10 Fevereiro 2015
Em novembro do ano passado, o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor da Unicamp, organizou um manifesto de apoio à reeleição da presidente Dilma Rousseff, no qual afirmava que o Brasil havia eleito “a proposta favorável ao desenvolvimento econômico com redistribuição de renda e inclusão social”.
Esta semana, ele lançou, em conjunto com outros pesquisadores da Unicamp que também apoiavam Dilma no ano passado, uma revista acadêmica intitulada “Política social e desenvolvimento”, que denomina o atual período de “a virada neoliberal de Dilma”.
Decepcionado com as medidas que vieram com a nova equipe econômica, o economista da Unicamp afirma considerar errado o diagnóstico que justifica o atual ajuste fiscal conduzido por Joaquim Levy, de que será breve a contração da economia causada pelo corte de gastos. “Acho que, no mínimo, a economia brasileira vai contrair 0,5%, mas não é improvável que ela contraia mais que 1% este ano”, prevê o economista, para quem o governo deveria rapidamente reconhecer o fracasso da nova estratégia e admitir que a meta de superávit primário de 1,2% do PIB para este ano não será possível.
A entrevista é de Ligia Guimarães, publicada pelo jornal Valor, 05-02-2015.
Eis a entrevista.
No ano passado, depois das eleições, você liderou um manifesto assinado por economistas heterodoxos em apoio à reeleição de Dilma e contra o ajuste fiscal. Hoje, você retiraria seu nome daquela lista?
Não creio que a Dilma tenha traído as bandeiras dela. Ela certamente capitulou diante de uma enorme pressão, que tem como centro principalmente o mercado financeiro. Claro que essa pressão reduziu-se muito depois dessa virada para a ortodoxia do governo. O problema é que hoje, como aconteceu com os países europeus e aconteceu várias vezes na história, o reforço da austeridade exigido pelos credores da dívida pública com muita frequência acaba piorando a trajetória da dívida pública.
No seu texto mais recente, você fala que a reviravolta neoliberal de Dilma não era necessária. Agora você diz que, por outro lado, ela conseguiu mitigar essa pressão política. Ela tinha alternativa?
Eu acho que sim. Um argumento que sempre é ponto de resistência do discurso neoliberal, desde a Inglaterra, desde a Margaret Thatcher, é o T.I.N.A – “There is no alternative”. E não é verdade, sempre há alternativa. O ponto é que essa virada para a ortodoxia, ainda que a curto prazo tenha condições de mitigar a pressão, vai jogar essa pressão adiante. Porque mesmo as agências de classificação de risco, mesmo antes dessa virada, já haviam dito que o principal risco para uma eventual perda do grau de investimento brasileiro seria uma recessão, que tem por efeito reduzir muito a arrecadação fiscal por um prazo razoável. E muito desse argumento de que não há alternativa está pautado na ideia de que uma eventual contração vai ser de muito curto prazo e muito rapidamente você teria condições de recuperar o animal spirit dos empresários e a economia voltaria a crescer a médio prazo.
E você não concorda com essa previsão?
Não aposto nisso. Este artigo que está na revista foi escrito em dezembro e já previa uma recessão. Na época os economistas de bancos acreditavam que a economia brasileira ia crescer 1% em 2015. A despeito do fato de que as exportações já estavam caindo, e todos os itens de demanda privada já estavam em queda. Não dá para imaginar agora que o choque de credibilidade fiscal seja capaz de recuperar, na base daquilo que o [Paul] Krugman chama de “fadinha da credibilidade”: o mito de que a confiança vai, em uma situação que a demanda está caindo fortemente, subitamente reanimar o animal spirit dos empresários para que eles passem a investir e aqueçam a economia.
Teremos recessão em 2015?
Com certeza, sem a menor dúvida. Tem uma recessão forte já contratada em 2015, e a recessão pode ser ainda maior em função da possibilidade, maior que 50%, de termos algum tipo de racionamento de água em São Paulo. Então a gente vai ter uma contração e não vai ser de um trimestre, como disse o Joaquim Levy. Eu prevejo uma contração de pelo menos dois trimestres, três trimestres. Acho que, no mínimo, a economia brasileira vai contrair 0,5%, mas não é improvável que ela contraia mais que 1% este ano. E isso significa que os pressupostos que estavam por trás da opção por um ajuste fiscal desse tipo são pressupostos absolutamente equivocados. Se imaginava que a economia ia crescer 0,8% em 2015, que era o que estava no Boletim Focus em dezembro e o governo comprou. O Secretário do Tesouro já disse que, a despeito do resultado fiscal do ano passado, déficit de 0,63% do PIB, eles vão manter o 1,2% este ano. Isso significaria um esforço fiscal de 1,83 este ano, que é cinco vezes maior que o esforço fiscal realizado em 2003. Só que o contexto histórico é completamente diferente. . Nada disso está no contexto histórico atual. Não foi a “fadinha da credibilidade” que animou a economia em 2003. Foi primeiro a elevação muito forte das exportações, e depois, um conjunto de políticas que atenderam às demandas da base social do governo Lula, e que, contra a oposição neoliberal e ortodoxa, inclusive do [Joaquim] Levy e do [Antonio] Palocci na época, abriram horizonte de grande ampliação do emprego formal com salários crescentes, por conta da elevação do salário mínimo. Hoje é exatamente o contrário. Então não há como imaginar que você reproduza com a mesma política de austeridade, os resultados que conseguiu em 2003. A demanda, tanto lá quanto cá, é o que puxaria o investimento empresarial, e não a credibilidade.
Você discorda que havia descontrole fiscal no governo Dilma?
Não. O que eu acho é que o principal problema é que a maneira que o governo gastou não ampliou o investimento privado. O ritmo de crescimento médio anual dos gastos foi até menor no governo Dilma que no governo Lula. Mas o PIB reagiu muito menos, então o gasto em relação ao PIB foi muito maior. Acontece que as receitas é que saíram da curva. O problema básico é que o governo Dilma fez uma opção por contrair o nível de investimento público, principalmente em 2011. Isso jogou a economia em uma rota de desaceleração justamente no momento em que se ampliava a concorrência internacional. A reação do governo foi fazer a contração do investimento e no segundo momento ampliou as desonerações fiscais, considerando que melhorando a rentabilidade das empresas elas seriam capazes de investir, fazer a economia crescer e melhorar a arrecadação no futuro. Isso se mostrou uma falácia. A ideia de estimular o investimento privado com desonerações foi uma política errada.
Essa devia ser a agenda para 2015? Investimento público?
Isso e, em alguns casos, voltar atrás na política de desonerar para os empresários e colocar a conta para os trabalhadores. Ocorreu no ano passado uma desoneração fiscal de R$ 100 bilhões. Isso melhora a margem de lucro dos empresários, mas eles não estão investindo. Representa um valor superior aos pouco mais de R$ 60 bilhões que o Levy quer economizar. Como você vai economizar? Elevando impostos não para os mais ricos, mas impostos que tenham impacto sobre o orçamento da classe média e dos trabalhadores remediados: gasolina, IPI, crédito para consumidor. Precisa atacar as fraudes no abono salarial e desemprego, pensões por morte, sem dúvida isso é uma coisa necessária. O que não pode é tirar direitos do trabalhador para fazer ajuste fiscal em uma situação em que a renúncia de arrecadação para aqueles que podem pagar muito mais chega a R$ 100 bilhões. A política fiscal do governo vai sendo, cada vez mais, muito injusta do ponto de vista fiscal. Não vejo o governo pautar a discussão de uma reforma tributária em que o governo, por exemplo, taxe as grandes fortunas, que é algo que já está no Congresso Nacional. Muito mais que resolveria o problema fiscal brasileiro. A política fiscal brasileira foi muito parecida com a dos republicanos, que é “starve the beast”, ou mate o Estado de fome. O governo Bush fez isso, o Reagan tinha feito também. Reduzir impostos para os empresários considerando que eles vão investir muito depois. E isso tem o efeito de piorar a situação fiscal e quem paga a conta depois são os trabalhadores.
Essa crítica à política de desonerações é nova? Alguns economistas heterodoxos defendiam as medidas à época dos anúncios.
Algumas desonerações, as primeiras que saíram, eram interessantes. Mas é inegável que houve uma generalização no movimento de desonerações, por pressão política. Deixou de ser, digamos, uma política que se justificava tecnicamente. O próprio Nelson Barbosa, que negociava as desonerações com o Congresso, depois de sair do governo foi ao Instituto de Economia [da Unicamp] no final de 2013 e nós o questionamos publicamente. A resposta dele: de fato, do ponto de vista político, não foi possível controlar a generalização das desonerações. E agora, será possível controlar? Não é o momento de reverter as que não tiveram o impacto imaginado, em vez de jogar a conta para os trabalhadores? Até porque essa política de austeridade para recuperar a credibilidade e o espírito animal dos empresários, me parece, já está claro que não vai dar certo. Inclusive os próprios defensores de uma política austera, que tinham em dezembro previsão de crescimento de 0,8% em 2015, estão revendo para baixo.
No artigo você compara a escolha de Levy para a equipe econômica à Carta ao Povo Brasileiro, escrita por Lula em 2002. Na sua visão, ambas foram equívocos?
Eu, ao contrário de alguns economistas heterodoxos, fui favorável em um primeiro momento ao esforço de recompor e garantir a credibilidade do governo Lula em um primeiro momento. Mas com o passar do tempo, particularmente em 2004, eu comecei a achar que o esforço tinha durado muito tempo. O problema é que continuou havendo no Brasil uma política monetária que determinou um enorme diferencial de taxas de juros em relação aos juros dos EUA, por exemplo, sem falar da Europa e Japão. Essa política que se imaginava que seria uma política apenas do início do governo, acabou sendo realizada inclusive em 2010, último ano do governo Lula, quanto os demais juros foram para perto de zero e o Meirelles decidiu elevar. Isso produziu, a partir de 2004, uma enorme apreciação cambial, que foi favorável no curto prazo para melhorar o poder de compra dos consumidores, pelas importações, mas foi ao mesmo tempo desestruturando o arranjo produtivo industrial. Aquela política em 2003 era justificável dado o cenário terrível de 2003 , uma dívida externa imensa, tanto privada quanto pública. Você precisava recuperar a credibilidade e apreciar um pouco o real para reduzir o peso da dívida e permitir que a economia voltasse a crescer. Só que isso foi prolongado por muito tempo. Melhorou com a saída do Palocci e do Levy em 2005, foi ali que o gasto público deslanchou e reduziu-se muito a relação dívida/PIB. A proposta do Levy, lá em 2005, era que o gasto público tinha que cair gerar um superávit primário de 7% e compensar o custo dos juros. Só que isso ocorreu, mesmo que o superávit não tivesse aumentado. Porque a economia cresceu muito com a ampliação do gasto público em infraestrutura e a recuperação do investimento das empresas estatais, particularmente Petrobras e Eletrobrás.
O que o governo precisa fazer então?
Já abandonar essa meta de 1,2%, porque agora a meta de 1,2% virou um ajuste fiscal de 1,8%. O governo tem que admitir, com transparência, que era o que se cobrava do Guido, que a expectativa de crescimento econômico pela recuperação do investimento privado como reação ao ajuste fiscal e à credibilidade das contas públicas, fracassou. As expectativas estavam erradas, portanto vai ter menos crescimento econômico e menos gasto privado. Dito isso o governo tem que rapidamente, com transparência, dizer que o que já veio do ano passado foi uma queda absoluta da arrecadação e variar 1,8 de resultado fiscal em um ano é uma coisa cavalar que vai aprofundar, ao contrário do que nós imaginávamos, aprofundar o que já vem ocorrendo, que é a perda de credibilidade e confiança dos empresários em relação à demanda agregada, que é o que dá confiança para que os empresários invistam, e não meramente a promessa do governo de que ele vai fazer uma determinada meta de superávit primário. E reduzir desonerações, mesmo porque a apreciação cambial já melhorou muito a proteção da indústria. Eventualmente ampliar as tarifas alfandegárias, para ampliar a proteção contra as importações que estão muito grandes. E aí você faz também ajuste fiscal porque hoje elas estão abaixo do que é permitido pela OMC, no caso brasileiro. E isso vai permitir que você não precise proteger tanto o setor industrial com desoneração fiscal. E aí você troca tarifa alfandegária por recuperação dos impostos desonerados.
A revista tem um tom de rompimento com o governo Dilma. É isso?
Não há de maneira nenhuma uma aceitação passiva. Há uma postura crítica, é uma elevação de tom. Nós consideramos que o problema do governo é que ele está realizando muito do que a oposição neoliberal realizaria, em parte porque cedeu à pressão.
Mas há uma decepção?
Claro, uma enorme decepção, porque o importante é a bandeira, não os nomes. Quem está lá, Dilma, Guido, Arno, pouco importa, o que importa é a bandeira, são os compromissos sociais e programáticos, isso que é importante. Se os compromissos não estão lá, não tem porque continuar apoiando as pessoas.
Se não for o governo Dilma, existe alternativa política alinhada a sua visão atualmente?
Não há alternativa nos políticos e partidos atuais, mas pode ser que surja. Mas eu acho também que o PT vai passar por enormes tensões internas. Eu não descarto a possibilidade, se a recessão se agravar muito e o desemprego aumentar - se ocorrer o pior cenário, que não acho que vai ocorrer — pode ocorrer um processo de briga interna no PT e o Lula vai ter que brigar muito para que o PT não rache, para que não se forme um novo partido a partir do PT, o que eu não acho impossível.
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Fracassou o mito da 'fada da credibilidade' para PIB, diz economista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU