09 Fevereiro 2015
A decisão do Papa Francisco em declarar mártir Dom Oscar Romero vem após algumas décadas de controvérsias e debates dentro da Igreja.
Este arcebispo foi assassinado enquanto rezava uma missa em 1980, poucos dias depois de ter pedido aos soldados salvadorenhos que desobedecessem os seus superiores caso fossem ordenados a atacar civis inocentes. A guerra civil salvadorenha (1972-1992) acabaria tirando cerca de 75 mil vidas.
O comentário é de Thomas Reese, jornalista e jesuíta, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-02-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando ele foi nomeado arcebispo em 1977, era considerado um conservador que não iria atrapalhar em nada na situação em que se encontrava o país. Ver como o seu povo e seus sacerdotes eram tratados pelos militares o transformou.
“Após dois anos como arcebispo de San Salvador, Romero contabilizou 30 padres a menos – mortos, expelidos ou forçados a fugir da morte”. Dom Vincenzo Paglia, presidente do Pontifício Conselho para a Família e postulador da causa para a beatificação de Romero, disse numa coletiva de imprensa no dia 4 de fevereiro no Vaticano: “Os esquadrões da morte mataram dezenas de catequistas das comunidades de base, e muitos fiéis desapareceram destas comunidades”.
Três semanas depois da instalação de Romero, o seu amigo o padre jesuíta Rutilio Grande foi assassinado. Após a morte deste, o arcebispo se tornou um franco defensor dos direitos humanos e dos pobres, e seguidamente denunciava os abusos cometidos pelos militares.
Embora hoje a hierarquia salvadorenha esteja acolhendo a sua designação como mártir, na época Romero recebeu pouco apoio de seus companheiros bispos, que mais se preocupavam com os revolucionários marxistas do que com os abusos dos militares.
Tampouco recebeu apoio do Vaticano. O Papa João Paulo II pouco sabia sobre a América Latina e recebia conselhos de religiosos conservadores como os Cardeais Alfonso López Trujillo e Angelo Sodano; este último, como núncio apostólico no Chile, fora amigo do presidente Augusto Pinochet.
Quando Romero foi morto, as pessoas simples imediatamente o consideraram um mártir e santo. Mas as coisas na Igreja Católica não são tão simples assim. Exigiu-se um demorado procedimento “que encontrou muitas dificuldades, por conta da oposição ao pensamento do arcebispo e de sua ação pastoral, além da situação de conflito que se desenvolveu em relação a ele”, reconheceu Paglia.
O primeiro passo nesta caminhada foi a outorga do título de Servo de Deus, dado a Romero em 1997, depois que a guerra civil havia terminado e depois que o Muro de Berlim tivesse caído. A atmosfera política mudara drasticamente em 17 anos. O Papa João Paulo II, que concedeu este título a Romero, começou ver a morte deste como semelhante a de um outro bispo também morto no altar: Santo Estanislau, de Cracóvia, Polônia.
Mas o movimento para a beatificação de Romero continuava obstruído. Alguns na hierarquia ainda se oponham à estratégia engajada dele. Outros temiam que torná-lo santo poria uma luz negativa sobre os bispos que não seguiram o seu exemplo. Paglia dá os créditos ao Papa Bento XVI por desobstruir o processo pouco antes de sua renúncia, enquanto o Papa Francisco fez de sua beatificação uma prioridade.
Outro motivo pelo qual o processo foi travado eram os debates sobre se ele tecnicamente se qualificava como mártir ou não. Para alguns, esta era apenas uma desculpa para impedir a sua beatificação, mas para outros se tratava de uma verdadeira dúvida.
Eis o problema. Um mártir é alguém morto por causa do ódio à fé. Os exemplos clássicos são os mártires romanos que se recusaram a adorar os deuses pagãos e foram jogados aos leões. Ou os católicos mortos pelos protestantes por recusarem a se unir à Reforma.
O problema com este enfoque é que se uma pessoa é um mártir ou não depende da motivação do assassino, não da vítima.
Para Romero, isto significa que se quem o matou, assim o fizeram porque o considerou um agitador político, então ele não é um mártir.
Os críticos ressaltam que as pessoas que o assassinaram eram católicos que tinham batizado os seus filhos e que iam às missas aos domingos. Para que ele fosse um mártir, deveria ter sido morto por ódio à fé. Estas pessoas odiavam a fé ou simplesmente odiavam Romero?
De modo semelhante, é assim que tratamos os crimes de ódio nos EUA. Para que seja condenado por crime de ódio, a acusação tem de provar que aquele que atacou estava motivado pelo ódio em relação a uma pessoa por causa de sua raça, religião, orientação sexual, etc. Se isto não puder ser provado, então a ação ainda poderia ser um crime (homicídio, latrocínio, etc.), mas não um crime de ódio.
Uma forma de fugir deste dilema seria a Igreja alterar a definição de mártir de forma que este seja definido mais por suas motivações do que pelas motivações do assassino. O que mata pode simplesmente considerar o mártir como uma ameaça ao seu poder político e/ou econômico, mas a pessoa se qualificaria como um mártir se ele, ou ela, estiver motivada pelo Evangelho em suas palavras e ações – que, por sua vez, inspiraram a reação violenta.
O Vaticano, no entanto, decidiu não mudar a definição de mártir. Em vez disso, expandiu sua definição da “fé” que é odiada para incluir o ensinamento da Igreja sobre a justiça social.
“A sua morte, como o exame documental detalhado claramente mostrou”, afirmou Paglia, “não só foi politicamente motivada, mas deveu-se também ao ódio pela fé que, combinada com a caridade, não ficaria em silêncio quando confrontada com as injustiças que, implacável e cruelmente, afligiram os pobres e aqueles que os defendiam”.
Noutras palavras, os assassinos odiaram a fé que se opôs à injustiça. Para o Vaticano, o melhor aconteceu: declarou Romero um mártir sem ter que mudar a sua definição de martírio.
A questão de quem é ou não um mártir já surgiu antes. O “mártir” mais polêmico do século XX foi a irmã carmelita Teresa Benedita da Cruz, também conhecida como Edith Stein.
João Paulo II a declarou mártir, em grande parte para a consternação da comunidade judaica. Estes argumentaram que ela foi morta em 1942 pelos nazistas porque era judia, não por causa de sua fé cristã. O Vaticano argumentou que ela foi morta depois que os cristãos judeus foram presos, quando os bispos holandeses se opuseram claramente ao racismo nazista.
Declará-la mártir por causa de algo que os bispos fizeram foi um pouco exagerado, para dizer o mínimo.
Então, por que este desejo em declarar mártires? Por que não simplesmente pular esta parte e torná-las santos direto?
O problema é que, para se ser beatificado, é preciso um milagre realizado por Deus em resposta a orações direcionadas ao candidato, a menos que a pessoa seja um mártir. Se se é um mártir, nenhum milagre é exigido para a beatificação. Um milagre é também exigido para a canonização.
Desse modo, um santo em geral exige dois milagres, enquanto que um mártir requer apenas um. Declarar alguém mártir elimina a necessidade de um milagre.
Na última vez que o processo de criação de santos foi reformado, alguns sustentaram a eliminação de todo e qualquer milagre. Não há forma alguma de cientificamente verificar um milagre; tudo o que a ciência pode fazer é dizer que não há explicação científica para o que aconteceu.
A maioria dos milagres de hoje são curas de doenças. Dizer que uma cura foi um milagre é um ato repleto de problemas. Será que não poderia ter sido uma cura espontânea que coincidiu com orações a um santo, mas não causado por elas (as orações)? Será que a cura aconteceu por motivos que nós simplesmente ignoramos hoje, mas que podem ser compreendidos em 20 anos? Além disso, há o pesadelo de todo postulador: O que fazer se o paciente adoecer de novo e morrer da mesma doença após o milagre ter sido declarado?
Eu não defenderia o abandono de nossa crença tradicional nos milagres, mas inexiste razão teológica para insistir em milagres como elementos necessários para a canonização. É simplesmente uma regra. Papas dispensaram esta regra para canonizações.
Seria melhor que a Igreja deixasse de lado a exigência de milagres. O foco deve estar sobre a vida e os ensinamentos dos santos, não em qual milagre eles realizaram.
Sob as atuais regras, Romero irá necessitar de um milagre antes de se tornar santo. Até lá, ele se chamará Beato Oscar Romero.
Mas, talvez, o seu maior milagre seja a forma na qual ele é, agora, uma figura unificadora na Igreja, enquanto que no passado ele foi uma fonte de divisão.
Os pobres sempre estiveram do seu lado. A hierarquia e o Vaticano estão, hoje, juntos com ele. Os teólogos da libertação, que não se envolvem muito com as devoções populares, agora têm um santo em quem podem se espelhar.
Os pobres, a hierarquia, o Vaticano e os teólogos da libertação, todos de mãos dadas rezando no túmulo de Beato Romero – este sim é um milagre.
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Oscar Romero, mártir da fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU