que liderou o esforço para homenagear Romero.
De fato, o Papa Francisco anunciou que o Vaticano abriu o processo de beatificação para o próprio padre Rutilio Grande.
O caso Romero foi esquecido pelo Vaticano durante anos por causa de preocupações de alguns acerca de sua associação com a teologia da libertação, o ramo do catolicismo visto como socialista por muitos clérigos conservadores.
O Papa João Paulo II foi um forte inimigo do comunismo. De acordo com o então cardeal Joseph Ratzinger (mais tarde, Papa Bento XVI), a Congregação para a Doutrina da Fé havia lançado uma repressão contra a teologia da libertação, temendo aquilo que era visto pelos conservadores da Igreja como excessos marxistas.
Mas, em uma de suas primeiras ações depois de se tornar pontífice, o Papa Francisco disse que tinha "desbloqueado" o processo de Romero.
"Tivemos que esperar pelo primeiro papa latino-americano para beatificar Romero", disse o arcebispo Paglia. "Há claras semelhanças entre o Papa Francisco e Romero, e a sua visão de uma Igreja pobre para os pobres".
Ele defendeu veementemente o decreto de que Romero foi um mártir - morto "por ódio à fé" ao invés de sua política - observando que seu assassino o atingiu enquanto ele estava rezando a missa.
"Eles queriam matá-lo no altar", disse o prelado, uma referência histórica ao assassinato de Thomas Becket, o arcebispo inglês do século XII.
Trinta e cinco anos depois, ninguém sabe melhor do que Marisa D'Aubuisson o quão divisiva a figura do arcebispo Romero foi e ainda é em El Salvador.
Descendente de uma das famílias mais poderosas do país, ela era uma acólita do clérigo enquanto seu falecido irmão, Roberto D'Aubuisson, era o major do exército amplamente responsabilizado por planejar e ordenar o assassinato.
"Dom Romero foi tanto a figura mais amada quanto a mais odiada em El Salvador", disse ela. "Ele era realmente amado pelos pobres e muito odiado por seus inimigos políticos, e isso incluía membros do clero, bem como os militares".
"Nos anos de terror, Dom Romero foi a voz de todos aqueles que não tinham qualquer voz própria. Essa notícia de Roma é uma reivindicação de tudo o que eu defendia e que meu irmão era contra".
"O dia da morte de Oscar Romero foi duplamente terrível para mim. Primeiro, eu ouvi a notícia horrível de seu assassinato. E, então, ouvi as pessoas na rua, gritando que tinha sido D'Aubuisson quem fizera isso".
O inquérito da Organização das Nações Unidas responsabilizou D'Aubuisson por planejar o assassinato, mas ele nunca admitiu seu envolvimento antes de morrer de câncer. Para muitos da direita, ele foi um herói nacional que lutou contra o avanço do comunismo no auge da Guerra Fria.
De fato, em um sinal de seu legado duradouro, o partido Arena, fundado pelo major, está em uma corrida acirrada contra os ex-rebeldes do FMLN conforme pesquisas de opinião para as eleições de 1º de março.
Fotos: Philip Sherwell/The Telegraph
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Como o arcebispo ''morto no altar'' por um esquadrão da morte em El Salvador começou sua estrada para o martírio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU